Atravessou o samba
Nunca, por mais que planejasse e tentasse, Jardel conseguia passar um carnaval com dinheiro no bolso. E ele sempre foi fissurado em carnaval e passava o ano sonhando com uma mixaria maior do que a mixaria minguada de todos os anos. Mas naquele ano parecia que, finalmente, Jardel conseguiria. Tinha conseguido um emprego na Formiplac, como operador de máquinas e salário que ele nunca imaginou receber. E Jardel se sentia prestigiado por ter sido escolhido para aprender a operar aquele monstrengo barulhento e perigoso. Jardel foi aprovado e efetivado como operador da dita. E sonhava enquanto fazia o seu trabalho, sonhava com o carnaval que ainda estava longe mas precisava ser sonhado e planejado com cuidado, como quem planeja o desfile no sambódromo. O tempo passava e, quanto mais passava e se aproximava do sonho de Jardel, mais ele sonhava e, nem o barulho infernal daquele monstrengo era capaz de perturbá-lo. Foi quando aconteceu. A mão de Jardel foi engolida pela máquina. E o primeiro pensamento de Jardel, foi: “Dançou o meu carnaval”. Só depois lembrou de gritar de dor, e foi um grito dolorido que misturava duas dores doídas. Jardel ficou muitos meses no estaleiro do INSS ou o similar da época. Aos poucos,depois de duas cirurgias e muita fisioterapia, foi recuperando os movimentos do membro quase amputado. E Jardel nem percebeu quando recomeçou a sonhar com o carnaval. A diferença é que agora a mixaria no bolso se fazia mais viável. Jardel iria receber.através do Sindicato uma indenização a que tinha direito, tal o perigo que a máquina representava. Quando soube da indenização providencial Jardel abriu um sorriso de propaganda de creme dental, de fazer inveja à Regina Duarte nos tempos de Kollynos, e, do alto de seus vinte e três anos Jardel sonhava o seu carnaval de samba confete serpentina e muita cerveja. Naquele tempo o carnaval começava no sábado e a sexta feira era um dia normal onde tudo funcionava como qualquer sexta feira. A audiência para o recebimento da indenização foi marcada exatamente para a sexta feira, véspera de carnaval. Decididamente os deuses conspiravam a favor do Jardel. Nove de fevereiro, sexta feira, Jardel acorda cedo e sai para sede do Sindicato. Ônibus lotado, pisão no pé, cotovelada nas costelas, sovaco suado logo de manhã na altura do nariz do Jardel. Nada, nada podia desmanchar aquele sorriso vitorioso da cara do rapaz. E Jardel riu alto quando o punguista tentou levar sua carteira. “- Tá vazia, otário”. E riu mais alto ainda. Jardel era a felicidade incorporada. Jardel desceu do ônibus em frente ao Campo de Santana e caminhou apressado, mas sem deixar de observar o quanto o céu estava azul, prenunciando um carnaval em céu de brigadeiro. Mentalmente programou reunir os amigos numa rodada de cerveja com tremoços e lingüiça acebolada, no Cospe Grosso, bar da melhor qualidade e freqüentada pela fina flor da malandragem do bairro. E por conta dele, claro. Tudo perfeito, engrenagem da vida azeitada e funcionando sem engasgos. Jardel chegou em frente ao prédio do Sindicato e estranhou. Que multidão é essa? Pra que esse monte de faixas? Será que era para saudá-lo pela grana que iria receber? E Jardel ria escancaradamente da sua sandice, sem se importar com os olhares dos passantes “invejosos” da sua felicidade. Nada disso. Pela primeira vez na história aquele Sindicato entrava em greve. E Jardel "dançou", por tempo indeterminado.