Renovação existencial

RENOVAÇÃO EXISTENCIAL

Abril/2009.

Newton Schner Jr.

Somente a sombra de sua extensa altura era capaz de acompanhar o frenético ritmo de vida, digno de espanto àqueles que por algum modo mantém-se à lentidão das nuvens outonais, que não há muito tempo optara por seguir. O suor corria-lhe sobre o rosto diante do mínimo esforço seu, cujos traços eram frutos de sua magreza. Mas ah, que inveja era ele capaz de proporcionar àqueles que não dispunham de receitas ou motivos para manterem-se a flutuar pela enérgica sede de descoberta! Raramente transparecia suas inquietudes, bem como o desânimo e a solidão. Os poucos com quem estreitava seus laços, aos quais revelava algumas das infinitas porcelanas raras de sua vida pessoal, admiravam-lhe sobretudo pela forma com que constantemente renovava suas concepções que lhes eram pronunciadas de forma dócil e encantadoramente harmoniosa. Da sua capacidade renovar-se resultava o ritmo acelerado de sua vivência.

Chamava-se Pawelr. Era seu próprio nome capaz de proporcionar-lhe inúmeras tardes de reflexão. Não que o fosse desocupado, imprestável, mas acreditava que não estaria apto a avançar em suas descobertas enquanto não soubesse olhar com riqueza sobre as mais simples cousas que o cercavam. Não era raro vê-lo quase que estático diante de janelas ou um quarto propositadamente arrumado, exercitando sua capacidade abstrativa. “Que origem... Ah, que sonho ser-me-ia consegui-lo descobrir: que origem teria Pawelr, nome meu? Em que estiveram pensando meus pais, quando presentearam a seu segundo filho com tamanho nome incomum? Esforcei-me à busca de sua origem que até então se mantém misteriosa. Alguns me falam soar ele tcheco, mas bem o sei que tendo reunido documentações sobre meus queridos antepassados, paternos e maternos, torna-se tudo um grande mistério... Minhas origens remetem, de lado paterno e do qual herdo tanto um sobrenome que por mim é sempre pronunciado com orgulho, aos russos brancos e, portanto, bem o sei não ser tcheco... E não o sou à prova das documentações que disponho, das histórias familiares que a mim foram contadas, como nada de tcheco carrego em minha fisionomia. Mas, que mistério foram-me capazes de trazer, estes que precipitadamente crêem, ao olharem para mim, cogitarem as origens minhas. Haveria ou não ser eu um tcheco? Não o sei. E da mesma forma com que peco, não dispondo de respostas à origem de meu nome, que a alguns soa moderadamente sombrio e atraente, quem sabe, à teia daquilo que me é pronunciado, tivera eu, finalmente, um antepassado daquelas terras longínquas. E que revelam-nos a heráldica, pois, senão mistérios que alimentam o interesse pela descoberta? Pensar que há séculos ou milênios atrás, gloriosos antepassados meus tiveram de partir em busca da inabitada e bucólica terra que hoje, diante de meus olhos, prospera a encantar-nos com sua hospitalidade. Mas, inquestionavelmente bem o sei que esta harmonia, toda a forma com que distraio-me em divagações sobre minhas origens, o florescer de um momento mágico, é incapaz de segurar a corda que por mim é prazerosamente desfiada, sentando-me enfim à aconchegante catapulta de minhas crises existenciais.”. Seu nome lhe soava estranho e mesmo movido por uma inquietante curiosidade, em nada fora capaz de encontrar uma resposta concreta. Pensara que assim como as categorias estabelecidas por Durkheim para explicar o suicídio, quem sabe fosse ele fruto de um impulso sem qualquer explicação. De antemão, seu nome, sua pólvora, parecia-lhe fruto de um inconsciente.

Estratégica era a forma com que Pawerl aprimorava os blocos de pedra que impediam o transparecer de suas inquietudes. Internamente, era um rapaz de crises constantes, diárias, incessantes e, sob sua própria vontade, intermináveis. De nenhum modo tratava-se de uma crise negativa e capaz de tornar-lhe mais um dentre tantos inúteis cujas vidas mantêm-se na obscuridade de uma monotonia que não lhes brota perguntas ou respostas. Sua crise, no entanto, era o martelo de sua renovação. Carregava consigo uma infinidade de complexos, por mais que ao fundo guardasse todos os motivos do mundo para orgulhar-se de si, de seus talentos, seus passos, suas origens. Servia-se-lhe da crise e do forçado complexo de inferioridade como um instrumento que sob seu próprio comando, deveria impulsionar-lhe para além do homem que era. Como alguém que pouco dispõe de areia ou obras primas, mas dotado de magnífica criatividade, constantemente estava a fazer das ruínas de seus castelos a matéria prima de novas criações. Inabalável mantivera-se sua disposição.

Não apenas relembrara com admiração certas passagens importantes do contato que tivera com os ensinamentos da Pérsia, como, de algum modo, fizera com que o romper da dualidade lhe fosse a ponte de compreensão em relação à sua própria vida, devendo, portanto, ser ele o seu próprio Zoroastro. Passara ele a não mais obstruir o fluxo de sua natureza, mas a entendê-la, a dar-lhe a voz que necessitava. Deste modo, reconhecendo a hiperatividade que lhe era instintiva, bem o sabia que sua meta era administrar todos os sóis que lhe fossem possíveis. A espiritualidade contemplada pelas mais diversas civilizações, cujo apogeu dera-se em tempos anteriores ao cristianismo, fora-lhe de precioso valor.

O simples pensar não lhe era o suficiente. Reconhecendo as inevitáveis falhas de sua prodigiosa mneme à exposição da irrepetibilidade dos tempos, tudo queria anotar, escrever, registrar. Que abandono desesperador, quase próximo da agonia diante de um último instante, era capaz de sentir ao não dispor de instrumentos para pincelar em forma de palavras momentos que posteriormente não seriam detalhados com a mesma riqueza e precisão. Do mesmo modo que Heidegger fizera-lhe pensar que ao nascermos, temos idade suficiente para morrer, corria-lhe um pânico que dilatava suas pupilas oscilantes, pois, de forma constante, o presente acontecimental morria, caía como o corpo de um traidor fuzilado diante de si. Não sentia o inquestionavelmente mencionado trauma do nascimento, mas a traição. Sentia-se traído por si mesmo desde o momento em que se deparava com o mundo à sua volta, sem que detivesse o mínimo de controle sobre as ações que o cercavam. Tanto se questionava, mas sentia-se como se imobilizado, estivesse alheio àquela complexidade de mundo.

Relembrara o caso de um amigo cuja proximidade perdera-se ao junto do silêncio de cinco longos anos. Dissera-lhe ele que dispomos de pouco tempo a nós mesmos. Por circunstâncias da vida aquele que há tempos repetira-lhe isto, por agora se encontrava junto de um mosteiro. Pawelr, incapaz de compreender e dedicar-se a elaborar os motivos pelos quais seu companheiro optara por este trajeto de vida, forçava-se a ressaltar repetidamente, como uma espécime de tantra, que de algum modo deveria dispor mais tempo a si próprio. “Culpo-me por não ter estado ao seu lado, meu amigo... Amigo meu, que hoje se encontra incomunicável, mas não morto. Ah, meu caro, que lhe teria acontecido para hoje, da boca de estranhos, eu estar sabendo que está tão longe! Relembro aos tempos em que você, em seu ápice de inspiração artística, enviava-me extasiado o que era fruto de sua sensibilidade e de mim, um privilegiado, esperava uma resposta... Sinto como se parte de meu silêncio, de nosso afastamento, fosse capaz de fazer-lhe hoje estar onde está... Se você deve me agradecer ou me amaldiçoar, é, pois, tudo uma questão de tempo... Mas ah, que destino você tomou... Tomou-o sem ao menos consultar-me!”.

Durante tempos tivera ele a oportunidade de trabalhar como gerente de um pequeno mercado. Com uma carga horária que não ultrapassava a vinte horas semanais, colaborava, gerando ou não resultados, com tudo o que lhe era solicitado. Esforçava-se a fazer com que de seu trabalho pudesse também encontrar um meio de dignificar-se, engrandecer-se, tornar-se nobre. Aquele patrão, que aos outros se mostrava rígido e exigente, por Pawelr guardara um amor, uma proximidade originada de momentos não muito agradáveis. Paula, sua mulher, perdera o segundo filho e sem que os médicos pudessem compreender, tornara-se estéril. Gerd, amigo de Nicolai – pai de Pawelr – oferecera-se aos cuidados do menino como meio de dar a ele o amor ao filho que à Paula fora inconcebível. Nicolai, filho de russos camponeses, mantivera-se por tempos como que indiferente diante de seu próprio filho. Homem cujos interesses financeiros soterravam-lhe o gélido coração, fizera, de forma proposital, a manter seu filho longe de si e mesmo de sua esposa Heidi, neta de austríacos que se estabeleceram ao Oeste do Paraná. O propósito de Nicolai era fazer com que em longo prazo, os laços criados entre seu pequeno Pawelr e Gerd rendessem-lhe oportunidades de negócios. Frio e interesseiro, inúmeras foram as vezes em que em discussões pôs-se a estapear Heidi, forçando-a a manter-se longe de seu pequeno. À época, Pawelr, com seus passados sete anos, revelava-se um menino quieto e dotado de extraordinária percepção: tudo o que lhe era dito era digno de um comentário seu, por menor que fosse. O dinamismo era o seu prazer, sua busca. Mas a vida dera respostas a Nicolai. Sucesso obtivera o filho, tendo sido iniciado e com a ajuda que lhe fora dada, pôde aprimorar-se em ser elemento fundamental da prosperidade comercial de Gerd. Montara ele, àquela pequena cidade, seu quarto supermercado e, como recompensa não apenas à forma com que Pawelr fora capaz de preencher a falta de um filho que não poderia ter, dissera-lhe que pouco trabalharia, devendo ele dispor seu tempo a aprimorar seus interesses culturais. Com tempos, Pawelr acostumou-se à pequena carga horária que lhe fora proposta, sempre a trabalhar com invejável disposição. Próximo dos dezesseis anos, certa feita preenchera a algumas linhas de seu bloco mental, refletindo sobre a questão da esterilidade de Paula. “Que representa, pois, esta incapacidade de gerar? Uma catástrofe, quem sabe, tão grande quanto o músico que tendo desde cedo descoberto seu talento, perdera, por uma fatalidade, o precioso movimento de suas mãos. Dilacera-me o coração pensar na forma com que Paula, uma figura tão dócil e carinhosa, pôs-se a chorar quando fora por sua irmã elogiada ao deparar-se com meu comportamento. Haveria, pois, fim pior a um artista senão algo que lhe barrasse de dar vida às suas mais belas criações?”.

Com o passar do tempos, Gerd falecera. E junto de toda a dor que sua despedida causara àquele por quem mantivera, até os seus últimos dias, um amor de pai, Pawelr obrigara-se à busca de um novo emprego. Forçara-se, à necessidade de sobrevivência e ao sustento da mãe, a aceitar o cargo impróprio que por um antigo amigo de seu pai lhe fora proposto. E às braçadas de um trabalho que como uma cachoeira a verter um tórrido suor, Gerd ocupava-lhe a mente. Pawelr conciliava as mais árduas atividades do campo com lembranças que impulsionava seu empenho em compreender o significado de uma perda tão significativa quanto aquela. Perdera, admitindo apenas para si, o pai que não tivera, ao passo que seu gerador biológico há tempos morrera em vida. Durante os últimos anos, à forma desanimada com que Paula seguia em seus dias, Gerd, através de seus hábitos alimentares, esteve a colaborar com o que em tempos brindar-lhe-ia com o fim de vida. Gerd, ao fim, caminhava com naturalidade ao término de sua jornada repleta de brilho. Inesperado por alguns, surpreendente fora seu fim. E Deixando-se seduzir por um homem cuja simpatia era estratégica, Paula, ao término de um mês, vendera a todos os restantes bens de Gerd e com o dinheiro que deles obtivera, comprou um novo lar. Para longe, junto daquele que em tão pouco tempo tornara-se seu novo marido, partira a passar com rapidez e agressividade uma borracha a todos que até então se mantiveram próximos dela. Não mais lembrara de Pawelr. Conformara-se com a esterilidade, transformando-a, de certo modo, no maior sinônimo da sustentação do comportamento insensível, interesseiro, egoísta e inescrupuloso que assumira.

Também com o amor, muito se iludira. Fora precioso com que uma verdadeira sucessão de catástrofes fosse capaz de despertar-lhe, fazendo-o reconhecer que até então buscava a utopia de amizades próximas e duradouras, bem como o amor que à lógica da Síndrome do Santo Graal, fizera-o pensar em uma companheira que por sua aparente perfeição, assemelhava-se, pois, às deusas de um indestrutível panteão hiperbóreo. Figuras dignas de sua admiração, cujas ações específicas inspiravam-no a acreditar no sentido de seus sacrifícios, passaram a ser revistas. Werther, a quem tanto admirava, passara por um processo de releitura. Não negava o quanto lhe fora importante, mas não mais acreditava que o antecipar-se voluntariamente à morte lhe fosse algo digno de respeito. Não mais sonhava, na possibilidade de não ser correspondido por aquela a quem tanto amou, lançar-se, junto de um coração arrancado que carregaria em mãos, ao abismo dos maias. Pawelr vivenciava um período de transição e como todos os valores que se opõem a algo que outrora lhe fizera desmoronar-se, todos os sacrifícios à busca de um amor por ele passaram a serem encarados como um sinônimo de decadência. Diante de um espelho repleto de mistérios, de um misticismo sobre o qual se interessava descobrir, ainda que pouco dele compreendesse, sentia, sobre o rosto fino e pele de delicados contornos, tornar-se rubra. Diante de si, imagens percorriam-lhe à mente amostras, fragmentos de uma mefítica postura que fora capaz de assumir, à busca de algo que não lhe correspondera. Relembrava, de forma precisa e involuntária, a toda aquela gama de atos submissos que ofertara àqueles por quem acreditava ele ser eternos em proximidade. Não percebia, àqueles instantes de eufórica vergonha de si, que descobrira o amor por si. E novamente sem que se desse conta, a segunda escama de suas experiências vitais caíam à sua volta. E um novo ciclo desprovido de linearidade, regularidade, simetria e métrica, enfim, tudo o que é previsível sob o condão matemático, dava indícios da vinda de um novo Pawelr.

Voltara-se para si, durante todas as suas longas e frias noites, tão frias que o animavam a sentir a ventania que movimentava as cortinas daquele aposento onde propositadamente mantivera-se confinado. Organizava com cuidado a seus pertences, tornando aquele seu pequeno espaço a ponte para onde deveria caminhar à busca de novos prazeres, sensações, sonhos. Fortes e atrativas lhe eram as ventanias e ao modo grego, presentearam-lhe com incontáveis resfriados que apesar de debilitá-lo, enfraquecendo a seu corpo, a disposição de seu espírito continuava impressionante. Com a música passara a reativar seus laços. Usava-a amenizando as inquietudes de um espírito recém surgido de escombros. Através dela, encontrava-se em outros tempos. Respirava o ar que somente nos é permitido quando a nostalgia preenche-nos o peito, aos primeiros instantes de nascimento de um novo eu.

Pawelr engrandecera à experiência de dificuldades que com esforço fora capaz de suportar e superar. Trocava por mais uma vez, sem que pudesse perceber ou mesmo compreender, suas próprias escamas como fruto da maturidade que alcançara. A renovação de si passou a ser-lhe, enfim, a mais recompensadora forma de presentear seu espírito que tendo derramado a essas escamas da experiência, desperto e intocável deleitara-se com a poupa das mais saborosas laureias da vida.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 24/08/2009
Código do texto: T1771607