Vestido branco

Era só um vestido branco e sem mais delongas sobre sua descrição. Apenas um vestido branco, muito adequado ao clima primaveril de cidades temperadas, ou mesmo ao outonal de ruas tropicais. O tecido era qualquer um, sem grande luxo ou má qualidade, nada especial. Nada demais.

Ficava pendurado ali, num cabide, nos fundos da loja toda de madeira que se entregava para uma rua movimentada por todo o tipo de freguesia: desde os batedores de carteira que espreitavam feito leões em uma savana africana para um bote certeiro que lhes valeria alguns reais, até a alta classe financeira que insistia em tentar se misturar ao que eles próprios gostavam de caracterizar como ‘gentalha’.

A vitrine hialina era uma selva de manequins exóticos trajando roupas diversas, para agradar a todos os tipos de consumidores. Sobre as cabeças dos bonecos, o letreiro imenso se destacava dentro do inferno de microlojas monótonas: MADALENA MULTIMARCAS.

A chegada do inverno sempre trazia certa expectativa de lucro para as lojas de roupa, sobretudo para as que assumiam maior porte com o passar dos anos e começavam a adicionar aos seus produtos toques mais requintados, como era o caso da MADALENA.

O nome vinha, obviamente, da fundadora, Dona Madalena Jeubião, uma negra que emigrara dos confins do nordeste e se casara com um português dono de uma confecção. Quem teve a idéia de montar a loja foi a Madalena, em 80, mas o estabelecimento só foi aberto em 1986, com a morte da mãe do tal marido, que desaprovava quase tudo que tivesse relação com Madalena.

“É preta, sim, mas é boa pessoa” cantarolava ela, com seu sotaque açoriano quando telefonava para uma ou outra irmã, perdidas por algum canto de Portugal. Gostava da moça, a portuguesona. Gostava tanto que a chamava de Madá. E o apelido pegou.

“Mas loja já é demais, meu filho. Se essa moça te passa a perna... ainda ficas aí, sem tostão e sem mulher”

E o Francisco não conseguia convencê-la. E ninguém conseguia.

“É um sarrafaçal, mesmo, esse Francisco” reclamava Diva, a mais letrada das vizinhas do casal quando Madalena se queixava das censuras da luso-sogra “Não tem coragem de encarar nem aquela velha bigoduda”

Maldade da Diva, ela não tinha tanto bigode assim.

Mas no natal de 85 a sogra não levantou do sofá que tanto adorava. O filho ficou inconsolável e não parou de chorar até descobrir que herdara da mãe tudo. Ou quase tudo. Ganhou o apartamentinho que ele alugou. Ganhou o gato septuagenário que morreu uns meses depois da dona. As poupanças da mãe. E as jóias.

O guarda-roupas, a velha deixou para a nora.

“Aquela vaca era toda atarracada, claro que não ia caber nada em você” reclamava todo dia a Diva.

Mas a Madalena não amaldiçoava a defunta, pelo contrário, tinha plena consciência que graças a essas roupas o seu sonho se realizaria em breve. Largou a carrocinha de Acarajé e foi tomar conta da construção da salinha que o Francisco tinha encomendado.

“Aqui vai ficar sua lojinha, meu amor” ele disse uma vez, e depois a beijou, enquanto seus bigodes hereditários roçavam no rosto da esposa.

E o português fez umas blusas e umas calças pra esposa vender.

Já as roupas da portuguesa foram vendidas em segredo pela nora, a fim de evitar a ira do marido, frouxo, mas bronco.

“Você nunca que vai vender essas coisas horrorosas” praguejava Diva, a agourenta. “Sem falar que essas cores me dão nevralgia”

A Diva não sabia o que era nevralgia. E foi trabalhar na loja da Madalena.

Entre os vestidos terríveis a Diva gostou de um. Era um branco, singelo e moderninho.

“Nem acredito que isso aqui foi da matrona bigoduda. Posso ficar com esse?”

A Diva ficou com o vestido que na época coube nela.

E os outros venderam, nunca se soube muito bem como. E a loja da Madalena ia crescendo e crescendo, todo dia um pouco mais.

E a confecção do Francisco não. E o português trangalhadanças começou a ficar visivelmente irritado com o sucesso da esposa. Quando descobriu a venda dos vestidos da mãe, estourou.

“Sua preta filha de uma puta”

E daí para pior. Brigaram. Ele saiu de casa. E nunca mais voltou. A Diva descobriu que ele foi atropelado por uma camionete numa rua ali perto, mas isso só uns dias depois.

Nisso a Diva engravidou.

E o vestido branco ficou apertado. E a loja ia aumentando, e a Diva ia aumentando, e o vestido ia aumentando, e a Madalena ia ficando triste porque estava sozinha. Aí a Diva tava vestindo a tal da peça branca quando entrou em trabalho de parto.

O filhinho era a cara do Francisco, e a Madalena reparou isso no dia da primeira visita à amiga no hospital. Mas não falou nada.

E a loja continuava aumentando, e agora era uma sociedade da Madalena com a Diva, e a Diva não tirava o vestido branco.

Já era 1992, e o filhinho da Diva já tinha 4 anos, quando a Madalena resolveu falar que sabia do caso da Diva com o Francisco. A Diva negou, a Madalena chorou, bateu na Diva, e chorou mais um pouco.

Então a Diva resolveu ir embora, disse que não apareceria mais na frente da sócia. Desculpou-se, agradeceu, e foi-se de mãos dadas com o filhinho.

Deixou o vestido, pendurado lá no fundo da loja.

A Madalena tocou a loja para frente até quase o final da década. Mas continuou sozinha. Morreu em um dia qualquer de uma doença qualquer e quem assumiu a loja foi a sua gerente, a Telma.

A Telma era lésbica. Diziam que ela já tivera um caso com uma atriz famosa. Isso ninguém sabia se era verdade ou não. Mas todo mundo sabia que ela namorara uma tal de Úrsula. Para a Úrsula ela deu um vestido branco que tinha na loja e ninguém comprava. A Úrsula amou o vestido. Mas um mês depois ela resolveu trocar a Telma por um homem. Devolveu o vestido. Pediu desculpas e foi embora. E a Telma colocou o vestido nos fundos da loja.

No mesmo dia a Telma tentou se matar, mas só conseguiu uma cicatriz no pulso e uma imobilização do braço esquerdo, que se tornou praticamente inútil.

Não fez muita diferença: recentemente, a Telma simplesmente dava ordens para as atendentes. Ela liderava um time com 5 vendedoras que trabalhavam da melhor maneira possível com todo o tipo de clientes.

Todas apresentáveis, educadas, e sempre sorridentes e laboriosas. Ou quase sempre.

A Carla tinha esquecido as pílulas em casa. Estava menstruada, havia brigado com o namorado e ainda tinha que agüentar um pernóstico pseudofidalgo narrando toda sua árvore genealógica para explicar-lhe que era tetraneto de um barão do interior da Baviera. “Mas o senhor quer que tipo de blusa?” ela perguntava insistentemente, enquanto massageava o lóbulo direito.

“Contudo, meu avô padeceu em combate, pobrezinho, durante a Segunda guerra, derramando sangue real no campo de batalha”

“Mas o senhor quer que tipo de blusa?”

“O que a senhora tem de mais sofisticado e formal, para o tetraneto de...” e tornava a repetir tudo que já havia dito algumas vezes.

Por fim, Carla conseguiu convencer o doidivanas de comprar uma blusa horrorosa com um emblema terrível na frente.

À porta, o fidalgo cruzou com uma moça tímida de seus 22 anos.

“Poderia me ajudar a escolher algo?” perguntou a moça

“Claro” respondeu a contragosto, Carla, com a cabeça pulsando com força.

“Faço um ano de casada hoje”

Sem paciência alguma, Carla lançou à moça, que posteriormente descobriria se chamar Cláudia, alguns vestidos extravagantes, decotados, que valorizavam formas e curvas. Mas a moça recusou roupa após roupa.

Quando quase desistia, apontou para o vestido branco, imaculadamente branco, pendurado no fundo da loja. “Aquele”.

“Oi, amor”

“Oi”

“Lembra que hoje é...”

“Sim, vamos jantar”, ele sorriu. Um pouco impaciente.

“É. Vamos.”

Ela mexeu algo na panela. Disfarçou uma tristeza clara.

“Não lembra por que esse jantar especial hoje?”

“Ah, amor. Eu não tenho memória para datas. O que?” ele estava apressado, claramente.

“É nosso aniversário de um ano. De casados”

Ele congelou. O rosto afilado, o bigode, tudo pareceu congelar.

Ele se aproximou e beijou-a, longamente, enquanto o apartamento mergulhou em completo silêncio.

Depois a soltou, lançou-lhe um sorriso e esperou um pouco até o momento certo para dizer o que queria:

“Mas meu amor, depois do jantar eu vou ter que encontrar com... o pessoal do trabalho”

“O que está acontecendo, Francisco? Não era assim.”

“Não era assim o que, Cláudia? Está tudo bem. Eu vou jantar contigo”

“Não é jantar. Francisco, é sério, você não.. não nota mais em mim”

“Eu te amo, Cláudia”

“Você tem outra.”

“Claro que não. Não fala merda.”

“Tem sim. Não mente.”

Ela já chorava desenfreada, a essa altura.

“Eu aposto que você tem outra. Você não me ama mais. Por que?”

“Para com isso, Cláudia” ele começava a se irritar.

Aí a discussão tomou rumos problemáticos.

Ele se defendia das acusações de adultério. Ela gritava. Dizia que ele jogara todo esse tempo no lixo.

Ela o xingou. Sem controle dos seus movimentos ele a acertou com um tapa, certeiro, na face esquerda. Ela devolveu o golpe e logo estavam brigando.

“Quem é a puta?”

“Cala a boca! Você não sabe o que fala”

Ela pega uma faca.

Ele coloca os braço na frente, mas ela corta o braço esquerdo dele, que abaixa, por reflexo.

Ela o acerta nas costelas, corta um pouco da própria mão. Mas está tomada pela raiva, o acerta no pescoço, e o sangue açoriano escorre e jorra, nas paredes, sobre a pia, ela o acerta no peito repetidas vezes e não consegue parar.

Ele cai no chão, sem vida. Ela chora.

Cai ao seu lado, apavorada, não consegue respirar. O vestido a aperta.

Ela se despe, como se assim pudesse se libertar do pesadelo, do assassinato.

E de repente está seminua, sentada em uma poça de sangue.

Ao lado do cadáver de seu amado ex-marido e de um vestido. Não mais tão branco.

Joao L Terrezo
Enviado por Joao L Terrezo em 02/08/2009
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