MASCATE DE LONGO CURSO
Outro não devia ser mascate mais das antigas, passado na casca do alho e habilidoso que o Seu Emídio. Dele já falei, alhures, mas de um camarada bom a gente traça duzentos causos e ainda os repete, por riba dos lombos. Competência de pé, varando as estradas da serra, a vender miudezas aonde ia desapear o seu maletão sortido. De tudo, ali, havia um pouco: brilhantina Glostora, pentes e extrato Dyrce, sabonete da marca Eucalol, orações de diversos santos, terços e escapulários, um montão de coisas bonitas.
Pretinho, de reluzir, até aparentava existência nova, menos-menos avantajada. Mas meu pai é que devia ter razão: “Negro, quando pinta, já vai a três vezes trinta”. E, de fato, com petição e meu dou-fé, de verdade, Seu Emídio já não andava, tão assim, cabra de verdoso viver. Pelo baixo, talvez, por acolá, beirasse os acima da casa dos setenta janeiros. Durão, ainda, e com saúde de pedra arranchada no corpo, ele portava sempre cara boa, arejada, de sorriso sempre natural: nem pés-de-galinha no rosto, e os dentes eram alvos e impecáveis.
Sua paciência, diva do seu caráter de diamante negro, mais parecia virtude de boi manso. Aquilo mesmo que exibia Jó, em seu tempo, ao que parece um tipo bíblico. Jeitão polido, lhaneza à mostra, ares macios de bicho citadino. E que fineza nos modos ostentava, mas sem vaidade, aquele ali! Possuía dom de fidalguia d’África, o homem. Numa palavra curta, parecer de rei de cetro e coroa, ele era uma pedra de lei humanizada, toda ela esculpida em ouro negro de gentilezas.
Domiciliado na cidadezinha do pé de serra, Redenção, o nosso herói navegava por toda a Serra de Baturité com a inquietude apressada do retirante das secas. Sabia dar pernas aos caminhos íngremes e sinuosos. E quando aportava no Camará, a qualquer hora do Sol ou da Lua, tinha ele, na certa, sem faltar, mesa servida e rede lavada. Ficava-se no bem-bom, adornando sala, eitos de conversa, mutirão de proseio, até altas madrugadas. E a gente – sobretudo eu, miudeza de pessoa – achava tudo aquilo muito útil e ilustrado, pois era quando, no sítio, tomava-se alguma ciência, nos cafundós do mato, das vivências e novidades do oco do mundo civilizado. Mascate de longo curso, marreco velho no voo, Seu Emídio nem botava água a pinto. Era todo somente informação. Assemelhava-se, nos modernos da coisa, ao jornalista com o faro da notícia e bem tarimbado.
Por tratar-se de visita, e visitante insigne, que sabia onde raposa deve pegar a franga, versado nas artes do bom papo, quem norteava os serões da sala do Camará, indo da boquinha da noite às caladas, era precisamente o pretinho miçangueiro. Um tagarela. Tagarela, não; loquaz, que ele comandava dizeres bonitos e asseados, na língua lá dele. Os assuntos do ambulante oscilavam de múltiplos a variados. Uma quermesse de noticiário. Os informes iam das histórias de onça, almas do Além, lobisomem e papagaio, padre, mula-sem-cabeça, etc., às excelsas discussões sobre as administrações municipais da cidadezinha que lhe dava guarida e de outras mais da região. Pô, eu nem pegava traíra, sono nenhum, que as conversas eram sempre em alto relevo. E nada de papel na mão de Seu Emídio, ele desfiava tudo aquilo de cabeça, como em conferência de um pedante letrado. Nada mesmo lhe ficava sem dissertação e na impunidade, mesmo as longínquas eleições para a governança do Estado. Tudo, ali, picadinho, esmiuçado pela sapiência e experiência do analista vivido e corrido, mil vezes mais importante que as letras de merda de qualquer doutorzinho bocó.
Certa feita, após o jantar, o tema foi diverso, descambou para alhures, e o redencionista deitou explanação a respeito da guerra, uma guerra grande, navios torpedeados nas costas do Brasil, os alemães se apossando das rédeas do mundo, e tudo o mais. Acho que foi aí, nessa encruzilhada da historiografia de Seu Emídio, que ouvi falar pela primeira vez nas graças de Adolf Hitler (1889-1945) e Benito Mussolini (1883-1945). Estes, conforme as narrativas do homem das miudezas, eram gajos de refinado perigo, gigantes que se alimentavam de canja da carne de inocentes criancinhas.
No meu abismado espanto de capiau do mato, realçado ou diminuído pela aurora dos meus pequenos anos, quando o nosso hóspede cativo tocava nas encrencas de sua cidade, petas e fuxicos dos edis, eu me quedava reverente como a requisitar notícias de uma megalópole, cheinha de mistérios. Dava-se naquilo o gozo pela imaginação. Assim, eu supunha que Redenção seria a capital do mundo, a sede do universo, pois sujeito pai-d’égua como aquele Seu Emídio, entupigaitado, na cachola, das muitas novas e de belíssima comunicação, armado todo de sabença, até os dentes, e escovado como ninguém, só podia vir das bandas de planeta muito ancho. Talvez, assim, como a China. Uma vez ele exaltou as lonjuras e grandezas da China. E, pois então, quem sabe, quiçá, Redenção seria do porte de continente como a Bahia, terra dum tal de Rui Barbosa, muito falante. Ou que fosse da dimensão da França, de São Paulo, que sempre me lembrava um hino penoso de Guilherme de Almeida. Mais, ainda, e se Redenção não seria do feitio de alguma paragem esquisita, lá dos estrangeiros.
Seu Emídio, ah, Seu Emídio, que preto tão bom!... Só uma vez, com intimidade, o senhor botou desfeita no meu irmão, que, ao dormir na sala, ao seu lado, gemia com baita dor de dente.
– O que é isso, macho, tu não és tão valente?! – fez Seu Emídio, enquanto o rapazola fungava.
Meu pretinho destas relembranças, mestre das salas de aula da escola da vida, eh, vossemecê já não tivesse de ossatura carcomida ou acabada, pó, debaixo do chão, eu ressuscitaria inteirinha a casa de meu pai. Aí lhe daria, de novo, boas hospedagens na noite larga das minhas insônias madrugueiras, deste hoje em dia.
Fort., 03/10/2009.