SEU MANDUCA CAMBISTA

Outro dos meus heróis populares – do qual muito me entra simpatia adentro, por ter nascido ele quase estoico – era tido, por todos os moradores do bairro, como uma alma boa. Camarada ordeiro, que nem copo levava aos beiços, macio nos hábitos e bem aceito em todas as portas.

O caso é que o gajo pegou de má sorte apenas por ser cunhado da Vaca Velha. Desta, que merece causo, falo eu em momento oportuno. E seu Manduca tinha por ofício vender o bicho, aqui e ali, todo santo dia. Salvante os domingos, óbvio, quando botava roupa com cheiro de guardado e metia-se, sozinho, sem mulher no seu pé, a caminho da missa.

Como ia dizendo atrás, o azar de seu Manduca foi que, sendo ele quem arranchava em sua casinha de porta e janela a cunhada controvertida e assaz arroz-com-casca, por muitas e muitas oportunidades, em seu viver de andarilho, durante o dia, indo e vindo pelas ruas, tinha o penitente de ouvir a mesma gritaria da molecada sem lei: – Cadê a Vaca Veeelha, hein?! Cadê a Vaaaca?

Má sina de seu Manduca, a ter que aturar chincadas e aporrinhações de uma multidão miúda, sem eira nem beira. Um cambista tão inofensivo, que, até, muitas vezes, trazia a sorte – de média a pequena sorte – para o povaréu daquelas bandas de subúrbio.

Uma vez, minha tia velha, solteirona que mofou no caritó, donzela sob a forma do Código Civil, arrancou dos pules de seu Manduca a quantia minguada de dezoito cruzeiros, na casa do cachorro. Isto foi que a desgraçou e a fez viciada de carteirinha, no jogo do bicho, sempre doida para, de novo, pegar no bicho. Só que, até morrer, ela nunca mais viu este bem-bom.

Ah, também me lembro, agora, que D. Maroca da esquina com a Rua 27, de outra feita, faturou foi o dobro da minha tia velha, quando amarrou aposta no pavão. Imaginem, só, a causa do palpite!... Aconteceu somente porque ela sonhara com o tal de ex-namorado, de jeitos e trejeitos pavoneados, ali pela vizinhança dos meados da década de 50.

Por que faziam judiação com o pobre de seu Manduca, mania de lhe gritarem pelas costas, cobrando notícia de sua cadavérica cunhada? E o aperreavam, mesmo quando o homem, no seu direito constitucional, exercia sua lídima missão de vender bicho às pessoas. Contudo, isto tudo acontecia por quê? Maledicência, sem dúvida, pois seu Manduca cambista não precisava sempre saber por onde andaria a estrambótica Vaca Velha.

– Cadê a Vaca Veeelha, hein?! Cadê a Vaaaca? – era como troavam, no ar, os interrogatórios enjoados às orelhas do infeliz, frases que pareciam voz de gravador.

Bem comportado, ele, em tese. Seu Manduca, ouvindo tais e quais chateações, também, povinho pacóvio, não ia ter, de contínuo, natureza de aço. E seu Manduca, então, de armas e rédeas na boca, lascava xingações em riba das mães da garotada: “– Cadê também a mãe, filhos de uma éeegua?!” Natural que o cambista, tão gente-boa, vez por outra, ficasse tiririca, como que danado da vida.

Uma ocasião, por descuido do guri que lhe tascou desfeita, e que se achava às barbas do velho, lá no bar do Mundico, o vendedor de bicho acertou um coque de jeito no coco desse um safado. Mas o pai do menino nem fez caso, não ligou e lhe deu anistia. Tanto seu Manduca gozava de reputação e era tido como boa peça. E, pois, freguesa de bicho do cambista, até a mulherzinha que parira o bruguelo tirou por menos e exarou foi razão à parte ofendida.

Fort., 03/06/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 03/06/2009
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