O Nocaute

Juarez e Pedrão se enfrentaram uma vez. Briga capaz de atrair multidões, como aquelas lutas homéricas que acontecem nos States, em que dois crioulões, grandes e parrudos fazem show para o mundo todo. Só não entendo de onde saem aqueles milhões de dólares. Mas aquela briga quase ninguém viu.

Juarez juntou coragem e foi buscar sua foice e sua bíblia. Andando na estrada, viu a foice na mão de um trabalhador. A lâmina já estava toda suja. A raiva foi crescendo e ao chegar no barraco, estava no auge.

Queria por força a bíblia e a foice de volta. Gritou, fez escarcéu, e ninguém lhe deu ouvidos. Mamuleque estava sentado como uma estátua dentro do barraco, e não moveu um músculo. Do seu lado, Jainito parecia flutuar, sentado também em posição de lótus. Um homem velho, Anselmo-Subuti, estava varrendo o terreiro. Pedrão dormia na rede armada num pequeno alpendre tosco.

Anselmo-Subuti não sabia o que fazer. Não conhecia aquele homem grande e raivoso, mas resolveu acalmá-lo. Foice, não havia visto, bíblia também não. Acalmá-lo parecia a coisa mais difícil do mundo. Ofereceu um gole de cachaça, da última garrafa. Pronto, o monstro aceitou, apesar de alegar que só bebia depois das quatro horas da tarde. Mas faria uma exceção. Ofereceu também, broa de milho que havia feito agora mesmo e ainda estava quentinha. Juarez aceitou. Agora, com ele mais calmo, disse que não sabia nem de foice nem de bíblia. Nenhum dos dois sabia que o fogo que havia assado a broa tinha sido aceso com os folhas finas dela.

Mamuleque que estava duro feito uma estátua escutava tudo o que estava acontecendo. Por mais que se esforçasse não conseguia viajar pelos espaços etéreos como Jainito, desligando os pensamentos e percepções. Ouvia Juarez falando grosso e imaginava como poderia lidar com aquele mentecapto. Suas costas já doíam das muitas horas de prática e ele estava querendo se levantar. Mas, aí, teria que enfrentar a fera que estava lá fora.

Pedrão fingia que dormia. Estava olhando com o rabo do olho, esperando o momento de atacar. Estava mais controlado, o Pedrão. Tinha agora a noção clara de que havia a hora certa de avançar. Segurava as suas forças, como se controlasse um cavalo antes do páreo. Imaginar, que alguém poderia matar por causa de uma foice que custa dez reais, e de uma bíblia que se ganha gratuitamente em qualquer igreja batista. Mas se as emoções são intensas, um nadinha as faz explodir.

Quando se acha que se está sendo lesado, ou que as outras pessoas vão comentar sobre você, com demérito, dizendo: “viu, tomaram as suas coisas, e ele não fez nada; não te disse que não valia nada”, e aí ririam dele, qua-qua-qua, o sangue sobe, a cabeça não pensa mais, as mãos tremem, o coração se agita, e você só vê na sua frente a cara do filho da puta que te sacaneou, com um risinho de escárnio nas lábios, olhando serenamente, para você, como se pensasse, “está vendo, sou mais esperto que você”, aí você só pensa em destruir aquela cara, para que ela nunca mais possa rir desse jeito para ninguém.

E, é o que eu vou fazer. Vou pegar o moleque safado e o seu escudeiro, que está dormindo logo ali. E você, velho, não te conheço, até que vou com a tua cara, tome cuidado, que amigo do meu inimigo, eu pego também. Juarez ruminava os seus pensamentos de ofendido, enquanto tomava as ofertas de Subuti. Podia imaginar cenas horríveis em que desferia golpes a torto e a direito, e deixava todo o mundo no chão. Já havia espancado Subuti três ou quatro vezes na imaginação e este ficava caído e levantava como num desenho animado, para voltar a levar um potente murro que lhe espatifava a carinha sorridente em mil pedaços. Está rindo de que, ô velhinho? Vai ver já lhe contarem tudo, e ele está imaginando que eu sou o babaca que entregou de mão beijada a foice e a bíblia de estimação e a galinha que estava criando com tanto esmero.

- Está rindo de quê?

Pronto, agora a desgraça já está feita. Se ele falar um mas, vou enfiar a mão na cara, quebrar os dentes da frente.

- Não estou.

- Não está o quê?

- Não estou rindo.

- Então está olhando por quê?

- Quero saber se a broa está boa, fui eu que fiz.

- Está boa.

- Quer mais?

- Não.

- Quer beber mais?

- Não.

- Quer mais alguma coisa?

- Quero que você vá chamar o moleque ou o negão que mora com ele. Quero conversar com eles.

Nessa altura Pedrão havia levantado o tronco da rede, como um submarino que vem das profundezas cheio de canhões e mísseis prontos para disparar. Juarez quando o viu levantando levou um susto de arrepiar todos os pelos, da cabeça e de muitos outros lugares.

- Quer falar comigo? Estou aqui.

- Sim, quero, cadê a minha foice e a minha bíblia?

- Não sei e tenho raiva de quem sabe.

- Como não sabe? Deixei ontem na estrada, do seu lado.

- Eu nem estive na estrada ontem. Não saí daqui o dia inteiro.

- Voce é muito safado; alem de lobosomem é mentiroso.

- Lobosomem, eu? Voce que é viado.

- Lobosomem, demônio...

- Viado, burro, zebra, anta, corno...

Mamuleque já saíra do espaço e voltara à terra. Estava olhando por um buraco na parede de pau-a-pique. Jainito, com os gritos, entreabrira o olho direito.

Você não acredita que um soco bem dado possa fazer tal estrago. Quando a palavra corno cruzou os ares e foi atingir os ouvidos de Juarez, ele levantou como um raio e percorreu os cinco metros que o separavam de Pedrão quase instantaneamente. Mas este estava preparado. Levantou como se tivesse uma mola nas pernas. Quando Juarez chegou perto, acresceu o movimento do corpo à força da mão fechada de Pedrão que cortava o espaço como um foguete, em sentido contrário. Foi uma única pancada, como um marretada, que aconteceu com um ruído estalado de galho quebrando. Um plact. No momento seguinte, o corpo de Juarez caia em câmara lenta; uma fração de segundo depois, estava com a cara no chão, com a boca na terra. Só acordaria duas horas depois. Não se lembrava de nada, e pensou: puxa, cachacinha danada de ruim que o velhinho me deu...

Da novela "Aqueles que devem morrer"