CONDE BÊBADO NÃO TEM DONO
CONDE BÊBADO NÃO TEM DONO
Porto Alegre, 30 de julho de 1981.
Em certo apto. de 1º. Andar, na
Av. Borges de Medeiros.
CONDE BÊBADO NÃO TEM DONO
Porto Alegre, 30 de julho de 1981.
Em certo apto. de 1º. Andar, na
Av. Borges de Medeiros.
A voz de Andy Williams espraiava-se melodiosa pela sala do apartamento. Garrafas recentemente esvaziadas, espalhadas por toda a cozinha, davam conta da bebedeira desregrada no local.
Nos embalos da noite, adentrando a madrugada, ainda bebiam e dançavam ao ritmo frenético das discotecas. Passava das 3 h, ocasião em que um grupo resolveu dar um tempo, a fim de exibir os talentos da voz. Num passe de mágica um violão apareceu, atraindo os demais à fuzarca.
Os minutos se escoavam. Cantavam e bebiam.
Não obstante o esforço da empolgação, letra e melodia deixadas à parte, harmonia e ritmo de lado, cantarolavam numa partitura toda particular e especial, a consagrada marcha carnavalesca de Braguinha, “Turma do Funil”, em que os vapores alcoólicos, por excessivos e embriagantes, já os impediam achar a rima de barril com funil.
Junto à lucidez, as forças físicas também se esgotavam. Exauridos, o momento pedia algo aconchegante, lentidão romântica, enfim, alguma coisa que serenasse; logo... Andy Williams, Solitaire e muita gente abandonada pelos sofás.
Por mais que a resistência jovem de Narciso suportasse, o organismo cobrava-lhe repouso. Quem mal o observasse, facilmente chegaria à conclusão que suas pernas não o levaria até a porta, mas, este, decidido, despediu-se da turma pelo alto e endurecendo as pernas, pôs-se a ajeitar o tronco, colocando-se a seguir numa “panca” de dar inveja a própria sobriedade. Saiu. As pernas trôpegas o levaram escada abaixo até a rua onde, aprumando-se novamente nas pernas, com certa dificuldade aproximou o pulso bem perto dos olhos.
Os ponteiros do relógio indicavam 4:30h. Àquela hora, na calada da noite, o movimento era quase imperceptível: um gato espreitava-o por sobre o muro, enquanto um cão vadio revirava indiferente o latão do lixo.
A resistência física, antes minada pelo álcool, agora também sofria o assédio do frio, precipitando-o numa modorra quase irresistível, reanimada porém pelo líquido amargo que lhe assomou à boca, obrigando-o a contrair a musculatura. Restabeleceu-se. Seguindo o instinto e as luzes do néon a piscarem atraentes, encaminhou-se para o pequeno hotel onde se hospedara. Tomou então o sentido do Mercado Municipal. Mal caminhou duas quadras o frio impiedoso da madrugada o abraçou totalmente. Tentou por mais uma vez se ajeitar nas pernas gélidas e não se deu mais conta de nada.
No dia seguinte, a cabeça lhe antevia uma ressaca formidáv el. Soube que alguém o encontrara desmaiado nas imediações e, através da chave que trazia no bolso, o levaram até o hotel.
Angustiado pelo acontecido, espremia a memória em busca de fatos recentes, embora estes viessem esbarrar enevoados até a festinha da noite anterior. Se lhe afloravam, porém, lampejos de consultar o relógio na rua.
Depois, só frio, frio e muito frio!
E por falar em relógio, onde andaria o bendito?
Fora um presente de aniversário de vinte anos dado pelo pai. Um legítimo Omega especial; caixa de ouro maciço, pulseira banhada. Mandara ajustar-lhe uma argolinha a qual trazia presa pequena cruz, ambas de ouro, símbolos de fé e proteção.
Via-se, pois, os lampejos da memória o alertar de lembrar-se do inestimável presente do pai.
Consultou amigos, vasculhou no hotel, finalmente foi à polícia.
Dias se passaram e nada do relógio.
Perdera-o? Fora roubado? Ele não tinha sequer idéia. Como a premência do trabalho o atribulava, voltou à sua rotina.
A passagem de Narciso pela capital gaúcha tornara-se natural. Sempre por volta daquele mês de julho, o trabalho o requisitava para tarefas naquela cidade. Ali, fizera amigos, mantivera a fidelidade ao hotel donde era benquisto e estimado.
Julho chegava ao fim; via-se prestes a retornar a sua terra. Sentia-se deprimido, saudoso de casa. O fato do sumiço do relógio trouxera-lhe uma preocupação inesperada e marcante que juntara-se às demais ansiedades. Certa noite, com o intuito de espairecer-se, adentrou um barzinho da redondeza.
Entrou, sentou-se rente ao balcão; pediu uma cerveja. Pensava terminar a bebida e recolher-se ao hotel; todavia, alguma coisa despertou-lhe a atenção: dois homens bebericavam numa mesa afastada, e, embora marcassem pela discrição, a jóia no braço de um deles, não, refulgia ao reflexo da luz exibindo ser peça de rara beleza e alto valor.
Os olhos de Narciso, mesmos distantes, puderam notar para seu espanto, a pequena cruz de ouro pendida junto à pulseira. Não havia sombra de dúvida, ali estava o seu relógio! Mas como reclamá-lo? Interpelar os dois homens assim, sem nenhuma prova? Desanimou-se. Chamar a polícia, correria o risco dos suspeitos se evadirem.
Respirou fundo trazendo os nervos ao lugar. Senhor de si armou-se de um estratagema; reuniu em si a maior coragem que se lhe manifestou e aproximou-se da mesa dos dois estranhos.
Levantando a cabeça, o homem da cara amarrada respondeu-lhe secamente:
--- Não conheço!
--- Me disseram ser aqui na Avenida... aqui perto.
--- Pois é, não sei!
--- Mas...
Ante a insistência de Narciso o homem sentiu-se incomodado.
--- Qualé meu chapa? Num vê que a gente tá conversando?... Já te disse que num sei, cai fora! Te manca, vai!
--- Me desculpe...
Narciso sentia que a abordagem ia fugindo-lhe do controle, e, se a perdesse agora, não a teria mais. Arriscou um último lance.
--- Muito bonito o seu relógio!
--- Tá interessado?
--- Vamos ver.
--- E quanto achas que vale um relógio deste?
--- Muito dinheiro, com certeza.
--- E então?
--- Dois mil cruzeiros pagam?
--- É pouco. Isto foi adquirido de maneira muito especial, tá sabendo?
Disse-o o detentor do relógio, olhando enigmático para seu parceiro que, atento, acompanhava o desenrolar da conversa. Vislumbrando um bom negócio para a peça, mostrou-se convidativo, oferecendo uma cadeira ao pobre rapaz.
--- Foi, é?
--- Sim!... Já que estás interessado nele, vou contar-te!
Vinha eu e esse meu parceiro aqui pelas bandas do Farroupilha quando demos de cara com um sujeito bêbado pra caralho. O cara “acismou” comigo me oferecendo esta beleza...com uma condição: eu precisava apagar o fogo do rabo dele, entende? Na hora tive pra lhe dar umas “porrada”, mas vendo esta jóia rara aqui... sabe como é. Era madrugada, um frio danado! Então, levamos o sujeito para um lote baldio e metemos o ferro! Usamos e abusamos do cara! E pra terminar ainda te digo: o grã-fino me propôs marcar outro encontro! Vê se pode, tchê!
E a estória ali contada, por ser uma estória ali inventada, por fim tornou-se mais infame ainda.
Cabreiro com aquilo tudo, Narciso perguntou-lhe desconfiado:
--- E quando foi isso?
O homem apontou os olhos para cima, juntou os lábios em busca de uma data que não lhe ocorria. O parceiro então lhe socorreu.
--- Foi no dia do aniversário do poeta, não te lembras?
--- Exato!... Mas, por acaso, já vistes um relógio assim?
A pergunta vinha com toda ironia e provocação bater de chofre no desconforto da hesitação de Narciso que, agoniado, puxava pela memória enquanto esta insistia levá-lo apenas até a madrugada fria, extinguindo-se em seguida, vindo a recobrá-la somente na alta manhã seguinte.
Mas o dia do aniversário do poeta não fora o dia da bebedeira na Borges de Medeiros? Concluiu um Narciso confuso e apressado.
--- E aí, meu, tem as duas mil pratas aí? Insistiu o pseudo comedor de bêbados.
Narciso, no entanto, já dera as costas e se afastava mais cheio de dúvidas que propriamente da vontade de recuperar o seu precioso relógio.
Ousando olhar para trás, Narciso veria os dois “malas” sorrindo do êxito inventado, o qual brindavam na mais plácida calma e total impunidade.
--- Foi como tomar doce de criança. Observou o homem da cara amarrada. Em seguida, propôs:
Tim-tim aqui, parceiro!
Nos embalos da noite, adentrando a madrugada, ainda bebiam e dançavam ao ritmo frenético das discotecas. Passava das 3 h, ocasião em que um grupo resolveu dar um tempo, a fim de exibir os talentos da voz. Num passe de mágica um violão apareceu, atraindo os demais à fuzarca.
Os minutos se escoavam. Cantavam e bebiam.
Não obstante o esforço da empolgação, letra e melodia deixadas à parte, harmonia e ritmo de lado, cantarolavam numa partitura toda particular e especial, a consagrada marcha carnavalesca de Braguinha, “Turma do Funil”, em que os vapores alcoólicos, por excessivos e embriagantes, já os impediam achar a rima de barril com funil.
Junto à lucidez, as forças físicas também se esgotavam. Exauridos, o momento pedia algo aconchegante, lentidão romântica, enfim, alguma coisa que serenasse; logo... Andy Williams, Solitaire e muita gente abandonada pelos sofás.
Por mais que a resistência jovem de Narciso suportasse, o organismo cobrava-lhe repouso. Quem mal o observasse, facilmente chegaria à conclusão que suas pernas não o levaria até a porta, mas, este, decidido, despediu-se da turma pelo alto e endurecendo as pernas, pôs-se a ajeitar o tronco, colocando-se a seguir numa “panca” de dar inveja a própria sobriedade. Saiu. As pernas trôpegas o levaram escada abaixo até a rua onde, aprumando-se novamente nas pernas, com certa dificuldade aproximou o pulso bem perto dos olhos.
Os ponteiros do relógio indicavam 4:30h. Àquela hora, na calada da noite, o movimento era quase imperceptível: um gato espreitava-o por sobre o muro, enquanto um cão vadio revirava indiferente o latão do lixo.
A resistência física, antes minada pelo álcool, agora também sofria o assédio do frio, precipitando-o numa modorra quase irresistível, reanimada porém pelo líquido amargo que lhe assomou à boca, obrigando-o a contrair a musculatura. Restabeleceu-se. Seguindo o instinto e as luzes do néon a piscarem atraentes, encaminhou-se para o pequeno hotel onde se hospedara. Tomou então o sentido do Mercado Municipal. Mal caminhou duas quadras o frio impiedoso da madrugada o abraçou totalmente. Tentou por mais uma vez se ajeitar nas pernas gélidas e não se deu mais conta de nada.
No dia seguinte, a cabeça lhe antevia uma ressaca formidáv el. Soube que alguém o encontrara desmaiado nas imediações e, através da chave que trazia no bolso, o levaram até o hotel.
Angustiado pelo acontecido, espremia a memória em busca de fatos recentes, embora estes viessem esbarrar enevoados até a festinha da noite anterior. Se lhe afloravam, porém, lampejos de consultar o relógio na rua.
Depois, só frio, frio e muito frio!
E por falar em relógio, onde andaria o bendito?
Fora um presente de aniversário de vinte anos dado pelo pai. Um legítimo Omega especial; caixa de ouro maciço, pulseira banhada. Mandara ajustar-lhe uma argolinha a qual trazia presa pequena cruz, ambas de ouro, símbolos de fé e proteção.
Via-se, pois, os lampejos da memória o alertar de lembrar-se do inestimável presente do pai.
Consultou amigos, vasculhou no hotel, finalmente foi à polícia.
Dias se passaram e nada do relógio.
Perdera-o? Fora roubado? Ele não tinha sequer idéia. Como a premência do trabalho o atribulava, voltou à sua rotina.
A passagem de Narciso pela capital gaúcha tornara-se natural. Sempre por volta daquele mês de julho, o trabalho o requisitava para tarefas naquela cidade. Ali, fizera amigos, mantivera a fidelidade ao hotel donde era benquisto e estimado.
Julho chegava ao fim; via-se prestes a retornar a sua terra. Sentia-se deprimido, saudoso de casa. O fato do sumiço do relógio trouxera-lhe uma preocupação inesperada e marcante que juntara-se às demais ansiedades. Certa noite, com o intuito de espairecer-se, adentrou um barzinho da redondeza.
Entrou, sentou-se rente ao balcão; pediu uma cerveja. Pensava terminar a bebida e recolher-se ao hotel; todavia, alguma coisa despertou-lhe a atenção: dois homens bebericavam numa mesa afastada, e, embora marcassem pela discrição, a jóia no braço de um deles, não, refulgia ao reflexo da luz exibindo ser peça de rara beleza e alto valor.
Os olhos de Narciso, mesmos distantes, puderam notar para seu espanto, a pequena cruz de ouro pendida junto à pulseira. Não havia sombra de dúvida, ali estava o seu relógio! Mas como reclamá-lo? Interpelar os dois homens assim, sem nenhuma prova? Desanimou-se. Chamar a polícia, correria o risco dos suspeitos se evadirem.
Respirou fundo trazendo os nervos ao lugar. Senhor de si armou-se de um estratagema; reuniu em si a maior coragem que se lhe manifestou e aproximou-se da mesa dos dois estranhos.
Levantando a cabeça, o homem da cara amarrada respondeu-lhe secamente:
--- Não conheço!
--- Me disseram ser aqui na Avenida... aqui perto.
--- Pois é, não sei!
--- Mas...
Ante a insistência de Narciso o homem sentiu-se incomodado.
--- Qualé meu chapa? Num vê que a gente tá conversando?... Já te disse que num sei, cai fora! Te manca, vai!
--- Me desculpe...
Narciso sentia que a abordagem ia fugindo-lhe do controle, e, se a perdesse agora, não a teria mais. Arriscou um último lance.
--- Muito bonito o seu relógio!
--- Tá interessado?
--- Vamos ver.
--- E quanto achas que vale um relógio deste?
--- Muito dinheiro, com certeza.
--- E então?
--- Dois mil cruzeiros pagam?
--- É pouco. Isto foi adquirido de maneira muito especial, tá sabendo?
Disse-o o detentor do relógio, olhando enigmático para seu parceiro que, atento, acompanhava o desenrolar da conversa. Vislumbrando um bom negócio para a peça, mostrou-se convidativo, oferecendo uma cadeira ao pobre rapaz.
--- Foi, é?
--- Sim!... Já que estás interessado nele, vou contar-te!
Vinha eu e esse meu parceiro aqui pelas bandas do Farroupilha quando demos de cara com um sujeito bêbado pra caralho. O cara “acismou” comigo me oferecendo esta beleza...com uma condição: eu precisava apagar o fogo do rabo dele, entende? Na hora tive pra lhe dar umas “porrada”, mas vendo esta jóia rara aqui... sabe como é. Era madrugada, um frio danado! Então, levamos o sujeito para um lote baldio e metemos o ferro! Usamos e abusamos do cara! E pra terminar ainda te digo: o grã-fino me propôs marcar outro encontro! Vê se pode, tchê!
E a estória ali contada, por ser uma estória ali inventada, por fim tornou-se mais infame ainda.
Cabreiro com aquilo tudo, Narciso perguntou-lhe desconfiado:
--- E quando foi isso?
O homem apontou os olhos para cima, juntou os lábios em busca de uma data que não lhe ocorria. O parceiro então lhe socorreu.
--- Foi no dia do aniversário do poeta, não te lembras?
--- Exato!... Mas, por acaso, já vistes um relógio assim?
A pergunta vinha com toda ironia e provocação bater de chofre no desconforto da hesitação de Narciso que, agoniado, puxava pela memória enquanto esta insistia levá-lo apenas até a madrugada fria, extinguindo-se em seguida, vindo a recobrá-la somente na alta manhã seguinte.
Mas o dia do aniversário do poeta não fora o dia da bebedeira na Borges de Medeiros? Concluiu um Narciso confuso e apressado.
--- E aí, meu, tem as duas mil pratas aí? Insistiu o pseudo comedor de bêbados.
Narciso, no entanto, já dera as costas e se afastava mais cheio de dúvidas que propriamente da vontade de recuperar o seu precioso relógio.
Ousando olhar para trás, Narciso veria os dois “malas” sorrindo do êxito inventado, o qual brindavam na mais plácida calma e total impunidade.
--- Foi como tomar doce de criança. Observou o homem da cara amarrada. Em seguida, propôs:
Tim-tim aqui, parceiro!