Meu querido Santo Antônio 



 Dia dos namorados! Para quem tem um par, tudo são flores e laços.
Para quem amarga a solidão: Uma completa inutilidade, inventada pelo comércio oportunista. Data maldita que só trazia infelicidade para Divina. Sim! Este era o nome que a moça carregava, qual pacote mal embrulhado, torcendo para que se perdesse pelo caminho. Nada em sua vida era bonito ou feliz. Divina assistia sua existência passando em nuvens escuras e mal conseguia acompanhar.

Quarenta e cinco anos de idade e nunca havia provado o sabor de um beijo apaixonado. Depois de certo tempo, foi-se acostumando com a solidão e parou de maldizer a vida. Não saía de casa desde os vinte anos, tinha vertigens e sempre desmaiava. Não podia dirigir ou andar sozinha.  Os médicos não encontravam  qualquer problema físico e com o tempo, Divina estava melancólica e deprimida.

Acompanhava a vida das três  irmãs com dissimulada inveja. Todas fortes e saudáveis, somente ela era frágil e necessitava de constante acompanhamento. Algumas vezes os sobrinhos debochavam: Porque não sabia mexer em computador, porque não tinha amigos, porque era daquele jeito? Lenta, calada desajeitada...Porque? Porque?

Divina nestes momentos, fugia  antes que as lágrimas corressem soltas. Odiava ter que explicar, detestava ser consolada e consumia verdadeiro pavor de ser motivo de piedade. Um dia  ao ouvir a mãe e as irmãs falando sobre sua vida, entendeu que era  tão sem graça e vazia que se tivesse que preencher uma redação, caberia em uma única folha A4. Em branco, é claro!

Branco como o vestido de quinze anos, sem príncipe ou valsa. Bolo enfeitado de rosas de glacê sobre a mesa imensa, coberta de docinhos e confeitos. Apenas a família e vizinhos apareceram tímidos. A mocinha escondia-se pelos cantos, não queria  ser o centro das atenções. De repente ouviram a buzina de um carro anunciando a visita inesperada. Foi o único momento que Divina sorriu e correu para receber a madrinha.

Parecendo recém saída de uma revista de moda, a mulher esbanjava bom gosto e afetação. A família recuou em cumprimentos fugidios, olhos arregalados no casaco de pele genuíno e mãos repletas de anéis:- Pensou que eu havia esquecido ? Minha querida, onde está meu abraço?!

Divina jogou-se naquele aconchego, feliz como nunca:- Madrinha!

- Sim ! Não recebi o convite, deve ter extraviado , os correios estão assoberbados com o dia dos namorados. Minha menina completando  quinze anos...Parece um sonho!  Eis o seu presente! É o segredo do meu sucesso , nunca falhou... Vai trazer muita sorte no amor e na vida.

- Mas a senhora precisa disso? Madrinha tem tudo aos seus pés!

- Menina... Você precisa de muita proteção. Ainda não sabe nada da vida... Mas cada um tem seu destino, só gostaria que nunca deixasse de cuidar deste presente que hoje estou deixando em suas mãos.

- Madrinha! Não entendo... O que pode ser tão precioso?

- A vida é o maior bem de todos. Quero apenas que seja feliz como eu sou... Este é meu maior desejo.

- Sou feliz quando vejo a senhora. Não me deixe nunca...Promete dinda?

- Prometo Divina, apesar da sua mãe me odiar. Prometo. E cuide bem do nosso protetor.



Divina recebeu um imenso pacote dourado, cheio de fitas e enfeites. Tão lindo que dava pena desfazer, soltou os laços e devagar abriu a tampa da caixa. Dentro uma imagem de Santo Antonio toda trabalhada, envolvida em papel de seda e um pacotinho menor, com uma pulseira de brilhantes. As irmãs não disfarçaram a inveja e todos queriam admirar a jóia.

Riu com gosto... Quando pensava na tia e madrinha, sentia muitas saudades... Uma mulher linda e à frente do tempo, viajando sempre em busca de aventuras. Vários casamentos e a completa reprovação familiar. Naquela noite quando voltou ao salão, ela já havia partido para outra viagem e foi a última vez que se viram.
 
 
Divina e os pais viviam em um casarão no centro da cidade. Bem  próximo ao convento de Santo Antonio, era antigo e bem conservado. Da janela do quarto principal, podiam assistir as festas e procissões. Divina nunca deixou de cuidar do santinho, por respeito e carinho... Fé era outro assunto.

 
Todo ano era a mesma coisa:  Divina enfrentava a multidão, assistia a missa e cumpria o ritual. A mãe acompanhava a moça com muita má vontade, insistindo que fosse rápida e que estava cansada daquelas besteiras.
Divina  acendia velas e suplicava por ajuda aos pés do santo. Trinta anos de devoção e nada! Nadinha de milagre ou casamento.  Um suspiro de profundo pesar escapou, enquanto olhava o santo no oratório em seu quarto:

- Ai meu santo Antonio! Trinta anos não são trinta dias... Montei seu cantinho,  pertinho de mim  e toda noite,  acendo vela e faço a Oração dos desesperados. O senhor é a única amizade que tenho, o único que me compreende. Escuta aqui... O senhor sabe que ainda sou moça? Que vergonha! Minhas irmãs desconfiam, mas só o senhor tem certeza. O senhor meu santinho e aquela médica que me examina todo ano... Com aquela cara de dó. Ai! Que eu não quero morrer solteira! Virgem! Quase uma santa... Ai que santa... Não sou não! Porque tenho sonhos pecaminosos... Quase toda noite. 

A imagem continuava com a mesma expressão plácida...  Compreensivo e bondoso. Com o tempo, as cores do santo já não eram as mesmas, Divina nunca permitiu que fosse retocado. O vaso de cristal com rosas frescas, a lamparina e o castiçal de prata enfeitavam o altar:

- Hoje é seu dia e eu não sei se vou assistir a missa. Tem uma multidão que o senhor nem imagina! A maioria é mulher pagando promessa. Desisti de fazer promessas, cada vez que falhavam me dava vontade de te  jogar pela janela... Ai meu santinho! Perdão! Mas são trinta anos e ando subindo pelas paredes... Dizem que é menopausa! Eu não sei não... Não é justo sofrer estes calores se nem tive o prazer do desfrute. Porque minhas irmãs estão casadas e eu vivo nesta solidão? Não é justo...Não é justo! Dizem que tenho as ideias fracas mas sinto que não sou assim, quero ser feliz como minha dinda! Não sei porque hoje amanheci pensando tanto nela...

- Divina! Divina minha filha, de novo falando com o santo? Que mania! As crianças estão agitadas. Fizemos uma mesa cheia de doces típicos, estamos te esperando para começar a festa.

- Mãe! Estou rezando, por favor não me interrompa! Hoje é um dia especial, Santo Antonio é o meu santo de devoção. 

- Ah Divina! Hoje também é seu aniversário e sua família quer comemorar. Filha querida, nem todas nascemos para casar e ser mãe. Existem outras coisas importantes, olhe o quanto somos gratos...

- Gratos? Por eu ainda morar com vocês? Papai vive falando que preferia vender a casa e comprar um sítio. Mãe... Minha madrinha disse que ia ter sorte, mas nunca fui feliz. Até ela me abandonou...

A mãe de Divina deixou o quarto e a moça sentou-se na cama. Recostada a cabeceira, sentiu uma moleza e lentamente fechou os olhos. Meio acordada e adormecida, viu a figura da mulher bonita aproximando-se:- Divina querida!

- Madrinha. Madrinha é a senhora?

- Sou eu...Não tenho muito tempo mas preciso te dar um recado.

- Mas de onde a senhora saiu?

- Ah Divina! Eu estou morta!  Morri dois meses depois do seu aniversário de quinze anos. Mas foi uma morte bonita, se é que isso existe... Morri em um transatlântico famoso com meu ultimo marido. Um conde inglês riquíssimo!

- Madrinha, se está morta como parece tão bem e bonita? Está no céu ... Com os anjos e os santos?

- Ah! Esta é uma pergunta difícil, digamos que estou no paraíso que mereço... Mas estou muito bem... Esqueci que trouxe uma mensagem para você.

- Uma morta  veio dar um recado? De quem?

-De santo Antonio.  Ele disse que confie e  mantenha a  fé porque será recompensada. Seus dias de infortúnio estão quase terminando.

- Essa é boa! Uma defunta me dando conselhos? Porque nunca soube que a senhora tinha morrido?

- Não sei... Pergunte aos seus pais. Sinto muito querida, mas preciso ir... Adeus minha menina ...Seja feliz.

- Dinda! Não vá embora!

- Divina querida! Estou sempre por perto, não se preocupe...Tudo vai dar certo...



Divina acordou suando em bicas, lágrimas escorriam com as  lembrança e saudades. Foi neste momento que percebeu o cheiro do perfume no ar...  Rosas Vermelhas  era o aroma que a madrinha sempre usou e agora impregnava o quarto. Divina desceu as escadas correndo e avistou a mãe sentada em um banco de jardim afastado:- Mãe...

- Ah! Resolveu juntar-se aos festejos. Nossa que cheiro forte! Perfume enjoativo...

- Mãe, porque a senhora escondeu que dinda morreu? 

- Sua madrinha? Mas isto é tão antigo... Não sei se ela é viva ou morta. Nunca deu satisfações para ninguém nem quis saber da família.

- Ela faleceu e vocês sabiam disso todo estes anos e não me disseram. Ela era sua irmã e eu simplesmente pensei que ela havia ido embora. Esquecido que eu existia e gostava tanto dela. O que vocês estão escondendo?

- Nada. Não sei quem andou enchendo sua cabeça de mentiras.

- Mentiras? Como vocês puderam fazer isso comigo? Minha vida poderia ter sido tão diferente!

- Aquela vagabunda queria transformar você em uma cópia... Um casamento atras do outro, sempre dando golpes e golpes...Todo aquele dinheiro era uma indecência, nunca permiti que tocasse em nada daquela bruxa e agora está zangada? Não reconhece o bem que te fiz? Eu te salvei Divina! 
 
- Salvou de quem? Quem te disse que queria ser salva? Foram anos e anos...Finalmente acordei!

Divina neste momento, escutou os fogos explodindo em milhões de cores. O coro entoando cântigos e a procissão ganhava as ruas próximas. Nem pensou duas vezes, pela primeira vez em anos abriu os portões e alcançou os devotos. Sozinha.





---   Meu santo Antonio pequenino....


 
Divina olhou-se no espelho pela terceira ou quarta vez. Ainda assim não acreditava no que via: Uma mulher linda e perfeita. O que não estava bom foi resolvido com o melhor bisturi. Balançou as pulseiras de brilhantes e sorriu. Dentes maravilhosos na boca carnuda e sensual.
O dinheiro trouxe a tão sonhada  felicidade! Divina agora era condessa, até o título havia resgatado...

A família  sempre soube da herança e aguardaram anos em silencio. Talvez esperando que ela viesse a falecer sem herdeiros, talvez tramando algum acidente... Foram tantos acidentes ao longo dos anos e ela nunca imaginou. Uma doença forjada às custas de medicamentos fortes. Apesar de tudo, ela havia reagido e tomado as rédeas da própria sorte.  Sorte? Não! Divina não era mulher de acreditar em qualquer coisa.

Ao longe os primeiros acordes da orquestra, trouxeram-na de volta a cabine luxuosa do navio Queen Victoria. O primeiro dos muitos cruzeiros que planejava fazer. Era hora de reaprender a viver e ser feliz. Retocou o batom pensando no namorado que havia conhecido a bordo. Um homem interessante, não necessariamente um futuro marido... Mas alguém para passar bons momentos.

Antes de colocar o perfume, Rosas Vermelhas, ajoelhou-se em frente ao pequeno altar improvisado e sorriu para o velho amigo:

- Ai meu santo Antônio! Olha como estou bonita! Eu sei que vaidade é pecado e eu andei pecando demais... Foram vestidos e sapatos e perfumes. Nossa! Mas eu andei fazendo doações também. Não justifica,  mas não precisa ficar zangado... Vou ser mais controlada. Gula também é um terrível pecado? O  senhor não imagina quantas refeições eles servem...Luxúria também? Não! ? Ainda não cheguei neste ponto! Meu santinho  só queria agradecer de novo e de novo e de novo...Sou  seu maior milagre! Valeu a pena esperar todos estes anos... Olha, foi  melhor que casamento!
 


Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 13/06/2009
Reeditado em 20/06/2009
Código do texto: T1646422
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