SÃO JOÃO OU CAMALEÃO?

Os gafanhotos faziam a maior devastação nos campos de trigos ao redor da Galiléia, da Judéia e em quase todo o vale do Jordão. A praga de insetos havia começado aos poucos e em menos de um ano o grande Império Romano sentia as conseqüências da catástrofe.

Até os anjos têm seu dia de vingança. Gabriel, o protetor das crianças, sentia certa satisfação ao contemplar o desespero do rei Herodes sem saber como resolver a situação. Com o povo morrendo de fome não tinha como cobrar mais impostos e estava ficando mal visto perante o Grande Cesar.

E o que Gabriel, com um ar de riso, fazia ali sentado ao lado de Herodes sem ninguém notar sua presença? Anjo é assim mesmo meu caro leitor quando quer ficar invisível fica, quando não quer não fica e pronto.

Uma história só com o final é melhor não ser contada. Deixa então eu tratar logo de dar rumo nesta narrativa antes que você desista de ler e vá embora com raiva deste humilde aprendiz de escritor.

Quando mais novo Gabriel adorava pregar peças nos mortais. Gostava de aparecer na terra em forma de leão ou de boi bravo só pra fazer os homens correrem de medo.

Já pras mulheres o safado se transformava em pequenos animais domésticos só pra ganhar carinho e se desmanchar em dengos nos braços das pobres donzelas.

Cada vez que era enviado em missão celeste, voltava arrastando um rosário de confusões. Hora se metia a conquistar as virgens, hora às mulheres casadas. Vivia se vangloriando de ser um exímio conquistador e conhecedor profundo das vontades femininas.

Foi ele quem inventou essa história de dom Juan. Muitos anos depois alguém ficou sabendo do fato, quis imitá-lo e espalhou a fama por toda a Espanha, vindo parar nas telas dos cinemas com o nome de Don Juan de marcos, pode uma coisa desta?

O todo poderoso confiscou um pergaminho, guardado a sete chaves pelo anjo, onde constavam os nomes de mais de duas mil setecentos e vinte e duas mulheres que o emplumado havia seduzido com sua conversa mole.

Sua ultima grande tarefa na terra foi avisar a Maria que ela seria a mãe do novo messias. Ao invés de ir direto ao trabalho como havia recomendado o chefe ele saiu pelo oco do mundo a procura de diversão.

Nas andanças conheceu Zacarias, um velho pastor de ovelhas, casado com Isabel, prima legítima de Maria. Na casa desse simpático casal o anjo tomou bastante vinho, dançou e cantou para os anfitriões. A conversa ia madrugada a dentro quando ele soube do desejo da mulher em ter um filho. Prometeu ao marido que dentro de nove meses eles teriam uma criança.

Zacarias não botou fé na conversa daquele sujeito metido a médico. Ele e a mulher já estavam muito velhos pra fazerem menino sem contar o agravante de Izabel ser estéril.

Percebendo a desconfiança do homem, prometeu castigar-lhe pessoalmente caso duvidasse do seu poder divino. Despediu-se dele e de Izabel que lhe sorria escondendo os poucos dentes da boca atrás de um pedaço de pão e foi embora cantarolando morro abaixo.

Naquela mesma tarde apareceu na entrada da casa um pequeno camaleão de olhos azuis. O velho achou estranho, mas Izabel colocou o bichinho pra dentro pra protegê-lo da chuva que caía forte do lado de fora. Na manhã seguinte ela procurou o danadinho pra lhe dar comida, mas do mesmo jeito que apareceu, sumiu sem deixar rastro.

Dias depois ela começou a passar mal. Tudo que comia botava pra fora. Era um enjôo constante sem saber como remediar. Tomava chá de tudo quanto era planta e nada. Ficou naquela agonia por mais de dois meses até decidir ir com o marido visitar um homem entendido em doenças. Naquela época ainda não existia a profissão regulamentada de médico. Só alguns sábios e curiosos na matéria.

Quando o homem disse a Zacarias que Izabel estava grávida ele lembrou-se da promessa daquele sujeito esquisito e sem acreditar na gravidez da esposa, ficou mudo de uma hora pra outra sem direito a dizer um único palavrãozinho se quer a respeito do caso.

Quando engravidou esta senhora com mais de sessenta anos Gabriel acabou incentivando a chamada ciência moderna a produzir muitos e muitos anos depois os primeiros bebês de proveta.

_ Bendito é o fruto do teu ventre, disse Izabel à Maria quando a olhou e sentiu na prima um ar diferente.

Por conta das farras o anjo só lembrou de dar a notícia da vinda do messias três meses depois do combinado. Sendo assim Maria teve a gravidez atrasada por conta da irresponsabilidade de Gabriel.

Quando o filho de Izabel nasceu recebeu o nome de João Batista. Quem escolheu foi o pai escrevendo no chão com um graveto, pois ainda estava mudo sem condição de pronunciar nem um ai.

Fez uma grande fogueira no alto da colina pra avisar à cidade sobre o acontecido. Naquela época não existia ainda o serviço de postagem e pra isto se usava o fogo ou mandava-se um portador. É por isto que no dia de São João seus devotos fazem sempre fogueiras e comemoram com muita festa.

Depois do nascimento da criança o anjo ainda estava na terra. Antes de voltar pro céu apareceu por lá pra lhe tirar do castigo. A primeira coisa que Zacarias fez foi mandar Gabriel tomar banho. Só não ficou mudo outra vez porque a mulher deu duas galinhas gordas, um casal de paturis e um peru já no ponto do abate pro anjo levar e fazer de tira gosto em sua farra de despedida com os amigos.

Foi um caso de extorsão digno de ser punido. Por esta e por outras quando chegou da viagem foi suspenso das importantes missões terrenas e passou apenas a anjo protetor das criançinhas.

João veio ao mundo meio esquisitão. Aos sete meses de vida não quis mais saber de mamar na mãe. Passava o dia engatinhando pelos cantos do quintal atrás de amoras, formigas e pequenos insetos pra comer. Seu prato predileto era gafanhotos ao mel. Os pais achavam estranho, mas como era um alimento barato e em abundancia deixava ele pra lá.

Aos quinze anos o pai percebia cada vez mais a diferença de comportamento e de aparência entre ele e o filho.

João tinha os olhos de um azul meio desbotado. A pele era grossa e meio esverdeada feito papel de enrolar pregos. A mãe dizia ser o pouco sol que ele tomava. Vivia falando pras paredes como se ali existisse uma multidão de ouvintes. A noite dormia do lado de fora da casa reclamando do calor mesmo quando chovia.

Aqueles modos de João foram encafifando o juízo de Zacarias até que um dia ele não agüentou mais e pegou uma briga feia com Izabel. Disse que o filho não era dele, que o menino era mimado em demasia e que tinha puxado umas loucuras por parte da mãe. Só não chamou a coitada da mulher de santa nem de rapadura o resto foi tudo.

João entrou no meio do bate boca, trocou tapas com o pai, que levou a pior é claro, pelo fato de já está pra lá da quarta idade e não agüentar muito repuxo.

Revoltou-se com a situação e foi embora de casa sem ouvir as súplicas da mãe pedindo pra ele ficar.

Não se sabe por onde nem com quem andou durante alguns anos. Vez em quando surgia a notícia de sua presença lá pras bandas do rio Jordão. Diziam tê-lo visto batizando o povo, que ele dizia ser pagão e pecador, sempre em nome do pai e do filho.

_ Eu sou apenas o mensageiro. O verdadeiro messias chegará em breve. Não revelava o nome pra ninguém, mas sabia que era seu primo filho de Maria.

Meu caro leitor chamo atenção para este detalhe: foi o primeiro caso de nepotismo da história. Você não acha muito poder nas mãos de uma única família? O que se há de fazer, naquela época ainda não existia o movimento pelas diretas já, nem CPI pra apurar abuso de poder. Estas coisas são de agora a pouco ainda cheiram a leite como diz o ditado. Naquela época a situação era bem diferente. Quem ria por ultimo era considerado retardado ou tomado por demônios e quem escrevia e não lia era analfabeto mesmo.

A coisa ta boa, mas deixa eu voltar pra história se não eu perco o fio da meada e aí nem o mel nem a cabaça.

Mesmo sendo grandalhão, se vestindo com peles de ovelhas e mantendo uma alimentação á base de insetos João ainda assim fazia o coração de algumas donzelas palpitarem por ele. Dentre elas uma jovem doida do juízo chamada Salomé. Ela era cunhada do rei Herodes, inimigo número um de João.

A mulher andava atrás dele feito uma cachorra no cio. Ele não dava a menor atenção. Era como se ela não existisse. Mas mulher é um bicho danado de tinhoso meu amigo. Quando elas querem uma coisa e não conseguem, preferem danificar a mercadoria pra não dar o gostinho a outra.

O fato era que João andava falando mau do rei pelos quatro cantos do mundo. Dizia ser o supremo um pecador, um corno de marca maior e além de tudo corrupto. Herodes e a mulher odiavam o profeta e viviam tramando um jeito de se livrarem de uma vez por todas daquele comedor de grilos.

Numa noite festa no palácio, Herodes e seus convidados beberam muito além da conta. Fizeram uma orgia tão grande que não dá nem pra descrever aqui tamanha foi a sacanagem.

Quando não tinha mais nada pra fazer o rei disse a Salomé pra lhe pedir um presente. Podia ser qualquer coisa na face da terra que ele lhe daria. A safada não pensou duas vezes. Iria matar dois coelhos com uma cajadada só. Primeiro se vingaria de João por ele a desprezar e ao mesmo tempo deixaria o rei livre das ofensas daquele aprendiz de feiticeiro.

_ Eu quero a cabeça de João batista numa bandeja enfeitada com alfaces crespas, disse a moça.

Promessa de rei não volta a trás e Herodes teve de satisfazer o desejo da cunhada. Uma hora e quinze minutos depois a cabeça do pobre profeta era exibida numa bandeja para os convidados se divertirem com ela.

Quando a natureza entra em desequilíbrio quem sofre é o povo. João era o maior predador natural dos insetos. Após sua morte os bichos se sentiram seguros e começaram a aparecer aos poucos.

No meio do zumbido do bater das azas dava pra ouvir direitinho os insetos cantando: Viva a louca da Salomé zum. Viva Herodes, o rei corno zum. Viva a morte de João batista zum zum. Pode uma coisa destas?

Se Gabriel estava satisfeito com a situação de penúria em que o rei se achava tinha lá suas razões. Pra ele, João Batista, era carne de sua carne.

Herivaldo Ataíde
Enviado por Herivaldo Ataíde em 18/06/2009
Código do texto: T1655510
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