O TAXISTA.
A escuridão da noite ainda se fazia valer, em meio à claridade vinda das lâmpadas dos postes na rua, que trespassava a vidraça da recepção, deixando o pequeno balcão de atendimento na penumbra, mesmo o relógio teimando em apontar nove horas da manhã. A recepcionista com a feição a mostrar-lhe a noite sem dormir, num automatismo sonolento, nos atendia sem simpatia. Já com as contas acertadas caminhamos em direção a porta de saída, alcançando o passeio da rua em frente ao hotel onde havíamos passados aqueles dias. Um vento repentino, em um abraço indesejoso, tocou nossos rostos, mostrando-nos a realidade fria daquela manhã, 6º. Estávamos em pleno outono parisiense, uma verdadeira invernada para os padrões tropicais.
Na calçada bem a nossa frente, de prontidão, um "chauffeur" de traços asiáticos, moreno e estatura baixa nos aguardava ao lado de sua Peugeot taxi. Prontamente nos acomodou em seu carro, acondicionando nossa bagagem no porta-malas. Em seguida rumamos em direção ao aeroporto, conversava com minha esposa em tom baixo de voz não querendo incomodar nosso condutor, quando o vi a me mirar por seu retrovisor interno.
- Portugueses?
Perguntou em meio a um sotaque, onde pensei haver mistura de japonês e Francês.
-Brasileiros!
Respondi-lhe. Descoberta a possibilidade de comunicação, através da língua inglesa, passamos a falar inocentemente do tempo, trânsito e outras sandices, próprias de conversas com estranhos. Em dado momento perguntou-me se poderia ligar o aparelho de som do carro, lhe dei um sinal afirmativo. Enfiou a mão no bolso retirando um MP3 e o plugou ao painel do carro. A música em volume mediano encheu o carro, para minha surpresa, o solo de uma guitarra se fez conhecido, estávamos a ouvir o velho e bom, Carlos Santana, tocando, “oye como va”, dos idos de 1969. Fiquei intrigado com a situação. Onde esse, (asiático?), aprendeu a gostar de Santana? Pensei comigo e sem conter a curiosidade acabei perguntando-lhe a nacionalidade.
-Vietnamita.
Respondeu-me. Aquele nome de terras da Cochinchina me soou inesperado.
Sua história não era muito diferente de outras tantas, contadas por refugiados de guerra, que adentraram o primeiro mundo na busca de um porto seguro. Contou-nos que pertencia ao Exército de seu país, o Vietnã do Sul, por sorte, servia em uma companhia que montava guarda na embaixada dos Estados Unidos, na antiga Saigon. Quando o governo sucumbiu pulou para dentro de um helicóptero da marinha americana, que ajudava na evacuação dos funcionários da embaixada e foi parar em Los Angeles, onde permaneceu por cerca de 10 anos até chegar a Paris, onde fincou pé até então. Disse não carregar ressentimentos e ser capitalista por opção, não conseguiria viver em seu país, completamente desfigurado em virtude da guerra e da nova ideologia inserida. Apesar do exílio voluntário e saudades dos parentes que deixou para trás, disse-nos levar a vida de maneira feliz, mesmo só e que em futuro ainda incerto, retornaria para viver seus últimos dias e ser enterrado em sua terra natal na Indochina.
A conversa bastante interessante era entrecortada pelas músicas das décadas de 60 e 70, que tocavam aleatoriamente, revelando o gosto musical eclético de nosso interlocutor: Eagles, Abba, Carpenters, Bee Gees, Hendrix entre outros. Procurei saber se havia tradição musical em seu país, respondeu-me dizendo:
-Muito pouco.
Em seu caso explicou não ter havido tempo para aprendê-las, pois, havia começado a trabalhar muito cedo para ajudar a família de 10 irmãos, sendo em seguida, convocado pelo Exército aos 16 anos, aos 18, já morava na costa leste americana onde abraçou a nova cultura.
A viagem estava por terminar, as luzes do aeroporto já eram visíveis da rodovia, depois de quase 40 minutos de boa conversa e a audição de saudosas músicas, naquele trajeto de cerca de 30 km. Antes, entretanto, perguntou-me se havia encontrado o que procurava em Paris. Respondi dizendo não ter me decepcionado e que a cidade me pareceu familiar, apesar de não ter estado lá antes. Sorrindo me disse que este era um sentimento geral que vários de seus passageiros disseram o mesmo e voltou a perguntar se havia encontrado o que procurava naquela viagem. Surpreso fiquei com a insistência e lhe disse que os lugares pelos quais havia passado, naquela visita, eram marcantes e carregados de história...
Parei por alguns segundos, pensando no que ouvira no transcorrer da viagem e em um surto de sinceridade respondi:
-Ontem quando de nossa visita ao Arco do Triunfo, revivi em minha memória uma história que carrego comigo há 40 anos aproximadamente. Era a imagem que havia visto em um documentário que assisti no cinema ao lado de meu pai, sobre a tomada de Paris pelas tropas de Hitler. Lá do alto dos seus 50 metros pude visualizar novamente todo aquele desespero e amargura que estavam espelhados nos rostos dos franceses ao testemunharem as tropas nazistas marchando à sombra de seu monumento e onde me encontrava. Invadiam arrogantemente a mais famosa avenida que o mundo conhecera, como uma espada a rasgar a carne indefesa de seu oponente, perpetrando dor e dilaceração, fazendo ainda ecoar o som de seus coturnos no âmago de suas almas...
-Você realmente encontrou o que veio procurar.
Interrompeu-me o nosso condutor, acrescentando:
-Esta é a magia de Paris, alguns vêm aqui na procura pelo “Fantasma”, do “Fantasma da Ópera”, no Teatro Garnier. Outros procuram pelo “Corcunda”, de “O Corcunda de Notre-Dame”, na Basílica de mesmo nome na Île-de-la-Citê, são os sonhadores.
-Há ainda outros que procuram o lugar onde rolaram as cabeças de Luis XVI e sua esposa Maria Antonieta, Place de La Concorde, o palco da guilhotina ou então seguem diretamente ao Dôme des Invalides, procurando por um sarcófago de rocha pórfiro onde está Napoleão, vigiado por 12 estátuas. São os céticos, ainda a procura do entendimento da cruel “estória”, dentro da insigne história...
Nos minutos seguintes ao final da corrida permaneci calado, ruminava o que ouvira pelo trajeto, ordenando perguntas cujas respostas insistiam em não serem encontradas. Como aquele pobre coitado, parido em meio a uma guerra que regrediu seu país às origens de sua colonização, vivendo em países que agrediram o seu provavelmente sem recursos, conseguia levar a vida aparentemente sem mágoas?
Ao colocar nossa bagagem na calçada, em frente ao terminal onde embarcaríamos, simplesmente disse:
-Boa viagem, a gente se vê por aí.
Entrou em seu carro e foi embora, sem ao menos termos conhecido o seu nome.
A escuridão da noite ainda se fazia valer, em meio à claridade vinda das lâmpadas dos postes na rua, que trespassava a vidraça da recepção, deixando o pequeno balcão de atendimento na penumbra, mesmo o relógio teimando em apontar nove horas da manhã. A recepcionista com a feição a mostrar-lhe a noite sem dormir, num automatismo sonolento, nos atendia sem simpatia. Já com as contas acertadas caminhamos em direção a porta de saída, alcançando o passeio da rua em frente ao hotel onde havíamos passados aqueles dias. Um vento repentino, em um abraço indesejoso, tocou nossos rostos, mostrando-nos a realidade fria daquela manhã, 6º. Estávamos em pleno outono parisiense, uma verdadeira invernada para os padrões tropicais.
Na calçada bem a nossa frente, de prontidão, um "chauffeur" de traços asiáticos, moreno e estatura baixa nos aguardava ao lado de sua Peugeot taxi. Prontamente nos acomodou em seu carro, acondicionando nossa bagagem no porta-malas. Em seguida rumamos em direção ao aeroporto, conversava com minha esposa em tom baixo de voz não querendo incomodar nosso condutor, quando o vi a me mirar por seu retrovisor interno.
- Portugueses?
Perguntou em meio a um sotaque, onde pensei haver mistura de japonês e Francês.
-Brasileiros!
Respondi-lhe. Descoberta a possibilidade de comunicação, através da língua inglesa, passamos a falar inocentemente do tempo, trânsito e outras sandices, próprias de conversas com estranhos. Em dado momento perguntou-me se poderia ligar o aparelho de som do carro, lhe dei um sinal afirmativo. Enfiou a mão no bolso retirando um MP3 e o plugou ao painel do carro. A música em volume mediano encheu o carro, para minha surpresa, o solo de uma guitarra se fez conhecido, estávamos a ouvir o velho e bom, Carlos Santana, tocando, “oye como va”, dos idos de 1969. Fiquei intrigado com a situação. Onde esse, (asiático?), aprendeu a gostar de Santana? Pensei comigo e sem conter a curiosidade acabei perguntando-lhe a nacionalidade.
-Vietnamita.
Respondeu-me. Aquele nome de terras da Cochinchina me soou inesperado.
Sua história não era muito diferente de outras tantas, contadas por refugiados de guerra, que adentraram o primeiro mundo na busca de um porto seguro. Contou-nos que pertencia ao Exército de seu país, o Vietnã do Sul, por sorte, servia em uma companhia que montava guarda na embaixada dos Estados Unidos, na antiga Saigon. Quando o governo sucumbiu pulou para dentro de um helicóptero da marinha americana, que ajudava na evacuação dos funcionários da embaixada e foi parar em Los Angeles, onde permaneceu por cerca de 10 anos até chegar a Paris, onde fincou pé até então. Disse não carregar ressentimentos e ser capitalista por opção, não conseguiria viver em seu país, completamente desfigurado em virtude da guerra e da nova ideologia inserida. Apesar do exílio voluntário e saudades dos parentes que deixou para trás, disse-nos levar a vida de maneira feliz, mesmo só e que em futuro ainda incerto, retornaria para viver seus últimos dias e ser enterrado em sua terra natal na Indochina.
A conversa bastante interessante era entrecortada pelas músicas das décadas de 60 e 70, que tocavam aleatoriamente, revelando o gosto musical eclético de nosso interlocutor: Eagles, Abba, Carpenters, Bee Gees, Hendrix entre outros. Procurei saber se havia tradição musical em seu país, respondeu-me dizendo:
-Muito pouco.
Em seu caso explicou não ter havido tempo para aprendê-las, pois, havia começado a trabalhar muito cedo para ajudar a família de 10 irmãos, sendo em seguida, convocado pelo Exército aos 16 anos, aos 18, já morava na costa leste americana onde abraçou a nova cultura.
A viagem estava por terminar, as luzes do aeroporto já eram visíveis da rodovia, depois de quase 40 minutos de boa conversa e a audição de saudosas músicas, naquele trajeto de cerca de 30 km. Antes, entretanto, perguntou-me se havia encontrado o que procurava em Paris. Respondi dizendo não ter me decepcionado e que a cidade me pareceu familiar, apesar de não ter estado lá antes. Sorrindo me disse que este era um sentimento geral que vários de seus passageiros disseram o mesmo e voltou a perguntar se havia encontrado o que procurava naquela viagem. Surpreso fiquei com a insistência e lhe disse que os lugares pelos quais havia passado, naquela visita, eram marcantes e carregados de história...
Parei por alguns segundos, pensando no que ouvira no transcorrer da viagem e em um surto de sinceridade respondi:
-Ontem quando de nossa visita ao Arco do Triunfo, revivi em minha memória uma história que carrego comigo há 40 anos aproximadamente. Era a imagem que havia visto em um documentário que assisti no cinema ao lado de meu pai, sobre a tomada de Paris pelas tropas de Hitler. Lá do alto dos seus 50 metros pude visualizar novamente todo aquele desespero e amargura que estavam espelhados nos rostos dos franceses ao testemunharem as tropas nazistas marchando à sombra de seu monumento e onde me encontrava. Invadiam arrogantemente a mais famosa avenida que o mundo conhecera, como uma espada a rasgar a carne indefesa de seu oponente, perpetrando dor e dilaceração, fazendo ainda ecoar o som de seus coturnos no âmago de suas almas...
-Você realmente encontrou o que veio procurar.
Interrompeu-me o nosso condutor, acrescentando:
-Esta é a magia de Paris, alguns vêm aqui na procura pelo “Fantasma”, do “Fantasma da Ópera”, no Teatro Garnier. Outros procuram pelo “Corcunda”, de “O Corcunda de Notre-Dame”, na Basílica de mesmo nome na Île-de-la-Citê, são os sonhadores.
-Há ainda outros que procuram o lugar onde rolaram as cabeças de Luis XVI e sua esposa Maria Antonieta, Place de La Concorde, o palco da guilhotina ou então seguem diretamente ao Dôme des Invalides, procurando por um sarcófago de rocha pórfiro onde está Napoleão, vigiado por 12 estátuas. São os céticos, ainda a procura do entendimento da cruel “estória”, dentro da insigne história...
Nos minutos seguintes ao final da corrida permaneci calado, ruminava o que ouvira pelo trajeto, ordenando perguntas cujas respostas insistiam em não serem encontradas. Como aquele pobre coitado, parido em meio a uma guerra que regrediu seu país às origens de sua colonização, vivendo em países que agrediram o seu provavelmente sem recursos, conseguia levar a vida aparentemente sem mágoas?
Ao colocar nossa bagagem na calçada, em frente ao terminal onde embarcaríamos, simplesmente disse:
-Boa viagem, a gente se vê por aí.
Entrou em seu carro e foi embora, sem ao menos termos conhecido o seu nome.