O Caso do Senhor Pancrácio e das Cestas Básicas
Acolher, assistindo e buscando resgatar, ao máximo, o potencial de crianças, adolescentes e idosos, carentes e/ou especiais, vinculadas à Instituição, sem distinção de crença, raça ou nacionalidade, atuando, efetivamente, no seu desenvolvimento funcional, cognitivo, social, afetivo e espiritual, no intuito de contribuir para uma sociedade mais justa – Missão do Núcleo Assistencial Caminhos Para Jesus
I
Meu nome é Artemíades Pancrácio. Eu bem sei que este é um nome muito estranho e que sempre desperta bastante curiosidade nas pessoas. Porém, houve épocas em minha vida – principalmente durante a infância e a adolescência - em que esse nome esdrúxulo chegou de fato a me causar alguns aborrecimentos, muitas brincadeiras e gozações dos colegas e amigos. Isso tudo, no entanto, hoje já faz parte do passado e não me incomoda mais.
Outra questão: não me perguntem aonde é que o meu velho pai foi desencravar esse nome estúpido. Eu não saberia responder. E decerto que igualmente desconheço a existência de qualquer filósofo ou deus grego denominado Artemíades. O ponto máximo a que cheguei no objetivo de desvendar as origens do meu prenome foi o de pesquisar em alguns livros e artigos de medicina certo medicamento denominado “artemidis 35”, conhecido anticoncepcional feminino que obviamente nada tem a ver com o assunto em questão.
Quanto ao outro nome – o Pancrácio – sei perfeitamente que se trata de uma palavra de origem grega cujo significado é “aquele que a tudo vence”. Conclusão lógica e lingüística do meu nome: eu deveria me chamar Artemíades Aquele Que a Tudo Vence.
Devo comentar finalmente – e sem sucesso, aliás - que passei os últimos anos buscando descobrir uma alma gêmea que tivesse recebido um nome igual ao meu. É por essa razão que registro aqui uma grave recomendação aos gentis leitores e às simpáticas leitoras: peço-lhes que me comuniquem no caso de terem conhecimento de algum outro Artemíades Pancrácio perdido num desses muitos caminhos de que se compõe o velho e o novo mundo.
Mas agora que já me fiz apresentar a vossas senhorias, retorno ao fio da minha narrativa. Sou perito judicial e contabilista por profissão, com larga experiência e prática em cálculos trabalhistas. Durante muitos anos atuei em um sem número de processos junto às Varas do Trabalho de Minas Gerais, tanto na Capital quanto no interior do Estado.
E decerto que laborando como calculista judicial acabei vivenciando uma boa quantidade de histórias e algumas aventuras assaz interessantes. Um dia desses acabo registrando algumas no papel e ganho um dinheirinho vendendo a minha obra impressa.
Porém, dentre todos as histórias que presenciei, houve uma que se destacou. Vou contar sucintamente tudo o que me aconteceu e espero que no final dessa narrativa vocês dêem razão e crédito as minhas palavras e ao meu jeito de ser. Ou crédito e razão – caso queiram - já que é com registros como esses que se foi erguendo o mundo encantador dos contadores e contabilistas...
II
O fato então é que há alguns anos fui designado pelo juiz de uma das Varas do Trabalho de Belo Horizonte para elaborar uma perícia contábil em determinado processo trabalhista no qual o reclamado - certo senhor Domício - recebera do Juízo uma sentença totalmente improcedente. Aliado a outros fatores – devo concluir - aquilo acabara fazendo com que o tal sujeito perdesse também um bocado da sua compostura e do seu bom humor.
Devo esclarecer, porém, que não fui eu o causador de toda aquela confusão e que não fora essa de forma alguma a minha intenção. O meu papel nesse negócio foi de fato secundário: eu apenas cumpria as ordens emanadas do senhor juiz. Afinal - meus companheiros – sabe-se muito bem que é prerrogativa do meritíssimo homologar os cálculos constantes do laudo pericial e determinar a imediata execução do réu.
Antes, porém, que houvesse sido expedido o competente mandado de penhora de bens, comparecera o reclamado ao balcão da Secretaria e efetuara o pagamento das parcelas de que era devedor: a parte do reclamante, da seguridade social, do imposto de renda e das custas processuais. No entanto – e aqui se encontra de fato a origem de todo o meu drama - acabara o senhor Domício se esquecendo de quitar o valor de seiscentos reais devidos a esse ilustre perito que vos fala.
E o fato, meu amigos, é que a execução prosseguiu contra o reclamado, agora unicamente em relação aos honorários periciais. Foi por esse motivo que algumas semanas depois o senhor Domício acabou recebendo em sua residência a indesejável “visita” de uma oficiala de justiça que procedeu à penhora de um freezer e um forno de microondas pertencentes ao réu.
É exatamente neste ponto que a nossa história começa a tomar um rumo bastante complicado e a envolver de modo um tanto grave e brutal a vida deste perito judicial e de sua família.
O caso é que numa bela manhã do mês de abril – poucos dias depois que o senhor Domício houvera recebido a visita da oficiala – recebi eu um telefonema em minha casa. E ao atender o aparelho – meus distintos leitores – tive uma surpresa.
Em verdade uma surpresa terrível e assustadora!
Vejamos a seguir a que estou me referindo.
III
Senhoras e senhores: do outro lado da linha encontrava-se ninguém menos do que o reclamado, o tal senhor Domício. Dizia ele se achar naquele momento dentro de um táxi e a caminho da minha residência. Eu ficaria sabendo posteriormente que ele havia conseguido o meu endereço com o balconista da Vara do Trabalho onde corria o seu processo.
Entretanto, o detalhe mais importante e curioso em tudo aquilo era que aquele homem estava se dirigindo ao meu encontro com a única e exclusiva finalidade de me enviar mais cedo a tocar harpinha com Jesus no reino de Deus, isto é, de me tornar defunto.
O fato é que aquele freezer e o forno de microondas penhorados em razão da dívida haviam feito um estrago momentâneo na mente daquela infeliz criatura. E ele - como todo sujeito de estopim curto - vinha agora a minha casa para resolver de vez a questão.
Desliguei o telefone e imediatamente avisei a minha esposa. Apesar de tentar acalmar a todos – aos meus filhos, à patroa e ao Barnabé, o meu cãozinho de estimação – percebi que não conseguiria realizar tal façanha. Minha mulher se pôs logo a chorar e a gritar e o danado do cachorrinho aproveitou a ocasião e se despachou de vez para debaixo da minha cama. Eu mesmo comecei a me sentir um tanto receoso daquele homem e da situação na qual estava prestes a entrar.
No entanto – e como um bom perito contábil - pus-me imediatamente a calcular que talvez o melhor que teria a fazer naquele momento era mesmo conversar com o tal sujeito e tentar colocar um ponto final em toda aquela questão.
É certo que eu tinha a mais completa compreensão do perigo que estaria correndo, mas resolvi assumir o risco e a situação. Afinal, meus amigos, o meu nome é ou não é Artemíades Pancrácio, “aquele que a tudo vence”?
IV
Pois bem. Daí a pouco ouço tocar a campainha. Pedi imediatamente que a patroa se recolhesse com as crianças num dos outros quartos da casa e que me deixasse a sós durante algum tempo com o senhor Domício. Acontecesse o que acontecesse – ordenei friamente - não deveriam abandonar o esconderijo e nem entrar no meu escritório.
No entanto, logo que me vi frente a frente com aquele sujeito grandalhão, muito vermelho e irritado, percebi que teria mais trabalho do que havia imaginado a princípio. Calculei também – um pouco tardiamente, é verdade - que talvez houvesse feito melhor negócio se tivesse ligado para a polícia e solicitado um tipo qualquer de socorro ou proteção.
Não havia, porém, mais nada a fazer naquele momento. A sorte estava literalmente lançada. Voltei-me então na direção do senhor Domício e pedi encarecidamente que ele me explicasse os motivos que o haviam trazido até a minha casa.
Ele imediatamente declarou que isto se dera devido ao fato de que alguns dos seus bens haviam sido penhorados pela oficiala de justiça daquela Vara do Trabalho. Aquilo – afirmara-me ele – não era para ter acontecido de maneira alguma. Afinal - continuou o homem - tudo o que lhe pertencia fora adquirido com muita dificuldade e não admitiria ser espoliado daquela forma.
Ao dizer aquelas últimas palavras, o senhor Domício se encontrava num estado de agitação muito grande e – valha-me Deus! - foi exatamente naquele momento que eu percebi certo volume num dos bolsos laterais do seu paletó. Conclui imediatamente tratar-se de algum tipo de arma de fogo que ele trouxera consigo para completar o seu intento de encaminhar a minha triste alminha em sua jornada ao além.
Foi naquela hora que eu comecei de fato a temer pela minha vida. E não só pela minha, mas também pelas vidas de minha esposa, dos meus filhos e do coitado do Barnabé que nem conseguia entender o que estava acontecendo. Só havia agora uma saída: conversar. Conversar muito e tentar convencer aquele homem a agir de outra forma.
Pois bem: a primeira providência que tomei foi tentar explicar ao senhor Domício que eu não tinha a menor responsabilidade sobre aquele fato, que não fora eu quem enviara a oficiala de justiça até a sua casa. Confirmei-lhe em seguida que fatos como esses acontecem diariamente na Justiça do Trabalho e que aquilo havia sido uma determinação do senhor juiz.
Eu lhe afirmei finalmente que - se fosse o caso - eu até abria mão dos meus direitos de trabalhador convocado pelo sistema jurídico. Não me importaria absolutamente de não receber o valor que me era devido, já que ele, o senhor Domício, possivelmente se encontrava passando naquele momento por algum tipo de dificuldade financeira e que...
- O que o senhor quer dizer com isso, perguntou-me de imediato o homem, como se eu o tivesse ofendido profundamente.
- Ora – ousei responder – se o senhor não pode ou não tem condições de me pagar nesse momento, deve haver certamente um bom motivo para isto! Vejo que vossa senhoria é um homem honesto e que não deixa dívidas para trás. É possível então que esteja sem uma reserva financeira ou que...
- Mas eu não estou me negando a pagar ao senhor, corrigiu-me o homem imediatamente! O que eu não admito é que entrem em minha casa e me tomem os bens dessa maneira!
Senhores e senhoras: creio ter sido este o momento mais importante de toda aquela conversa, pois foi exatamente ali que eu percebi estar recebendo sobre mim um facho de luz divina que me orientou as idéias e indicou o caminho a tomar. Olhei diretamente nos grandes olhos daquele homem grandalhão e disse:
- Se é assim, senhor Domício, vou lhe fazer a seguinte proposta: ao invés de me pagar esses tais seiscentos reais, convido-o a doar esse valor ou pelo menos uma parte dele para uma associação beneficente de assistência social a que venho freqüentando há muitos anos, o Núcleo Assistencial Caminhos Para Jesus. Em contrapartida – continuei - vou amanhã mesmo à Vara do Trabalho onde corre o seu processo e comunico ao juiz a minha desistência de receber esse numerário...
Companheiros: ouso afirmar que a partir daquele momento a minha conversa com o senhor Domício tomou um rumo totalmente inusitado. Parecera-me que o próprio homem se transformara da pedra bruta que aparentara ser em seda e veludo, tal a maciez e a cordialidade das suas palavras. A partir daquele momento fomos colocando lentamente todos os pingos nos “is”: uma hora ele pingava um dos “is” e outra hora era eu, até conseguirmos expressar todas as nossas idéias, pensamentos e sentimentos. Quando dei por mim já eram mais de onze horas e o senhor Domício se recordou que precisava partir.
Mas o fato – meus amigos – o fato é que as últimas palavras daquele homem em meu escritório foram exatamente as que registrarei a seguir: que não era necessário que eu abrisse mão dos meus honorários de perito, pois que o trabalho é a coisa mais sublime e sagrada que existe no mundo; e que na verdade era ele quem iria se dirigir na manhã seguinte até a Vara do Trabalho para efetuar o pagamento do restante da dívida...
V
Conclusão: a partir daquele dia eu e o senhor Domício viemos estreitando os laços da nossa amizade. Acabamos estreitando tanto esses referidos laços que de vez em quando até vamos juntos ao Mineirão assistir ao clássico entre o Atlético e o Cruzeiro. Às vezes – por exemplo – eu passo na casa dele, jogamos as crianças no banco de trás do seu fusquinha e embicamos rumo ao estádio Governador Magalhães Pinto.
É certo que não freqüentamos o mesmo local da arquibancada. Afinal, o senhor Domício é atleticano doente e eu sou um cruzeirense apaixonado. Cada um de nós se dirige então para o lado do campo que lhe compete e ali nos posicionamos com os dedos cruzados e torcendo para que algum dos nossos respectivos atacantes – o Diego Tardelli ou o Kleber – consigam furar respectivamente as defesas e as redes dos goleiros adversários, o Fábio e o Aranha.
Mas como amizade é amizade, no final de cada partida sempre arranjamos um tempinho para colocar o papo em dia e trocar uma ou outra idéia sobre esse ou aquele lance controvertido do jogo.
Quanto às cestas básicas – meus leitores - fico feliz em informar que o meu amigo continua prestando a sua boa colaboração ao Núcleo Assistencial Caminhos para Jesus. Atualmente – inclusive - passou ele a fazer freqüentes visitas às crianças da instituição, lhes doando todos os meses cerca de cinco ou seis cestas básicas.
O correto - meus amigos - é que sabendo a hora certa de ouvir e de falar a gente sempre consegue se entender com o outro. E devo comentar que ainda não inventaram nada melhor para desopilar o fígado do que uma conversa amigável e amena. É por isso então que eu digo que o diálogo só faz bem à alma, além de sempre encontrar soluções para a maior parte dos nossos problemas ou males.
Sendo assim – e para terminar essa narrativa como um autêntico “contador” de histórias - noves fora, nada...