Uns Dias de Cão

Não! Não se trata de assalto à banco e nem foi preciso de televisão.
Tudo ficaria gravado na mente e no coração. Explico:
minha vontade era grande de conhecer o “Rôsck”, mais precisamente o “Rôsck Sebiriano”. Era assim que minha sobrinha Thaísa de 6 anos, filha de Marisa e irmã de Floriza chamava seu cachorrinho de pelúcia. Era “Rôsck” daqui, “Rôsck” dali, e só de ouví-la pronunciar seu nome, era o bastante para que eu e minha namorada Claudinha caíssemos em fartas gargalhadas.
Recém chegado para “dividir convivência” com outra irmã, a China, tudo prá mim era novidade. Apesar de irmãos, tudo é diferente quando se tem que morar juntos depois de muitos anos afastados, como exigiram nossas vidas; a dela de solteira na casa de nossa saudosa mãe e a minha de recém separado. Cercava-me de todos os cuidados para não invadir sua privacidade. Observava atentamente as manifestações de todos os que alí frequentavam. Como Marisa - a caçula - era vizinha de China, é natural que visitasse sua casa com mais freqüência e na maioria das vezes acompanhada das filhinhas.Daquela data em diante é que ,de fato, passaria a conhecê-las melhor. A vivacidade e esperteza de Thaísa, ginga prá dançar e tudo o mais, encantava a todos. Estreitado o convívio, alargamos os passeios nos finais de semana. E foi num desses que pude sabê-la ainda melhor. Se boa de dança, melhor ainda de briga. No restaurante de final de semana, depois de muita brincadeira, derramou refrigerante no forro da mesa. Chamei sua atenção e ainda que o tivesse feito com delicadeza, foi o bastante prá que ela aborrecesse de vez comigo. De um relacionamento que era pura doçura, depois deste episódio ela passou a me evitar. Eu havia até pensado em escrever uma estorinha pro seu “Rôsck Seberiano”, mas vejam só; no carnaval, que veio logo em seguida, tivemos mais um arranhãozinho e assim o “Rôsck” foi ficando pra trás. Tive a oportunidade de conhecê-lo e me apaixonei. Lindíssimo, de pelo cinza claro rente ao couro cabeludo de pano, íris negra nos olhos azuis de acrílico reluzente, orelhinhas curtas, duras e de pé, focinho afilado, patas rijas em posição de incansável descanso, enfim, uma maravilha. Pouco tempo depois, “Rôsck” estava de mudança, e nestas circunstâncias viu-se esquecido numa caixa de papelão, de pernas prá cima, em meio a um amontoado de louças caseiras, esperando por sua dona, no apartamento novo, para igualmente ganhar vida nova. Foi assim que deparei com ele, quando ajudava Marisa na mudança. Seu olhar, agora era de espanto, como que esperando alguém para socorrê-lo.
Sem que percebessem, tomei-o em minhas mãos e o acalentei, assegurando-lhe que muito em breve, retomaria, na casa, seu lugar de destaque.
Estava eu trabalhando comigo mesmo?
Podia ser, mas àquela altura, não era menos verdade também que já havia me envolvido, ou me confundido com Rôsck.
Passados alguns dias, a mudança foi concluída. Poeira baixada, passei em sua casa pra conferir e lá estava Rôsck de novo. Agora sim, como era de se esperar. Tive a nítida impressão de que abanara o rabinho e latira prá mim de alegria, como fazem os cachorros quando chegam em casa seus verdadeiros donos.
Por outro lado, as coisas prá mim continuavam do mesmo jeito.
Bastante triste, já não conseguia esconder minha decepção. Claudinha emprestava-me seus ouvidos, até que um belo dia, num sábado à tarde, não tão belo pelo dia que escuro estava, prometendo chuva, mas sim pelo o que reservava prá mim, chega Marisa com as meninas e o Matheus meu filho que havia dormido em sua casa. Televisão ligada, conversa vai, conversa vem, percebi Thaísa descontraída, como que me prometendo coisas. Tratei logo de providenciar pipoca e deixei-me invadir de alegria. Matheus tratou de fazer suco e logo já estávamos todos debaixo das cobertas, como se grande fosse minha pequena cama de concreto.Thaísa com o rosto coladinho ao meu. Via assim acabar meu pesadelo. Era grande demais a minha satisfação. Pedi a Matheus pra registrar o grande momento.Pegue a máquina e tire uma foto. Depressa. Depressa.
E o “Rôsck”? E o “Rôsck”?
Ah, se Matheus por ele perguntasse, a resposta já estava na ponta da língua:
- tire, tire logo, ele vai faltar somente na fotografia.
Se ele insistisse: só na fotografia por que?
Por que se fosse na radiografia, lá estaria ele deitado e bem protegido em meu coração.
Sim! Ele também estava participando de minha festa.
Pazes feitas e devidamente documentadas memorizei o “Rosk” e gritei em silêncio: Au, au, au...
Ei “Rosck”, não está ouvindo o meu latido?
Éh amiguinho! Agora quem late sou eu!
Só que o meu vai expresso nesta folha de papel. Pequena demais, eu sei, para guardar o muito que me ficou contido.
E pra mim de vez ficou provado; ainda que de pelúcia o cão é mesmo o melhor amigo do homem.


BH.maio de 1997.

Afonso Rego
Enviado por Afonso Rego em 05/10/2009
Reeditado em 26/03/2012
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