O Assassinato da Cobra

Teresa Mariana morria de medo de cobra, venenosa ou não. Morria não, tinha pavor! Esse medo era coisa que vinha de longe, lá da infância. Um belo dia, visitando uma tia-avó que muito se gabava de muitas cobras já haver matado, e sempre ter guardado o pau pra provar a façanha, Teresa Mariana se viu num aperreio danado. -- Até mesmo numa sexta-feira santa, minha filha, cobra não lograva de mim escapar -- contava a tia, toda serelepe.

Deu-se que nessa visita, estando só, em casa, Teresa, um cachorro e a tia, no terraço de uma casa de sítio, lá nos cafundós da Bahia -- bem no meio de um monte de tijolos, próximos à calçada da casa dispostos --, eis uma cobrinha, tranqüilamente a dormitar... Para Teresa, a descoberta foi um susto, e dos grandes que só! Depois de dominar a tremedeira, tentou aproximar-se da bichona para ver o que fazer. E a bichona lá... não se mexia, nem nada.

-- Estaria morta? -- pensou Teresa. Logo cogitou a idéia da coisa cutucar. Aí lembrou-se do ditado da onça, dito que aconselha: melhor é vara bem longa usar!

-- E se eu cutuco e a bicha cisma de vir aqui, pra dentro de casa? Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! E se eu deixo a bicha lá, quieta, fico aqui, o dia inteiro, velando seu sono de beleza, ao sol?

Da cobra, só se via a cabeça, nos tijolos bem apoiada. Pelo padrão da pele, bem podia ser uma Jibóia. Teresa Mariana não conseguia dizer com certeza, lá de onde estava. Se fosse uma Jibóia, até seria poupada, pois Jibóia não tem veneno, mas se fosse uma Jararaca... Bezerra da Silva quiçá tivesse razão: “Depois que mataram a Jibóia, Jararaca deita e rola!” Tentou reconhecer pelo formato da cabeça. Qual nada! O medo a impedia de raciocinar: -- Em se tratando de cobra, tem mais é que matar!

Teresa Mariana decidiu não ficar mais ali, para ver. Foi até a cozinha e colocou uma panela cheia d’água pra ferver. Nesse momento aparece a tia e pergunta o que Teresa, de tão branquela, tinha. Mariana contou da cobra para a tia, que mesmo já por volta dos oitenta se pôs a vibrar: -- Cadê, cadê a bichona? Me arruma um pau que eu vou lá matar!

-- Que é isso, tia, sossegue o facho! -- disse Teresa -- Já coloquei água para esquentar. Não gosto de crueldade com bichos, mas para o lado de cobra não convém vacilar. Talvez já tenha ido embora, quando eu lá voltar... -- Ao pensar em para onde a cobra poderia se arrastar, Teresa constatou: -- Ai meu Deus, me perdoe, mas enquanto eu não vir essa cobra mortinha, aqui não posso mais ficar! Ou ela, ou eu!

Água fervendo. -- É agora ou nunca! Coragem mulher... -- pensou Teresa -- Cadê a tia? Ai meu Deus, lá se foi a velha com vara curta a ‘onça’ cutucar. E Teresa gritou:

-- Tia, espera tia. A água já está fervendo! Eu chego já! -- Correu com a panela cheia, e quente, para antes do cachorro -- e a tia -- a cobra alcançar. O mais estranho é que a bicha não se mexia...

-- Será que está morta? -- pensou Teresa, mais uma vez.

Quem muito pensa, pouco age, por isso VAP! Lá se vai água quente na cabeça da cobra. Devagar, quase parando, em câmera lenta, a cobra foi se movendo de um vão a outro, bem no meio do monte de tijolos. Teresa gritava e segurava a tia, que insistia em se aproximar e, com um pau, a cobra acabar de matar. Teresa não sabe mais se foi o susto, mas estremeceu com o tamanho da coisa: mais de metro e meio, por certo! -- Ah faltou uma câmera pra tirar uma foto...

Teresa teve a impressão de que se tratava mesmo de uma Jibóia e não de uma Jararaca, para sua imensa tristeza. Pela primeira vez na vida sentiu-se uma assassina. Nem podia dizer que havia sido em legítima defesa, pois a cobra, de fato, sequer menção de ataque fez. E Teresa, do que fizera, imediatamente se arrependeu. Mesmo sendo uma cobra, tratava-se de um ser vivo, que vivo deveria permanecer. Carregou aquela culpa por um bom tempo. De onde será vem esse impulso primeiro: do que tememos (e desconhecemos) querer logo destruir, matar?

O cadáver da cobra não foi encontrado, o que lhe fez sentir ainda pior. Talvez tenha se arrastado para muito longe, e com certeza sentido muita dor, pelas queimaduras. Tanto alvoroço pra ver a cobra morta... taí, de nada adiantou! Esse episódio aconteceu já há algum tempo, mas ainda hoje Teresa Mariana sente-se mal, ao relembrar. De lá para cá passou a ser mais empática, também com ‘esses’ animais, sejam cobras, insetos ou lagartos. Se bem que de cobras sempre diz: -- Melhor eu aqui, elas bem pra lá, longe de mim!

Ontem, sentada num ponto de ônibus, Teresa Mariana percebeu uma pequena aranha passeando por sobre sua bolsa. Num impulso, quis matá-la, mas a imagem da cobra assassinada lhe veio à mente, e ela deixou a aranha por lá... Não, de aranhas Teresa não tem medo. Pois é... a vida é assim mesmo. O que seria de nós, humanos, se uma espécie ‘superior’ nos tratasse exatamente como Mariana a cobrinha tratou? De vez em quando é bom parar, e meditar... Pense: você tomando um solzinho na Praia de Copacabana, chega alguém e lhe joga na cabeça uma panela cheia de água quente. Tá doido! Dizem que o Sol brilha para todos. A cobra que encontrou com a Mariana (naquela época) não teve tanta sorte assim...

E tem gente que gosta tanto das bichinhas que até engole. Duvida? Preste atenção nesses versos da canção do Mestre Ambrósio:

“Bebeu cana nas três vendas

Engoliu cobra coral

Pra ir lá mano

Escuta o que eu digo a você

Beber com a cabocaria

Muito macho tem que ser

Pra pegar na cobra viva

Matar com o dente e comer”

Trecho de Três Vendas, Mestre Ambrósio (Composição: Siba)

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Revisado em 17.09.2010