O PALHAÇO.

     Somente no interior do país, em cidades pequenas, podemos ter experiências incomuns, difíceis de serem experimentadas em grandes centros. Recordo-me de um jantar entre amigos da presença do Palhaço Cheroso do Circo Kalahary, que estava na cidade. Cheroso beirando os 80 anos de vida não estava mais na direção do circo, seu filho mais velho o Palhaço Cherosinho é quem chefiava a trupe. Seu pai, vez ou outra, seguia a companhia itinerante para rever os vários amigos, nas várias cidades por onde passara no decorrer de sua vida. Sua ótima memória ainda lhe permitia contar causos dos primórdios daquela cidade, sem que lhe faltasse a menção de um nome ao menos, dos moradores de então. Certa vez, a lona do circo, em meio a uma tempestade, foi destruída pelos fortes ventos. O circo não tinha como continuar, nem recursos para a reforma de sua lona, Cheroso estava para desistir da vida circense e de sua trupe mambembe. Mas para surpresa geral, uma empresa da cidade, comprou uma lona novinha e presenteou o circo. Depois de montada a trupe se apresentou durante vários dias na cidade, com as bilheterias fechadas, outra empresa havia comprado todos os bilhetes de entrada e franqueado ao público as apresentações naqueles dias.
         
     Foi nesta ocasião, em meio a uma confraternização entre os moradores e a trupe, que conheci Cheroso e seu filho Cherosinho, também tive a oportunidade, entre um causo e outro, contado por aquele palhaço ancião, ouvi-lo em uma declamação poética maravilhosa, para nossa total atenção:

 
“Encenar? Eu? Enquanto estou tão delirante que não sei o que estou fazendo?
Você pensa que é um homem?
Você não é nada... Além de um palhaço!
Coloca sua fantasia e maquia seu rosto.
O povo paga para rir.
Assim se Arlequim rouba sua Columbina, só risos.
Palhaço... Todo mundo aplaudirá.
Transforme a sua agonia e sofrimento em piadas.
Transforme as suas lágrimas e mágoas em um rosto engraçado!
Ria... Palhaço, de seu amor arruinado!
Ria da dor que está envenenando seu coração!”

 
          Acredito que poucos presentes naquela reunião reconheceram na voz de Cheroso, os versos de Ruggero Leoncavallo, da ópera “O Palhaço”. Foi um momento admirável ver aquele palhaço com as marcas do tempo impressas em seu rosto, vivendo o personagem Canio, mesmo que por poucos minutos. Aqueles versos, entre outros, contam uma sofrida história, onde ficção e realidade se misturam frente a uma platéia atônita em um palco circense, montado em uma praça de uma cidade qualquer. Imaginei a verossimilhança entre os personagens Cheroso e Canio.
 
          No ano seguinte a trupe estava de volta, era uma festa só, não sei precisar se a maior euforia era da trupe, pela volta à cidade e suas lembranças, ou dos moradores em tê-los novamente. No terceiro dia as apresentações foram subitamente canceladas, os anúncios nos carros itinerantes do circo, pelas ruas da cidade que anunciavam suas apresentações, se emudeceram, pouco depois veio a triste constatação, através dos alto-falantes da Igreja Matriz, foi anunciada a morte de Cheroso. A trupe dizia que ele fez questão de estar presente na volta do circo àquela cidade, uma gratidão a seu povo. A tristeza alastrou-se no entorno, Cheroso, sua trupe e família são, em sua maioria, de outra cidade, distante daquela, esperava-se o anuncio do traslado de seu corpo para sua cidade natal, mas seu filho, o palhaço Cherosinho, informou: “meu pai escolheu essa cidade para partir ao oriente eterno, acredito que sua vontade seria de permanência, por isso, vamos sepultá-lo aqui”. Cheroso lá está, no cemitério municipal da cidade, agora sua morada eterna, a mesma cidade onde o andarilho passou ao longo de seus 80 anos de vida.   
 
          Vez ou outra, sou informado que o circo voltou... Volto também àquela cidade do interior, volto ao circo, relembro meus tempos de criança, quando os circos chegavam a BH e erámos levados por meus pais para assistir, das arquibancadas, as estripulias de seus palhaços, os mágicos, equilibristas etc., que se apresentavam em seu picadeiro... Hoje, meus tempos de criança, há muito se foram, os circos escassearam em BH, mas no interior pouco ou nada mudou, somente a saudade, que persiste em ser saciada.
 
 
*Esse causo foi por mim escrito de forma sintetizada, simplificada e seu sentido temporal condensado, mas apesar disso, reflete de forma geral, os fatos à sua época.
 
 

     
JLeal
Enviado por JLeal em 19/07/2009
Reeditado em 19/07/2021
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