O Caso da Ilegitimidade da Parte (Ou Um Exu Baixou Nessa Audiência!)

Não é justo aquele que julga às pressas ou usa da violência; o sábio serenamente considera o que é certo e o que é errado – Texto Budista

I

Antes que dêem início propriamente à leitura da presente história, peço-lhes que me acompanhem num breve estudo sobre um importante tema do Direito: a legitimidade que as partes devem possuir para requerer um direito em seu próprio nome. Tal conceito se acha principalmente expresso em nosso ordenamento jurídico no Código do Processo Civil, artigos 3º., 6º. e 267º., inciso IV.

Em resumo, é o seguinte: a legitimidade existe quando o autor da ação é o titular do direito ao qual a prestação da atividade da Justiça deverá proteger, sendo o réu direta ou indiretamente responsável pelo fato que lesou ou ameaçou de lesão o direito do autor.

Para verificar se há legitimidade deve o julgador isolar a causa da razão do pedido e conferir sua pertinência tanto em relação ao autor quanto em relação ao réu. Se conseguir estabelecer a relação das partes com a matéria a ser discutida, poderá concluir positivamente tanto à respeito da legitimidade ativa quanto da passiva.

Finalmente, cabe esclarecer que ninguém pode - salvo nalgumas raríssimas exceções previstas em lei – solicitar direito alheio em nome próprio.

Mas devo informá-los antecipadamente que talvez não seja exatamente esse o caso que irão presenciar nessa história. Parece-me realmente que uma das partes presentes numa determinada audiência ocorrida no fórum trabalhista de Betim não tinha legitimidade alguma fosse para mover a ação ou para simplesmente participar daquela audiência.

II

Mais uma coisa: antes de dar prosseguimento à narrativa, gostaria de tecer um rápido comentário. Decerto que a religiosidade e a fé são sentimentos e realidades por demais especiais e muito característicos do ser humano. São naturais às pessoas no geral e a cada um de nós em particular.

Acredito que cada indivíduo crie e desenvolva a sua própria e especialíssima profissão de fé no decorrer de toda a sua vida e independentemente de seguir essa ou aquela determinada religião oficial. Assim, quase sempre encontraremos numa só pessoa uma maravilhosa infinidade de crenças, crendices e valores religiosos os mais diversos que vão naturalmente se sobrepondo e se acrescentando uns aos outros com o passar do tempo.

Foi exatamente esse o caso que se deu naquela audiência trabalhista ocorrida na cidade de Betim. Tínhamos ali a princípio um caso aparentemente simples e rotineiro: de um lado achava-se como reclamante a empregada doméstica Esmeralda e do outro os seus patrões, os reclamados José Alfredo e Maria José, esposo e esposa.

Sim! Decerto que aquele parecia ser de fato apenas mais um processo na rotina de uma juíza do Trabalho, se não fosse por...

Bem, vamos saber afinal o que aconteceu por lá!

III

Iniciada a sessão, daí a pouco as partes começaram a demonstrar bastante insatisfação uma com a outra, como às vezes costuma acontecer. Estavam todos um tanto agitados e nervosos. Farpas e críticas ferrenhas eram lançadas de um lado e de outro e ao mesmo tempo questões variadas estavam sendo suscitadas pelos respectivos procuradores, tudo num clima muito tenso e pesado.

Observada de longe, aquela reunião mais se parecia com uma audiência de separação judicial: cada qual buscava apresentar para o julgador o seu lado da questão e o seu próprio ponto de vista, independentemente do que a outra parte pudesse igualmente dizer, fazer ou demonstrar.

De repente - não mais que de repente! - no meio de toda aquela balbúrdia e agitação, levanta-se o tal José Alfredo da cadeira onde se encontrava sentado ao lado de sua esposa e começa inadvertidamente a caminhar de um lado para o outro da sala e com uns modos muito esquisitos. Olhos meio fechados, mãos e braços ligeiramente retorcidos e curvados para trás, mantinha o homem o corpo dobrado e começara a dançar e a entoar umas palavras muito estranhas e totalmente ininteligíveis para todos os que ali se encontravam:

Embarabó, agô mojubá

Embarabó, agô mojubá

Omodé coecó

Exu Marabó, agô mojubá

Lebara Exu onã"

Sem conseguir compreender muito bem o que estava acontecendo, a juíza simplesmente solicitou que o sujeito retornasse até a cadeira onde estivera sentado e que se fizesse silêncio na sala. Mas o que as suas palavras conseguiram mesmo foi inflamar o tal sujeito e atrair a atenção de uma pequena quantidade de pessoas que se achava na ante-sala de espera das audiências e que começaram a partir daquele momento a se aglomerar curiosos ao derredor da porta de entrada.

(Por lá, inclusive, se achava passando naquele momento uma certa senhorita Gracinha que trabalhava numa Secretaria próxima. Vestia-se a bela morena com um lindo conjunto composto de blusa e saia bege em tom sob tom e ia tão distraída em seus próprios devaneios que nem percebeu toda aquela confusão se armando logo ali. Mal sabia ela que daí a algum tempo se veria também passando por uma situação bastante desconcertante e constrangedora, situação essa que teremos a oportunidade de conhecer numa outra história logo adiante.)

Entretanto, voltemos agora ao presente caso:

- Um momento, meritíssima – disse a reclamada Maria José – a senhora não entende o que está acontecendo: é que o meu marido...

- Peça para ele se comportar melhor, minha senhora, ou terei que solicitar que se retire da sala...

- Mas a senhora não está compreendendo, doutora!

Nisso o datilógrafo de audiência levanta-se de sua cadeira e – branco de medo e tremendo igual vara verde – endereça para a juíza a seguinte frase esclarecedora e estarrecedora:

- Doutora, se isso não for farsa nem mistificação, com certeza que só pode ser mesmo é verdade! Alguma coisa baixou na nossa audiência e não foi passarinho verde não...!

Prezados leitores: preparem-se para conhecer nesse momento um dos baianos mais medrosos que eu já encontrei nas minhas muitas andanças por esse mundo. Vai saber onde é que a senhora juíza fora desencravar aquele datilógrafo molenga! Aquilo só não era mais covarde do que o Tenório, um velho amigo meu e compadre do Mané Libório, morador lá pras bandas dos campos do Indaiá e que vocês terão o prazer de conhecer algumas páginas adiante.

Aquela criatura era tão covarde e temerosa acerca das coisas espirituais que só faltava mesmo era sujar as calças de tanto receio. Naquele momento o infeliz mal conseguia ficar de pé e se tornara branco como cera.

- O quê, perguntou-lhe a juíza sem entender ainda o que o baiano lhe houvera dito. Mas como isso veio parar aqui? Se não fui eu que chamei essa coisa e nem foram vocês, a quantas vem a criatura? Querem saber: vamos acabar logo com a farsa! Aqui nem é terreiro de candomblé e nem é a casa de vocês! Isso ainda é uma sala de audiências, um Tribunal, e eu exijo o respeito e a consideração que a Justiça merece, continuara a juíza bastante desconcertada e sem saber muito bem o que dizer ou fazer numa situação daquelas.

Seus muitos anos de estudo nos bancos da faculdade e todos os conhecimentos jurídicos e práticos que viera adquirindo ao longo do exercício da profissão pouco lhe valeram na solução daquela periclitante situação.

Como se não bastasse, o guia, o pai-de-santo ou sabe-se lá o quê de fato seria aquilo, começou a rodopiar e a remexer o corpo para frente e para trás e a falar umas coisas de causar espanto e calafrio na espinha de qualquer cristão:

- Larôye, Exu! Exu, eu quero um copinho de cachaça...

Já há algum tempo, porém, que a esposa do senhor Zé Alfredo havia se voltado na direção do marido. Começara a tentar fazer “subir” aquela entidade. E para quem não está acostumado com os termos místicos advindos da religiosidade africana, fazer subir a entidade quer dizer devolvê-la para o lugar de onde veio.

A todo o momento a mulher dizia:

- Sobe entidade! Sobe em nome do Espírito Santo! Sobe criatura...

Ao que a tal entidade imediatamente respondia:

- Espírito Santo que nada! Eu só vou embora daqui depois de molhar a goela numa cachacinha de rolha...

- Calma, seu Exu, as coisas vão se ajeitar já-já, dizia aflita a advogada da reclamante Esmeralda. Aquela procuradora jamais imaginara que um dia iria passar por uma experiência daquelas.

- Tirem essa entidade daqui – continuava vociferando a juíza – já estou a ponto de perder a cabeça...

- Mas o negócio é mesmo rezar, meritíssima – contra-atacava o medroso datilógrafo - rezar e pedir a Deus que dê jeito na coisa! Só tem uma maneira de resolver a situação, doutora, e é a gente obedecer e fazer tudo o que a entidade quiser ou pedir. Se não for assim, ela não sobe de jeito nenhum, continuava o datilógrafo martelando com um prego na estopa a sua própria idéia.

Enquanto isso a dona Maria José continuava muito aflita na sua tentativa:

- Sobe seu Exu! Sobe em nome do Espírito Santo, que depois eu lhe dou o seu cadinho de cachaça...

- Aí já é demais, já estão passando dos limites – disse a juíza começando naquele momento a dialogar também com a tal da entidade. Sobe de uma vez criatura divina, que aqui não é o seu lugar não! Sobe seu Exu...

Ao que a entidade mais uma vez respondeu:

- Me dá um charutinho aí, madame! Onde é que está a minha cachaça de rolha? Por acaso foram moer cana pra fabricar a bendita da aguardente? Estão demorando demais e eu tenho sede, tem tempos que não bebo uma caninha...

- Que charuto nem Mané charuto, sua Entidade!

Como podem perceber nessa altura a entidade já havia até adquirido dois pronomes de tratamento – “senhor e seu” - antes do próprio nome, que no presente caso era “entidade” mesmo.

- Não sabe que é proibido fumar em prédio público? Agorinha mesmo te mando prender por ofensa à Lei número 9.294 de 15 de julho de 1996, que proíbe fumar em recinto coletivo, privado ou público. É melhor sua Entidade começar a ler aquele aviso colado na parede senão o clima vai esquentar e o caldo vai entornar daqui a pouquinho...

- Mas, doutora – volveu o nosso temeroso datilógrafo que naquele momento deixou aparecer de mansinho a sua cabecinha de ovo por debaixo da sua mesa de trabalho e correu apressado a se esconder por detrás da juíza - desde quando entidade sabe ler aviso ou quadro publico?

- Pois então – respondeu-lhe a juíza - ao invés de cachaça com charuto, busque pra nossa visitante um gole de café e uns biscoitinhos água e sal que deixei guardados numa tigela sobre a mesa da cozinha. Talvez bebendo e comendo qualquer bobagem essa entidade resolva partir de uma vez por todas! Mas lhe diga que é só isso o que temos para oferecer no momento. E que nem pense em voltar outro dia para buscar mais! Aliás, chamem logo os seguranças para por toda essa gente baderneira para fora daqui. Vamos evacuar o local: tirem todo mundo daqui, inclusive o tal do seu Exu...

Mas nem fora preciso chamar os seguranças. Já há algum tempo que alguns deles se achavam coladinhos na porta de entrada da sala, a tudo observando em comedido e profundo silêncio. Não se via da parte deles nem um movimento ou ação. Não se atreviam a entrar e nem a irem embora de uma vez. Ficavam ali na metade do caminho e meio que agachados e escondidos uns atrás dos outros, a tudo observando calados.

O que não existia naquele grupo era mesmo muita coragem e energia para tomar conta da situação e realizar o que a juíza vinha pedindo. Então - diante da ordem imperial daquela meritíssima - se encolheram ainda mais e se entreolharam aflitos. Uns atrás dos outros, começaram a sair de fininho. Nenhum deles tivera peito bastante para se meter a besta ou por a mão naquele Exu.

- Desculpe-nos meritíssima – respondeu já quase fora da sala o último dos seguranças - mas com seu Exu, Iansã, Ogum e Iemanjá não se brinca não: com essa turminha do barulho nós não mexemos não senhora! Ainda mais que o seu Exu aqui não lhe desacatou e nem chegou a direcionar para Vossa Excelência qualquer palavra mal falada de desafeto ou de desrespeito. O coitadinho só quer mesmo é dar uns tragos num “cubano” e beber uma cachacinha!

Por aquele tempo a dita esposa do seu Exu – isto é, a mulher do reclamado José Alfredo – tinha esgotado todas as suas forças, energias e palavras na tentativa de fazer subir a entidade. Permanecia agora quietinha num canto e solicitava apenas que alguém lhe fizesse a gentileza de trazer um copo d’água para que ela pudesse se restabelecer e prosseguir no seu intento de despachar a criatura.

Também pudera: devia estar com a garganta sequinha de tanto que se esgoelara implorando que a infeliz entidade se desligasse do seu homem e subisse de uma vez por todas em nome do Espírito Santo!

Mas o tal do Exu continuava ainda por ali. E a todo o vapor!

- Onde está afinal o raio desse charuto? E essa cachaça que não vem?! Pelo jeito temos aqui um bando de incompetentes que não prestam nem para me servir uma “branquinha”...

IV

Só sei dizer, minha gente, que as preces, promessas e desejos foram tantos naquela sala que o danado do seu Exu acabou subindo mesmo. Voltou direitinho para o lugar de onde tinha vindo fugido ou foragido.

Daí a pouco foi a vez do datilógrafo de audiências dar uma sumida também, mas esta fora à pedido e mando da doutora juíza. Meia hora depois retorna o baiano trazendo consigo uma senhora muito conhecida nas redondezas, a famosa dona Maria Padilha. Essa possuía um terreiro de candomblé muito respeitado em Betim pelas bênçãos espirituais que já conseguira realizar.

Não demorou muito para que ficássemos sabendo o motivo pelo qual viera aquela mulher. Ela imediatamente começou a dar uma faxina no ambiente. Carregava numa das mãos uma pequena lata que se sustinha pendurada por três ou quatro correntes de metal. Dentro daquela latinha miúda queimava uma erva ou incenso tão catingoso que só Deus mesmo para dar conta daquilo.

Na medida em que se aproximava de cada um dos cantos da sala de audiências, espargia aquela fumaçazinha ardida, fedorenta e livradora do ambiente e recitava umas preces, mandingas e orações numa língua tão esquisita que só ela mesma conseguia entender tudo aquilo. Daí a pouco se posicionou completamente imóvel no centro da sala e afirmou para todos os presentes que o tal Exu havia deixado o ambiente muito carregado e poluído e que isso exigiria dela mais algum trabalho.

Em seguida foi um tal de tome água com sal grosso para cá, para lá e em todos os pontos possíveis, acessíveis e inimagináveis. Até no teto ela semeou uns respingos daquele líquido livrador com as pontinhas dos dedos. Logo depois entoou uns pontos de Exu e, para descarregar de vez o local e deixar tudo limpinho-limpinho, cantava, bamboleava e remexia o próprio corpo em todas as direções.

Para quem não conhece, devo esclarecer que os pontos de Exu são letras e canções de louvor endereçadas especificamente a este orixá. Assemelham-se aos mantras indianos e são muito utilizados tanto para trazer as entidades quanto para dar cabo delas e levá-las para bem longe da nossa presença. Finalmente, dona Maria Padilha mandou ver ainda numas tantas orações e preces alegando haver restado ali um bocadinho da presença maligna daquela criatura.

Ao final de todo aquele auê que a dona do terreiro aprontara tanto na sua chegada quanto na saída, a última coisa que se pode observar por ali foi o medroso daquele datilógrafo baiano se esgueirando entre as pessoas e se agarrando hesitante às mãos de dona Maria Padilha. Implorava-lhe que lhe desse um passe definitivo que o livrasse e o protegesse de todos os tipos de males e de coisas medonhas do mundo espiritual.

Como conclusão de toda essa lengalenga, só nos resta mesmo é admitir que aquele tal do seu Exu não tivesse de fato ou de direito qualquer legitimidade para atuar naquele processo ou para participar da audiência!

E vocês aí: o que acham? Concordam ou não concordam comigo?