O Prelúdio da Bailarina

Foi antes daquela que seria sua última apresentação do verão, que Alice secou seus olhos timidamente úmidos. A bem da verdade, sabia que não era apenas aflição, e tampouco a última vez que estaria entre aquelas bandas de artistas. Ou seria de sonhadores? O que mais a encantava era o ritmo acelerado que o coração tomava de antemão nestes momentos. Sentir os dedos todos abraçados, imaginar quantas pessoas estavam atrás das cortinas e o principal: saber que tudo isso que sempre imaginava passaria no momento seguinte. Gostava de pensar nas coisas e saber que, do passado para futuro, o presente passava com pressa, e então, era nisso que ela se demorava. Tinha olhos atentos por apreender as pequenas coisas ao seu redor nesse movimento de passagem permanente que era o agora para o depois. Tudo aquilo que a antecedia, atravessava e seguia viagem.

Em vez de continuar até o palco, parou com um pé ainda no ar durante seus pensamentos. Nesse espaço entre seu passo e o palco, o mundo congelou e apenas seu coração continuou a bater, embalando sua imaginação. Sua vida passava aos olhos como se fosse filme: suspirou para observar…

…Começou ao ver Fabiano no quintal falando dela. Lembrou com carinho daquele que apostou suas fichas e seu coração em sua promessa de dançar. Dizia Fabiano, seu primo:

- Não é que essa menina só anda saltitando? Vai ver dá para essa coisa de dança. Vai ver não!

Ouvir Fabiano sempre a fazia abrir meios-sorrisos… era um tal disso ou daquilo, nada era completo. Era sempre meio feliz, meio triste, meio irritada. Tudo pela metade porque o “ou” estava sempre salpicando pedrinhas de gelo nos sentimentos. Mas era coisa de Fabiano, que só tinha certeza de se chamar Fabiano mesmo - diferente de Alice. Quando era menina, a única coisa que teve certeza, desde que seus olhos brilharam pela primeira vez, foi de que queria o mundo todinho para ela. Queria cada espaço vazio, preenchido, para alugar… queria tudo! Fabiano costumava propôr:

- Lili, minha flor, vamos com calma nesses sonhos que tuas pernas são pequenas.

Chamar de Lili era aquele atestado de descrença, Alice então dizia com força:

- Senhorita Alice, por favor, pois já tenho 17 anos e tenho quase sua altura.

Falava isso com a respiração de uma rajada só, para dar sinais de segurança. Costumava ficar impaciente com as diferenças em relação a seu primo. Como podia ser tão indeciso, lento e desatento com a vida? Alice, então, pensou:

- Pronto, vou parar com essa história de falar gíria e chamar de nome cortado no meio. Senhor doutor Fabiano Assis, por gentileza. Fabiano, por obséquio. Bonito, isso! Vai ver tratá-lo com firmeza ajude a despertar alguma postura com a vida, mais envolvimento com o que se passa, pelo menos.

Seu arsenal de boas maneiras durou um tanto ainda, pois descobriu que as palavras saiam sem força de sua boca. Foi dormir com classe depois dessas palavras floreadas que, de fato, não sabia bem o que eram, mas sabia que eram de impressionar. Ao dormir Alice pensou tantas coisas que não sabia se teria tempo para fazer aquilo tudo, colocar aquilo tudo na ponta do lápis. Ou na ponta dos pés?

No dia seguinte, acordou ereta, pulou da cama na ponta dos dedos e assim pensou: “De agora em diante eu não ando, eu danço!”. Isso só pode ter sido a tal classe que levou para cama no dia anterior e entranhou dos cabelos aos pés. Pois sim, queria mesmo era pincelar seus passos porque pisar era muito rude para ela.

- Que aventura essa menina andar, digo, dançar entre carros e avenidas. Resmungava Fabiano.

Desse momento para frente, não foi vista mais andando como todos. Alice tinha uma leveza tão grande que mal tovaca o chão. Andava fazendo contratempos em seus passos. Ora arriscava um plié. Seu andar deslizava em círculos ao olhar o céu, que também parecia seguí-la em nuvens. Se surpreendeu por nunca ter olhado com mais calma as nuvens e se emocionou. Foi quando alcançou um rastro de azul pincelado no braço e estranhou ao perceber que não caíra do céu, mas sim de seus olhos verdes. Lembrava mais…

Aventura foi tal coisa recém acontecida. Aventura verdadeira foi se demorar naquele momento de não saber nomear o que se passara com seus olhos. Tudo que sentia saia por ela, a ultrapassava: eram seus pés que dançavam de alegria, seu coração que marcava o tempo, seus olhos que suavam em gotas e suas mãos que regiam toda aquela musicalidade. Vez por outra seu coração errava o tempo, perdia o ritmo em aceleradas, mas isso não chegava a ser problema a não ser pelo breve descompasso com o corpo. Alice sentia em silêncio:

- Talvez pudéssemos prescindir de algumas palavras para sentir as coisas em vez de reconhecê-las. Com isso, não bastaria ver um céu azul, mas poder carregar no corpo o que causa saber que acima de você tem o infinito e que só o que se pode saber é que se chama azul. É porque no intervalo entre o céu e eu - eu pequena, ele infinito - acontece do azul me transbordar que nem flor de primavera. E de me perder nas nuvens de tanto prazer.

- Meus olhos deram sinais disso pouco antes, quando minhas pernas já corriam mundo e, diante do meu último passo para o céu que se chamava palco, o silêncio me invadiu e eu observei - para não me atraver a entender o que me acontecia de sentir ali! Percebi meu pas de deux solitário. Eu escutava o silêncio que me conduzia de um passo ao outro, do passado para o presente. Sem pressa de sentir meu coração acelerado.

- Silêncio, silêncio!! Silêncio, por favor!

- Respeitável público!

(Aplausos)

- Acorda bailarina. Alice? Alice! O show vai começar!

Gisela Giannerini
Enviado por Gisela Giannerini em 11/08/2009
Reeditado em 11/08/2009
Código do texto: T1748902
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