APETITE VORAZ
O MUNDO VAI ACABAR
Nas margens da antiga rodovia Araxá/Uberaba havia uma venda, dessas que vendiam de tudo um pouco, onde os moradores da redondeza se abasteciam quando lhes faltava alguma coisa que haviam se esquecido de comprar em suas idas à cidade mais próxima, Perdizes.
Ali também era o ponto de ônibus e se reuniam aqueles que iam ou vinham da cidade, além de alguns desocupados contumazes, dentre os quais o Gaspar, um sujeito que trabalhava como diarista aos fazendeiros, mas não era muito chegado ao serviço não. Ele tinha uma conversa macia, sendo que as pessoas gostavam de ouvi-lo contando as suas estórias mentirosas, que, apesar da sua pouca leitura eram bastante criativas, e sempre lhe pagavam a bebida que consumia; comia qualquer coisa, desde que fosse em grande quantidade. Geralmente, apostava com os caminhoneiros desconhecidos, sempre se propondo a comer exageradamente, já que os outros sabiam de suas proezas gastronômicas.
O comerciante, Ademar, um pândego, divertia-se com as situações criadas pelo caboclo com cara de bobo, mas que, de bobo não tinha nada. Aquilo o ajudava a segurar a clientela no local, aumentando em muito os seus rendimentos, porque o pessoal sempre bebia ou comia alguma coisa, lógico. Gaspar também servia como uma espécie de “correio”, já que era ele quem levava recados e encomendas deixados pelos viajantes, aos moradores da região, sempre em troca de pagamento em espécie: bolos, doces, queijos e outros comestíveis.
Certa vez chegou um novo motorista do armazém atacadista que abastecia a venda, o qual viera fazer uma entrega de mercadorias adquiridas pelo vendeiro, sendo que o Gaspar se prontificou a ajudar-lhe na descarga, e logo iniciou aquela “conversa mansa” de costume, com o objetivo de levar alguma vantagem com o mesmo.
O rapaz entregava-lhe as caixas, que ele levava para o interior do estabelecimento, enquanto tecia seus comentários:
-Virgenoooossaaaaa!!! ... que latona de sardinha, moço! Quanto pesa cada uma, hein?
-Parece que é meio quilo, não tenho certeza, mas está escrito aí na embalagem, viu?
-Anh!, dessa daqui eu como pelo menos umas duas de uma vez!
-Cê besta, siô! ... ninguém faz isso, não, uai!
-Eu aposto com você, que eu faço mesmo.
-Sozinho?
-Claro que não! ... com farinha e pinga, né?
-Ora, isto eu quero ver! Tá valendo ... e se você não comer, o que eu ganho?
-Não se preocupe, porque eu como, sim ... basta me dar duas latas, e pagar a farinha e a pinga lá na venda.
-Feito! Tem uma coisa: se você não comer tudo, eu não pago nada, nem a sardinha, certo?
-Eu topo ...
Gaspar pediu ao comerciante que abrisse as duas latas e lhe desse um pacote de farinha de mandioca, além de uma garrafa de pinga de 600 ml., como eram vendidas naquela época. Com calma, foi remexendo o peixe com a farinha num prato, com o garfo, formando uma paçoca, enquanto sorvia alguns tragos da cachaça, que era para abrir o apetite, segundo explicava aos presentes, ironicamente.
Todo mundo ali sabia que ele comeria tudo, depois começaria com as velhas lorotas de todos os dias, a melhor fase da coisa toda. Mexeu, mexeu, colocou a primeira garfada daquela farofa na boca, mastigou bem devagar, quase embuchou, ao engolir, mas seguiu em frente; já a partir da segunda, parece que a sua garganta estava mais treinada, de tal forma que conseguia ingerir a comida com maior facilidade. De vez em quando, mandava mais uma talagada da “brava”, que era para limpar a goela.
Após chegar à metade do “prato”, de repente saiu-se com uma de suas costumeiras conversas meio sem nexo, só que, dessa vez, inventou algo diferente e desconhecido de todos os que o ouviam naquele momento, embora soubessem que dali sairia uma besteira qualquer. O motorista já repugnava vendo-o comendo daquele jeito, pois a sardinha é bastante enjoativa, muito mais ainda, daquela forma, misturada com tanta farinha e pinga. Todavia, divertia-se com as bobagens do matuto. A estória era mais ou menos assim:
-Éééééh ... eu li num livro do “seo” Tonico, acho que era As profecias de Nostradamus, que o mundo vai acabar dentro de pouco tempo! Ele diz lá que “de mil anos passará o mundo, mas que em dois mil não chegará”, gente.
-Nos’sinhora, siô!!! ... de que jeito o mundo vai acabar? Disque uma veis acabou tudo em água, né? – perguntou o Joaquim, um anão que morava numa fazenda próxima dali.
-Isto ele não falou, não, ora! Só disse que o mundo vai acabar antes do ano 2000, há de morrê tudo que é ser vivente na face da terra, homens, bichos, cobras... vai morrê tudin!
-Creeedo em cruuuiz! Eu quero morrê furunfano, viu! – escolheu o Zair
-Isso lá é hora de pensá nisso, home de Deus! – criticou o amigo Onofre – Aposto cocê vai é se borrá de medo, ara!
-Bão... eu sei que isso é verdade, o meu pai já contava esse causo quando a gente era tudo criança pequena. A única certeza é que morre todo mundo e num fica ninguém pra semente; aliás, fica somente eu, mais ninguém, nem mulher, viu? – continuou falando o Gaspar, já bastante “alto”, por conta da cachaça.
-E daí, o que que ocê vai ficá fazeno aqui suzin, sujeito? Pra quê? – indagou o Tatão
-Uai, eu vou ter que fazer muita coisa! Por exemplo: pegar todos esses carros e caminhões já velhos e jogar tudo no esbarrancado, que é para tampar todos os buracos e deixar tudo plano ...
-É mesmo? ... mas como, se ocê não gosta de pegá no pesado, hein? Vai sê um trabaião medoin ... caçoou o Dito Vermeio.
Enfim, cada um dos presentes começou a dar palpites naquela conversa esquisita do Gaspar, e ele lá, comendo a sua sardinha com farinha e bebendo a garrafa de pinga, bem tranquilão do seu, com aquela cara de zombaria. Já fazia quase uma hora que o cara estava enrolando o coitado do motorista, a essa altura bastante preocupado com a demora, mas curioso e querendo saber no que terminaria aquela zorra toda. Foi aí que ele se estrepou, bem bonitinho, quando se saiu com esta:
-Tudo bem, você vai acabar com todos os carros e caminhões velhos. Eu quero saber o que é que vai fazer com os outros, os mais novos! Me explica, esperto ...
-Claro que eu não vou ficar com todos para mim, com certeza, né! Escolho aqueles mais modernos e confortáveis, os outros eu vou vender e juntar o dinheiro, lógico!
-Tás bestando, meu! Para quem você vai vender tudo, se ficou só você aqui, hein?
- Pro ignorante que tá me perguntando, uai!
Todo mundo caiu na risada, menos o tal motorista, que quis ficar bravo, mas logo foi “convencido” pelos demais a ir embora com aquela afronta, porque o Gaspar nem se tocou