V É I SEVERINO, O POETA

Em breve aparição pelas bandas do Monte Castelo, num pulinho do último Natal e Ano Novo, Seu Joãozinho Bilé abriu-se um boqueirão com a nossa gente. De passeio rápido, com os fins de matar relembranças do casal de filhos e da manada de netinhos miúdos.

Na dita vinda da Paraíba – foi mesmo –, ele abriu a bocarra e confiou nos GS tudo o que pôde. Desembainhou mais de vinte léguas de conversa, isto numa noite só. Mais ainda lhes posso afiançar: em momento algum, da boquinha da noite até os cafundós da madrugada adentro, Seu Bilé nem gesticulou um grama de que estivesse jururu ou enfadado. Também, só deitando loas e louvações ao finado pai!

Cedo ainda, sem ligar para a novela que a filha assistia na tevê, o paraibano mandou vir uma usina de cadeiras para a calçada do genro, que dividia parede com as telhas de meu pai. Tudo feito camaradagem, em clima de boa vizinhança, muito às botas e chinelos antigos. E ainda, além, ali pelas goelas da hora do cantar do galo, sob céu de luar aceso, em coisa de doer na vista, pois não é que lá estava também eu, rapazote doido por histórias, no tiroteio da prosa, já muito seu – lá dele – atencioso ouvinte?! Mas eu era apenas uma pedra a mais do xadrez, porque a igrejinha da vizinhança ficara maior.

Desta vez o contador de causos de Catolé do Rocha desparafusou os pregos da memória no madeirame das proezas do próprio finado pai, pai lá dele, claro. Narrou-nos muitas e boas. E a plateia, toda seleta, as oiças como funil encaminhando azeite de dendê para o fundo da garrafa. Como, até hoje, sou ruim de espalhar em leque uma falação alheia, então se contente algum mais açodado curioso com as arrumações do falecido Seu Severino, que a corriola conterrânea, numa boa, de carinho à mostra, só tratava por “véi Severino”, enquanto outra metade do povo acrescentava: “o poeta”.

Embora dono de v e n d a, quitandeiro, portanto, como se traça dizer nas línguas do Piauí, o economicamente incorreto foi que o santo genitor de Seu Joãozinho Bilé, por três espaçosas medidas de tempo, tentou o ramo de negociar com b o d e g a, que uns progressistas falam m e r c e a r i a. Pessoalmente só me dou com o termo bodega. Acho bonito e sonoro. Hoje, tudo na mão dos mandões que acham de leiloar o País, é que se ouve pronunciar “mercantil”. Mercantil nada, se aí você não encontra pinga, marafa, água que passarinho não bebe? O povo é que bebe desta, sim, ás vezes come com farinha. O diacho é que, no reverso da medalha, com ela o pessoal nunca se dá bem.

Pelas explanações do cidadão, claro que estou falando ainda de Seu Joãozinho Bilé, “véi Severino, o poeta”, um santo pai tão empenhado e coruja com a sua ninhada, não quebrou tanto no comércio das bodegas por moleza própria, não. Possuía umas terrinhas a mais, no sertão; os seus balcões é que só caminhavam para trás. Um mão-aberta, “véi Severino” vendia tudo no fiado. Hoje, vivo fosse, estaria no livro do governo como latifundiário. Talvez, até, comandasse uma malta de jagunços de aluguel, botando cachorros e cravinotes no lombo dos sem-terra.

Homem espirituoso, de lembrança quente, quengo de doutor formado, aquele Seu Joãozinho Bilé. Imagine vossemecê que ele desembuchou, de tino corrido, para nós, seu atento auditório, o desaforamento das plaquinhas de parede que seu amado pai, quando remando canoas de bodega, fazia afixar, no intento de mexer com a vida da clientela.

Da inteira responsabilidade do papo de Seu Bilé, a primeira sextilha da mão do “véi Severino, o poeta”, quadradamente em letras de cartaz, garrunchava assim: “O cabra que for safado, / Aqui, na minha bodega, / Toma dose de chicote: / Mando-lhe dar um ralado, / Boto os bagos no escorrega, / Pra ser isca de caçote.”

A segunda estrofe, ainda em tom de ameaça decepante, um horror de brincadeira: “Aqui, não sirvo cachaça / Pra quem chegar truviscado, / E não insista o freguês... / Se xingar, não acho graça. / Dou-lhe de pau no costado, / Corto os ovos doutra vez.”

Por fim, a dois palmos dum começo da Páscoa, nem se estipula quando e em que era o acontecido, esta molecagem poética completou o acervo da galeria do reprodutor celular de Seu Joãozinho Bilé: “O padre da freguesia / Diz pra, na Semana Santa, / Não se pôr cachaça em copo. / Então, quem gosta da fria, / Veja se a coisa adianta, / Pois, só no gargalo, eu topo.”

E pois bem, bem, bem... A madrugada ensopou-se toda de estrelas, lua cadente e muitos outros eitos de prosa e lorotas da melhor cepa e qualidade, nos paleios e causos do filho mais novo – segundo o próprio Seu Bilé – do herói destes alinhavos.

Fort., 16/09/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 16/09/2009
Reeditado em 16/09/2009
Código do texto: T1814352
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