Uma bola, dois homens; milhões de corações.
Nélio estava de olhos fechados, tentava se desligar de absolutamente tudo que girava em seu redor; parecia ser a única pessoa dentro do maior de todos os gigantes do esporte, o maior templo já construído por mãos humanas para a pratica de um jogo; a respiração compassada ajudava a colocar os pensamentos no lugar, apesar das batidas de seu coração furioso que ressoavam em seu peito como trovões. Se havia uma hora de manter a calma, a hora era aquela.
A explosão de euforia que vinha da torcida era ensurdecedora e ele sabia que sobre si pesavam os olhos de todo o mundo. Inspirou e em seguida respirou fundo, tentou trazer à lembrança o caminho que percorrera até aquele momento; Nélio estava sobre o exato limite entre a glória máxima, o êxtase da conquista definitiva e a sombra da desgraça, a execração popular sem misericórdia e sem levar em conta tudo o que ele e seus companheiros de equipe tinham feito até então.
Os segundos pareciam não passar, não havia vento, o ar parecia ter parado para ver o desfecho de sua ação o derradeiro ato da competição que coroaria não o primeiro e o segundo lugar do campeonato, mas sim, o campeão mundial e o perdedor; vencedor e vencido, o herói e o vilão.
O momento seguinte seria o divisor de águas e mostraria a todas as nações qual homem seria amado e qual seria odiado durante os próximos quatro anos, pelo menos.
Os olhos permaneciam fechados, o tempo não passava, ainda não tinha escutado o apito do arbitro, o som que autorizava a cobrança. E aguardava.
Nélio tinha surgido numa carreira meteórica, apareceu no futebol brasileiro vindo das divisões de base de um grande clube, jogando na meia-direita, sempre, sempre envergando a camisa cujo número era o oito. Sentia-se bem com aquele número nas costas, não era supersticioso nem místico, mas gostava do oito e jogava com ele desde que se entendia por gente; ademais, nunca quis aceitar a camisa dez para que o peso sobre suas costas não fosse ainda maior e as comparações inevitáveis não lhe tirassem o foco.
Em dois anos como profissional foi considerado a nova jóia do futebol brasileiro, embora não se destacasse tanto pelos dribles fantasiosos que caracterizaram os grandes craques da história pentacampeã e sim por um estilo quase clássico e dinâmico de jogo.
Sempre ouvira seu pai dizer:
“O futebol é um esporte de fundamentos”
Gravou aquela frase a ferro e fogo em seu coração e dedicou tanto tempo em repetições e treinamentos que agora beirava a perfeição.
Primava pelos passes bem realizados, curtos ou longos, lançamentos efetuados com uma visão impar.
_Um jogador que corre de cabeça erguida_ diziam os comentaristas.
Mas Nélio era mais do que isso. Durante esta copa do mundo realizada no Brasil ele comandara o meio-campo da seleção brasileira com maestria, dando mobilidade e rapidez nas bolas de contra-ataque; sendo o centro de gravidade do time nos momentos de congestionamento daquele setor e sendo a mente por trás dos passes precisos que quase sempre redundavam em gols. Em suma, Nélio Distribuía o jogo, lançava, cruzava, chutava em gol, aparecia pro jogo, não se omitia e cobrava faltas com uma perfeição que não era vista desde a década de noventa do século passado.
A copa do mundo Realizada no Brasil brindou o mundo com um futebol jamais visto antes, e duas seleções se destacaram; exatamente as duas que naquele momento estavam disputando tal disputa de penalidades; uma seleção, a favoritíssima, a brasileira, por jogar em sua própria casa, e no estádio do maracanã com a sua torcida apoiando durante toda a competição e principalmente durante os noventa minutos da final, onde não ouve gols, em seguida, na prorrogação, também sem gols e finalmente na disputa por pênaltis da qual Nélio cobraria o último e decisivo chute.
Do outro lado, a seleção sensação dos últimos quatro anos, desde seu título na África do sul; Portugal, que em seguida ganhou também a copa européia de seleções e a copa das confederações realizada no Brasil.
Por todos os atributos mostrados em seu clube no Brasil, e depois quando finalmente foi levado ao futebol inglês onde com o time do Arsenal de Londres tinha vencido todas as competições que participou, Nélio acabou se tornando uma das maiores expectativas do público e toda a seleção correspondera à altura. Até ali.
Finalmente o som do apito do arbitro se fez ouvir, Nélio abriu os olhos e instantaneamente foi alvejado pelas luzes de máquinas fotográficas dos repórteres credenciados. Por detrás do meta defendida pelo goleiro português e, também atrás das placas eletrônicas de publicidade havia um verdadeiro batalhão de fotógrafos de todas as nações da terra, cada qual querendo a imagem que representaria melhor o último momento da colossal competição que finalmente elevou o Brasil, como país, a um patamar de organização nunca antes visto na história das copas.
Como que emergindo de um estado de transe, tamanha era sua concentração; Nélio, que já tinha tomado toda à distância de que necessitava, olhou fixamente para a bola descansando na marca fatal; bateu algumas vezes o bico de sua chuteira esquerda contra o solo gramado e cruzou o olhar contra seu oponente que aguardava sobre a linha embaixo as traves. Iniciou a corrida, estava em linha reta na direção da bola, nem para a esquerda e nem para a direita. Correu em direção a ela, olhar fixo na esfera, freneticamente vitrificados, não piscava, não respirava e avançou decidido. Chutou com toda a convicção que um homem pode ter numa situação como esta; pé esquerdo na bola que voou, como um pássaro, rumo ao ângulo esquerdo do goleiro e...
...Quando o companheiro de seleção perdeu o pênalti anterior, o peso sobre os ombros de Andrade Dias, goleiro português, pareceu multiplicar-se por dez; ele estava ajoelhado e de costas para o lance quando aconteceu, mas logo ficou sabendo que seu colega tinha desperdiçado a cobrança porque os torcedores brasileiros que eram obviamente maioria, comemoraram como se mais um gol tivesse acontecido.
Agora ele estava sob as traves; corpo ereto e olhar fixo no seu oponente parado de olhos fechados ao longe, fora da grande área. Andrade sentia como se a força de sua responsabilidade o pudesse quebrar ao meio, dobrando seu corpo e empurrando-o para o chão; quase podia sentir a torcida de seus compatriotas, não só os que estavam presentes no estádio, que incrivelmente não eram poucos, mas também a de todos os portugueses ao redor do planeta. Porém, O goleiro não se deixaria vencer pelo peso, era um bravo antes de tudo, foi assim, enfrentando todas as barreiras e assumindo todas as responsabilidades que ele começou a se destacar no cenário de futebol do mundo, no começo, chegou a seleção portuguesa mesmo sem que a crítica esportiva o considerasse digno para a posição, mas logo nos primeiros jogos derrubou todas as opiniões contrárias.
_Você vai pegar.Vai pegar. Vai pegar._ dizia ele para si mesmo, como que entoando um mantra.
Havia se preparado para aquele momento, sentia que aquela seria a hora de consolidar a sua posição como melhor goleiro do mundo; Andrade passou toda a competição sem sofrer um único gol sequer, e não faltaram oportunidades para expor suas defesas espetaculares; a mídia chamava de “milagres”, defesas feitas em chutes desferidos a “queima-roupa”, defesas realizadas em vôos de uma plasticidade artística, bolas baixas, bolas altas, chutes em média altura; o homem era praticamente uma muralha.
E lá estava ele, cabeça erguida, os olhos claros que do alto de seus um metro e noventa de altura avistavam a bola diante de si, em primeiro plano, o arbitro levando o apito à boca em segundo e a sua seleção ajoelhada e com as mãos dadas como uma corrente humana no centro do campo ao fundo. Todo o resto eram torcedores; o estádio parecia rugir como uma besta mitológica, era simplesmente ensurdecedor, porém ele não ouvia nada mais do que sua respiração ofegante e seus batimentos acelerados.
Balançava a cabeça para frente, levemente e tinha os lábios apertados um contra o outro. Sentiu uma gota de suor que deixou a sua testa e correu pelo nariz até finalmente gotejar; não tinha percebido o quão suado estava até aquele instante, e sabia que tal suor não provinha de um cansaço físico, mas sim pela tensão quase insuportável que sentia pelo corpo.
A adrenalina despejada na corrente sanguínea funcionava quase como uma espécie de energético e Andrade sabia lidar com aquilo como poucas pessoas; nos últimos anos ganhara todas as competições nacionais e internacionais disputando pelo seu clube, uma grande equipe inglesa, da qual fazia parte também seu oponente que cobraria o pênalti. Ambos jogavam no mesmo clube e se conheciam um ao outro, o que tornou a tarefa de cada um deles muito mais difícil.
Andrade foi talvez a grande revelação mundial do último ano, recebendo prêmios diversos como o título de melhor jogador do mundo na última temporada, fato inédito para um goleiro e isso provava definitivamente que ele era o melhor naquilo que fazia.
Como se não bastasse, era um exímio defensor de pênaltis, treinava incansavelmente tanto no clube quanto na seleção e durante os jogos decisivos havia correspondido a altura; durante a semi-final, um jogo dramático entre Portugal e Argentina, também definido pelas cobranças; Andrade defendeu dois. E agora a situação se repetia na grande final.
O arbitro finalmente soprou o apito autorizando a cobrança.
Ao longe seu oponente surgiu do estado de torpor e abriu os olhos, estava decidido, mas Andrade também estava, seus olhares se cruzaram, mesmo ignorando que os olhares de todo o mundo estavam sobre eles; naquele instante eram só dois homens e uma bola. Quando o jogador brasileiro correu em direção à esfera, não tinha ficado nem para a direita e nem para a esquerda e isso dificultava ainda mais uma leitura de para onde seria direcionada a cobrança; o goleiro bateu as palmas das luvas uma de encontro à outra com tanta força que sentiu o corpo estremecer. Mais adrenalina foi despejada em seu sangue, armou sua base, deu um leve passo à frente, mas não o suficiente para ser visto pelo juiz e quando se deu conta já estava em pleno vôo, a cobrança foi executada com estrema perfeição, mas seu salto também, esticou o braço, mão trocada no ar e...
... Foi assim que terminou a copa do mundo realizada no Brasil, a maior já organizada até então.