MANELÃO
Manoel Cezário, sujeito simplório dos chapadões de Minas Gerais, região do Triângulo, desde garoto era considerado um rapaz meio “zambeta”, pois era personagem de algumas atitudes consideradas esquisitas.
a – PEÃO DE PORCOS
Quando tinha uns dez anos, morava com seus pais na fazenda de um “coronel” da região, Sr. José Miguel de Souza, andava léguas à cavalo para ir à escola mais perto, a qual ficava num vilarejo onde havia também a estação ferroviária. Não gostava de estudar, e por isso “matava” aulas constantemente, quando escondia o animal no mato e ficava aprontando as suas artes por ali mesmo.
Uma delas era montar nos porcos do patrão, que ficavam fuçando no meio do brejo cheio de inhames nativos, sendo que chegavam até a “vargem” onde haviam colhido uma lavoura de milho naquele ano. O moleque ficava nos trilhos por onde passavam, sempre em fila através de um túnel de vegetação nativa. Subia em algum galho baixo e esperava que viessem os “cachaços” maiores, pulava em cima deles, meio deitado, para não se machucar nos ramos e o bicho, assustado, pulava muito tentando desfazer-se do intruso.
Com isso, os porcos começaram a apresentar alguns problemas físicos, sendo que alguns ficaram “descadeirados”, conforme se dizia por lá. O fazendeiro, mesmo já velho e cheio de reumatismos, decidiu que ia descobrir os motivos daquilo, pensou em mandar alguém, mas não confiava em nenhum de seus empregados. Então, resolveu prender os “cachaços” no mangueirão e ele mesmo seguiria a porcada pela manhã.
Postou-se engatinhando atrás da manada e foi quase rastejando, porque era impossível andar normalmente, em pé. Os animais paravam embaixo das goiabeiras para comer os frutos caídos naquela noite, de forma que não tinham muita pressa e ficavam entretidos com aquilo, permitindo que o velho descansasse. Depois de umas duas horas, mais ou menos, eles tomaram o rumo da antiga lavoura, sendo que o “seo” Zequinha continuava firme na perseguição, até que em dado momento, deu-se algo inusitado.
Quando passava, no fim da fila, próximo de uma frondosa árvore, eis que lá de cima alguma coisa caiu sobre suas costas, assustando-o muito. A princípio, pensou tratar-se de uma onça, pois não era raro elas aparecerem por ali em busca de alimentos, abatendo galinhas, leitões e até bezerros novos. Instintivamente, rolou com aquele peso em cima dele, mas o moleque estava fortemente agarrado e gritava frenético:
-Eeeiiiaaa, cavalinho bão!!! Vamos lááááá, trem danado!!!
-Ehhhhh! ... ficou doido, moleque? Não ta vendo que sou eu, coisa ruim?
-Nossa, descurpa eu, patrão! Foi sem querê, uai ...
-Imagina, safado! ... eu vou dar-lhe uma surra daquelas e ainda vou contar ao seu pai o que é que anda fazendo, viu? – gritou o homem, muito enfezado, apanhando uma varinha fina e comprida, sem largar o garoto.
-Olha, não me bate, não, patrão! Se o senhor fizer isso, eu conto ao meu pai que o senhor vai lá em casa quase todos os dias, depois que eu saio para a escola, hein! – ameaçou Manoel
-Vou mesmo, porque a fazenda é minha e eu vou aonde quero, né?
-Tá certo, mas eu já vi o que o senhor fica fazendo com a minha mãe ... pensa que nunca sei, não? Aposto que se contar ao meu pai, isso vai acabar em morte... topa? O senhor é quem sabe...
-Ah, menino, pensando bem, até que você não fez nada de mal, porque eu também fazia isso quando tinha a sua idade! Acho até normal... por outro lado, se você disser alguma coisa, ele pode achar que existe alguma coisa errada, acaba me matando, vai preso, e aí fica a sua família desamparada, não é mesmo?
-Então, patrão! ... acho melhor a gente fazer um acordo bão para os dois lados.
-O que você quer para ficar de bico calado? Exijo que me dê a sua palavra de honra, tá bom?
-Araaaa, o senhor sabe que eu cumpro o combinado, uai! Sabe aquele potrinho da égua baia, a Sucena? Se o senhor me der ele, além de não falar nada para ninguém, eu ainda fico vigiando a casa, quando o senhor estiver lá, para o caso de que o meu pai possa chegar de repente! Também quero parar de estudar e trabalhar para o senhor, mas não na lavoura ... pode ser tomando conta do terreiro, tratando dos porcos, apartando as vacas, colhendo os ovos. O que acha?
-Bom, também! Estamos combinados, mas me promete também que não vai mais montar nos porcos, porque aqueles “cachaços” me custaram muito caro, viu?
-Eu sei, mas agora já tenho o potrinho, ora!
b – E A PORCA DEU CRIA
Dali em diante, Manoel não foi mais à escola, ganhava um salário condizente com aquilo que fazia e foram levando a vida, numa boa. O sr. Zequinha continuou visitando a casa da comadre, regularmente, agora de forma mais segura, porque o menino ficava de olho no pai. Às vezes até arriscava uma olhadinha através dos buracos nas paredes, para ver o que os dois faziam durante tanto tempo. Aquilo tornou-se uma rotina e ele não se importava mais com o fato corriqueiro.
-Seo Ziquinha ... seo Ziquinha ... olha lá aquela porca amarela que andava sumida! Parece que já deu cria, porque está bastante magra! Nossa, parece com fome!
-É mesmo!!! ... faça o seguinte, Mané: dê-lhe algumas espigas de milho, depois pegue o balaio e o chicote, e vá atrás dela, para descobrir aonde deu cria, tá bom? Vá com cuidado, pois, se ela descobrir que está sendo seguida, é bem capaz de ficar tretando para não mostrar o ninho, viu! Esses bichos são safados ...
-Pode deixar comigo, patrão! – prontificou-se o rapazinho, animado.
A porca comeu o milho, além de meia abóbora, logo após saiu de fininho, meio que disfarçando, deu voltas, andou no meio do bambuzal, comeu minhocas no brejo, bebeu água numa poça, deu uma grande volta beirando o córrego, ia e vinha, desconfiada, até que começou a trotar no rumo de uma capoeira.
Manoel permanecia escondido entre as moitas, procurando não perdê-la de vista, e viu quando entrou numa moita de assa-peixe, onde ouviu o barulho dos leitõezinhos esfomeados, já que a mãe havia demorado bem umas três horas para voltar. Ele foi aproximando-se devagar, com extremos cuidados, até que chegou bem perto e contou nove bacorinhos.
Resolveu aproveitar o momento, enquanto mamavam, e pegou o primeiro, jogando-o dentro do balaio, enquanto segurava o chicote com a mão direita, mas o danadinho começou a gritar apavorado, chamando a atenção da mãe. Esta levantou-se muito brava e atacou o invasor, com os dentes arreganhados e o pelo ouriçado ... ele deu-lhe algumas lambadas com o chicote, enquanto recuava, porém, a trança enrolou em um ramo e foi preciso deixar o instrumento e sair correndo, senão seria mordido, com certeza.
Apesar dos seus gritos visando intimidá-la, o animal atacou-o firmemente, fazendo-o correr desimbestado no rumo do riacho, onde atirou-se de roupa e tudo, mas salvou-se do ataque do feroz animal. Foi preciso que ficasse dentro d’água por quase meia hora, até que a porca retornasse para junto dos filhotes.
Não lhe restou outra alternativa a não ser retornar à fazenda e narrar o ocorrido ao patrão, enfrentar as zombarias do velho, pois não havia outro jeito. Este ficou possesso, ironizou bastante a situação e decidiu que iria ele mesmo buscar a tal “fera perigosa” em seu covil. Pegou outro chicote mais longo e mandou que o moleque fosse mostrar-lhe o local. Chagando lá, apoderou-se do balaio que Mane deixara pelo caminho, deu uns berros e algumas lambadas na porca, numa tentativa de mostrar-lhe que não tinha medo, deixando-a ainda mais irritada do que já estava.
Não deu outra. O animal não respeitou o seu dono e partiu decidida em sua direção, ele deu-lhe várias chicotadas, mas o bicho não desistiu, fazendo-o recuar de costas, aos tropeções, quando se enroscou no capim e caiu de costas no chão. Nessa altura, o rapazinho já estava seguro em cima de uma árvore, de onde viu o patrão ser atacado e rasgado pelo bicho enfurecido.
A única coisa que o Mane imaginou, visando salvar o velho, foi pegar dois leitões e sair correndo, fazendo-os gritar muito, aproveitando-se da raiva da mãe. Deu certo, porque ela deixou o homem e saiu correndo atrás dele, quando os deixou no chão e atirou-se novamente dentro do córrego. Enquanto isso, seo Ziquinha teve tempo para afastar-se dali, bastante machucado, por causa das mordeduras. Ao aproximar-se, meio ressabiado e mal conseguindo conter o riso, ouviu uma ordem:
-Ahhh, menino, acho melhor deixar que ela vá embora por sua conta, né! Afinal, que diferença faz, não é verdade? Mais dia, menos dia, ela há de chegar em casa, ora! Não vá você me contar a ninguém sobre isso, hein! Eu lhe dou aquela bezerra da Rancheira para ficar de biquinho calado, tá?
-Tá certo, o senhor sabe que pode deixar comigo, pois isso é coisa nossa!
Assim sendo, de bezerra em bezerra, algum dinheirinho a mais de vez em quando, o Manoel foi fazendo o seu pecúlio e aproveitando-se das situações.
C - CARROÇA NA LADEIRA
Quando se casou com Tereza, uma cabocla dali mesmo, recebeu do patrão um pedacinho de terra, onde havia uma casa rústica, e começou uma vida de intenso trabalho junto com a esposa. A gleba era pequena, porém, bem ajeitadinha, eles criavam algumas cabeças de gado, uns porcos e frangos, comeram muita abóbora com arroz, produziam queijos e rapaduras, plantavam e colhiam café, arroz, feijão e milho para o gasto. Enfim, desdobravam-se para melhorar de vida.
O pai de Tereza deu-lhes, como dote, mais seis vacas produzindo leite, além de um burro manhoso, de forma que sempre havia algo para vender na cidade, pois não gostavam de intermediários, sendo que iam todos os meses, de trem. Atrelavam o Rochedo à carroça e deixavam-no peado no sítio do tio Sinhô, para que não fugisse, mas o burro sempre conseguia retornar sozinho para casa, deixando-os a pé, quase sempre.
Geralmente o Manelão emprestava algum cavalo do tio da esposa e ia buscá-lo no próprio sítio, muito bravo, mas isso não adiantava de nada, porque o danado parece que se comprazia em chateá-lo tanto. Uma certa vez, ele amarrou bem firme, com uma corda, as patas do burro, cruzando a dianteira direita com a traseira esquerda, pensando que com isso evitaria o transtorno, mas qual o que! O burro fugiu de novo, mesmo assim, deixando-os na mão, literalmente.
Naquele dia o tio não tinha um cavalo para emprestar-lhe, já que todos os seus estavam em mãos de terceiros; só havia uma mulinha nova, recém adestrada, que não servia para os seus propósitos, pois ele era grandão e bastante robusto. Resolveu ele mesmo ir puxando a carroça e não houve qualquer argumento que o fizesse desistir daquela idéia. Postou-se entre os varais do cabeçalho e foi levando o pesado veículo, carregado com uma saca de açúcar, duas de sal, uma lata de querosene, algumas ferramentas de trabalho, além de miudezas, perfazendo uns 300 quilos, quase.
Enquanto estavam no chapadão, tudo bem, ele puxava e Tereza empurrava, sendo que o tio Sinhô ia montado na bestinha e conversavam. O grande problema é que havia a serra íngreme para chegar em casa, a qual ficava lá embaixo, beirando um córrego que tinha de ser atravessado. A esposa insistiu para que deixassem a carroça no meio do cerradinho, o tio aconselhou-o, mas debalde, pois o turrão não desistiu do seu intento. Amarrou uma corda na traseira do veículo e pediu que os outros dois o ajudassem a contê-lo na descida.
-Ahhh, aquele merda me paga, ele há de ver! – praguejou, como sempre.
-Imagine! ... ele sempre apronta uma dessas, mas você nunca toma uma atitude, homem! Por que não o vende, nem que seja ao frigorífico de Araguari?
-É, mas aí a gente teria que comprar outro, pois ele é o único que temos, né? ... ruim com ele, pior sem ele, credo! Deixe estar, que um dia eu perco a paciência e dou-lhe um tiro de sal grosso nas ancas, ara se sou!
-Pense bem, rapaz ... isto não resolve, uai! Eu concordo com a Tereza, quanto á venda do animal, porque não adianta ficar prometendo e não agir como se deve! Qual é o problema de se comprar um outro, Manoel?
-É o seguinte: todo mundo por aqui conhece bastante bem a fama do Rochedo, ninguém vai querê-lo nem de graça. Agora, vender o bicho para o matadouro, eu não faço, de jeito nenhum, viu!
-Então, não reclame! Eu ainda acho que não devemos fazer essa insanidade de descer a serra com essa carroça, Manoel. – acrescentou a mulher.
-Tudo bem, se não quiser me ajudar, mas eu mesmo vou levar esse treeeem ... – teimou o rapaz, cabeça dura.
O tio amarrou a mulinha na traseira, através de um laço que passou pela cabeça do arreio, ele e Tereza seguravam a corda, enquanto o Manelão punha-se entre os varais, de novo, iniciando a descida da ladeira, toda cheia de curvas e precipícios do lado direito. Durante algum tempo, iam conseguindo sustentar a carroça numa velocidade moderada, porém, a mulinha empacou e o laço partiu, deixando que eles ficassem contendo-a sozinhos. Todavia, aquilo durou apenas até a primeira curva, quando os dois que ajudavam na traseira também tiveram que desistir, por absoluta impossibilidade de resistirem.
Manelão não deixou vencer-se, ora arrastava-se pelo cascalho, ora era levantado e ficava pedalando no ar, mas não desgrudava dos varais. Começou foi a gritar, apavorado, enquanto tentava controlar a carroça:
-Seguuuuuuuuuura, gente! ... eita, trem doido! ... Ajuda, Nossa Senhora do Menino Jesus!
Resultado: foi parar no meio do brejo, todo esfolado, deixando a carroça tombada mais adiante, com os varais quebrados e a carga espalhada pelo caminho. Quando a esposa e o tio chegaram, mesmo entre gemidos, ainda perguntou:
-Gente, será que estragou as compras? Você viu, Tereza, se o meu par de botinas novas não se perdeu por aí no meio do mato?
-Calma, homem! ... eu avisei que não dava para descer a serra, não foi? Mas, fique tranqüilo, porque não estragou nada, viu? A não ser a sua cara, mas isto é bem feito, para largar de ser tão teimoso! – retrucou a esposa
-Graaaaaaaaaças a Deus!!! ... a carroça eu conserto, daqui a alguns dias eu estarei curado, mas o importante eram as mercadorias, uai! ... Ahhh, Rochedo! Eu vou te matar, trem ruim!
Matou nada, porque pensou bem, refrescou a cabeça e concluiu que teria de gastar muito dinheiro para comprar um outro animal, lógico! Preferiu continuar sofrendo com as fugas do burro.
d – DE NOVO, PUXANDO CARROÇA
Os anos se sucederam, melhoraram de vida, aproveitaram bem o empréstimo do sítio onde começaram a progredir financeiramente. Filhos, então, era uma glória, pois sucediam-se à base de um por ano. Já tinham seis, uma escadinha entre um e nove anos, quando os herdeiros do antigo patrão e protetor, que havia falecido, decidiram vender a propriedade e mandaram-no para o espaço. Com algumas economias feitas até ali, conseguiu comprar uma boa fazendinha na região, onde continuaram vivendo.
A rotina era igual; continuavam plantando roças, criando gado e até tocavam uma lavourinha de café. Todos os meses eles iam à cidade e vendiam o que produziam, compravam sempre as mesmas coisas, como roupas, ferramentas, açúcar, querosene, sal, etc.
Sempre o Rochedo aprontava das suas, deixando-os a pé na estação, voltava para casa, mesmo que tivessem mudado, e apesar de ficar peado até das quatro patas, ele conseguia fugir, não se sabe como. Havia uma vantagem, já que não precisavam mais descer a serra, como antes, porque a nova fazenda ficava numa área bem mais plana. Enfim, Manelão continuava puxando a carroça, como antes.
Para variar, Tereza estava grávida do sétimo filho, já bem gorda. Conversavam enquanto percorriam a estradinha, Manelão na frente, ela atrás, pés muito inchados, eles mal cabiam nos sapatos. Falavam sobre assuntos corriqueiros da fazenda, faziam planos de trocar algumas das vacas mais velhas por outras mais novas e produtivas, quando a mulher entregou os pontos, pedindo que parassem um pouco para descansar.
-Ah, marido, não dá mais, de jeito nenhum! – disse ela, sentando-se à sombra de uma frondosa árvore a beira do caminho.
-Ora, mulher, já está tão pertinho, siá! Faltam apenas uns dois quilômetros para chegarmos em casa, uai! Faz uma forcinha, faz? – insistiu Manoel.
-Ah, neeeeeeeeeem ... não dá, mesmo! Pode ir embora, mas manda os meninos me trazerem uns chinelos; enquanto isso eu descanso um pouquinho, ta bom? Não posso mais, não ...
-Ôôô, xeeente, tenha a santa paciência! Ta bom, sobe na carroça, que eu te levo!
Tereza subiu, acomodou-se em cima das compras e Manelão continuou suando em bicas lá na frente, já que estava um sol daqueles de rebentar mamona. Porém, não deixaram de conversar, até que chegaram a um acordo sobre a troca das vacas e também sobre a colheita do café.
Quando chegaram à porteira que dava acesso ao pastinho da porta, onde costumavam deixar o burro, Manoel foi abri-la, quando deu uma olhadinha para trás e viu que Tereza estava com uma sombrinha aberta, protegendo-se do sol. Ficou possesso de raiva e começou a gritar.
-Tudo bem, minha filha! ... eu posso até ser burro, puxar carroça há tantos anos, mas essa não, aaaaaara!!! Onde já se viu, me fazer de seu escravo, mulher? Isto não tem base, porque o tempo da escravidão já acabou, gente! Ou você fecha essa sobrinha, agoooora, ou então desce daí, ora!
Muito enfezado, ainda viu o burro zurrando e vindo ao seu encontro, parecendo muito feliz. Pegou-o com uma corda, amarrou num mourão e deu-lhe a maior surra, descontando a afronta que acabara de sofrer.
Esse era o Manelão, jeitão de menino grande, teimoso, pouco lúcido, mas uma grande alma.