AS VELHAS

“Só quem viu o Papa, na Praça São Pedro, é que pode dizer com toda certeza que foi à Roma”.

Em Porto da Rua também é assim. Se alguém disser que já esteve lá e não conheceu a Praça da Buceta, na Rua das Velhas, esqueça. Provavelmente, essa pessoa nunca esteve por lá. Se muito, passou apenas e rapidamente pela Rua de Fora, que liga o povoado aos municípios de São Miguel dos Milagres e a Porto de Pedras.

Habitado em sua maioria por gente humilde, esse endereço conhecido em Porto da Rua trás consigo muitas histórias interessantes. São pescadores, lavadeiras, pedreiros, pintores, carpinteiros e pequenos vendedores que ganham a sobrevivência nos ofertando diariamente em nossas portas pães, bolos, verduras, frutas, uma infinidade de guloseimas. Além disso, existem também rezadeiras e filhas de santos, que alegram aquele ambiente, há muito, carente de ajuda de toda espécie. Cada um com sua vida de luta e sofrimento. Amores e desencantos.

Emprego na comunidade é feito sovaco de cobra, ninguém vê. As pessoas vivem como podem e conforme Deus vai deixando que sigam suas sinas. Os mais abençoados são ajudados pelos filhos, que moram em outros cantos do lugarejo. Os outros, que ainda são muitos, amargam o descaso e o abandono dos parentes mais próximos que só se lembram deles quando fazem filhos e mandam pras coitados criarem e dividirem o pouco que lhes resta de pobreza. Mesmo assim, as crianças são em número reduzido. Talvez por isso o nome do lugar se chame Rua das Velhas.

À tardinha é comum encontrarmos as pessoas sentadas nos bancos feitos de pedaços de coqueiro e tábuas usadas da pequena praça improvisada, em volta da grande árvore. É ela que tem em seu tronco uma anomalia no formato do conhecido órgão sexual feminino. Por isso, o lugar ficou conhecido como Praça da Buceta.

Ficam todos a conversarem, jogar dama, baralho e dominó, o mais disputado de todos. Tem até torcida organizada na hora das partidas decisivas.

Seu Manoel de Rita é o grande campeão local daquela modalidade esportiva. Com as pedras nas mãos, ele é o rei absoluto do lugar. É adorado por aquelas senhoras simpáticas de poucos dentes, mas de sorrisos largos. Inversamente proporcional é o ódio de seus adversários. Todos sedentos por uma vitória sobre Manoel pra tomarem a sua fama junto àquela comunidade feminina desprovida de belezas físicas, mas de corações sem fronteiras.

Seu Pedro da Cachorra, um senhor de sessenta e dois anos, não é lá grande coisa no trato com as pedras do dominó, mas pela pouca idade que possui é o mais cobiçado pelas meninas, como ele gosta de chamá-las. Quando passa pela rua em direção á praça as moçoilas na sua mesma faixa etária suspiram de desejos. Sua prosa agradável, seu jeito educado de tratar o povo, seus pequenos olhos verdes de marinheiro inglês e seu perfume de água de colônia, sempre ativo, lhe dá tanto prestígio quanto o prefeito ou o padre da cidade.

Dentre tantas pretendentes ao cargo de “Madame Cachorro”, existe Dona Pureza. Uma morena de setenta e quatro anos nos lombo e com mais de cem anos de experiência de vida. Foi ela quem descobriu a aberração no tronco da árvore e apelidou o lugar com o nome tão agradável, conhecido e cobiçado.

Certa manhã estava com vontade de comer uma galinha de capoeira à cabidela e fui procurar meu compadre Nenê. Estava com intenção de obter informações sobre a dita penosa e, ao mesmo tempo, aproveitar pra botar a conversa em dia. Ele me levou até a casa de sua mãe que fica lá mesmo na Rua das Velhas. Ela criava umas para seu consumo, mas vendia de vez em quando pra algum amigo que estivesse necessitado. Comprei uma bem gorda pra levar pra casa, e de quebra conheci Dona Pureza, que estava por lá também com o mesmo propósito que o meu.

Que figura simpática. Abraçou-me, como se fossemos velhos amigos. Acabou me convidando pra tomar um café e batermos um papo em sua casa na hora em que eu achasse mais conveniente. Marquei para três horas da tarde do dia seguinte, com uma condição: teria que ser na dita praça, que fica bem em frente a casa dela.

Depois de acertado os detalhes, fui embora pensando o que será que ela tem tanto pra me contar? Tem alguns velhos com a conversa tão longa quanto de bêbado. Demoram a se lembrar o que querem falar e, geralmente, enrolam a voz quando estão ansiosos. Não falo nem da cuspideira que a gente leva na cara devido a dentadura está folgada por dentro do buraco da boca. Tudo bem, pensei comigo. Todo sacrifício é válido pra levar um pouco de conforto e alegria a essas pessoas que já deram tanto de si na vida e só querem alguns minutos da nossa atenção.

Já chegando em casa, na rua do então Hotel Tropical, encontrei Dona Maria Arruda, uma rezadeira com grande prestígio espiritual e fama de já ter curado pra mais de oitenta enfermidades em mais de duas centenas de pessoas. Dores lombares, espinhela caída, costela quebrada, garganta inflamada, frieira, sovaqueira, bicho de pé, dor de cabeça das mais diversas, desvio de coluna, mioma, febre amarela, bronquite asmática, dor de cotovelo, fratura exposta, ferimento de bala e faca. Além disso, alcoolismo, dor de corno, chifrada de boi, coice de mula, picada de escorpião, veneno de cobra, sífilis, gonorréia, tuberculose, furor uterino, dores de parto, de saudade, de amor perdido e resfriado crônico.

Já botou pra correr mais de vinte demônios e espíritos ruins que de vez em quando se apoderam daquelas pobres criaturas indefesas. Tirou choco de galinha e de mulher parida. Até um padre de Coité do Nóia, cidade do sertão alagoano, já procurou cura para um câncer de próstata que lhe tirava do sério. Maria Arruda, com suas rezas, lhe ajudou a não sentir tantas dores nem passar por demoradas seções de quimioterapia. O padre morreu depois, mas partiu dessa pra melhor, feliz e com o semblante bem mais sereno. A única coisa que ela ainda não tinha curado ou dado um jeito era a ganância pelo poder de alguns políticos locais.

Maria Arruda perguntou de onde eu vinha com aquela galinha. Quando lhe disse de onde, e quem acabara de conhecer, ela deu um sorriso por entre os lábios e avisou que me preparasse porque Pureza, além da bondade, gostava de falar safadeza e contar coisas que nem o Diabo acreditava. Despedi-me dela e fui embora já com outros pensamentos a respeito da prosa que me esperava.

A idéia das histórias de Pureza não me saiu mais da cabeça. Resolvi que o café não poderia esperar até o dia seguinte, e naquela mesma tarde eu fui pra praça escutar o que ela tinha a me contar.

Ela começou querendo saber de quem eu era filho e de onde vinha. Depois de se certificar das minhas condições de recém chegado ao povoado, começou a se abrir e falar sobre seu passado.

Quando mais jovem, lá pelos doze anos foi forçada a se deitar com o padrasto e nunca mais viu a cor nem o cheiro da virgindade. Ficou atrelada àquele homem por mais de quatro anos satisfazendo seus desejos de animal no cio. Quando já não agüentava mais tanto remorso e culpa o destino chegou com a solução.

Um dia, andando pela rua em São Miguel dos Milagres, onde morava desde o dia em que nasceu, um caminhão carregado de mercadorias perdeu o controle e capotou. Da carga, foi coisa pra tudo quanto era lado no meio da rua. Tinha bacias de alumínio, penicos de louça branca e móveis lindos feitos de compensado. Tinha também copos de vidro de várias cores, baixelas, panelas, pratos e uma infinidade de caixas de remédios que ninguém nunca tinha visto nem sabia pra que servia. Um fogão à lenha novinho em folha se estraçalhou no chão como se fosse feito de papel molhado.

No meio daquela bagunça toda veio parar bem junto a seus pés uma caixa daqueles estranhos medicamentos. Ela se abaixou devagarzinho, pegou a embalagem e escondeu em baixo do vestido tentando não ser notada pela pequena multidão que começava a se formar e saquear a carga daquele infeliz caminhoneiro que agonizava entre sangue e palavrões dentro da cabine do possante.

Em casa, chamou uma amiga mais velha que sabia ler, e pediu pra ela traduzir aquelas letras miudinhas que estavam escritas num papel dentro da caixa. Ela já desconfiava de alguma coisa esquisita, pois do lado de fora da tal caixa havia um desenho de um rato morto. Enquanto a amiga lia a bula, informando passo a passo como matar um rato usando aquele veneno, ela ia pensando em como se livrar do padrasto.

A noite chegou e por volta das onze horas como de costume o safado deixou a mulher dormindo e foi pra cama dela. Ela se deixou levar e satisfez todos os seus desejos de tarado insaciável. Cansado, ele lhe pediu um copo com água que ela sem pestanejar foi buscar com todo gosto. Trouxe-lhe muito mais do que ele precisava pra matar a sede. Depois de alguns instantes que ele havia tomado a água, ela presenciou a coisa mais feliz e terrível de sua vida. O infeliz começou a babar feito um cachorro doido. Debatia-se por todo o quarto acordando os vizinhos com sua gritaria e a de sua mulher que estava apavorada sem saber que mal ou espírito ruim estava atacando o marido.

Antes de dar o último suspiro de vida o safado abriu o jogo para a esposa. Gritava que estava sendo envenenado pela enteada, porque há muito tempo faziam sexo as escondidas e ela queria tirá-lo da mãe e ficar com ele só pra ela. Depois de muito babar e gritar o desgraçado ficou parado e se calou. Ficou deitado por alguns instantes só mexendo com as bolas dos olhos. De repente, deu um pulo inesperado, deu três coices no pé da cama, dois arrotos, um peido fedorento, um salto mortal e caiu durinho no chão já fedendo a defunto velho.

A mãe acreditou na história do finado e colocou a menina pureza casa pra fora como uma vadia sem eira nem beira pra se proteger da chuva. A sua doce mãezinha que tanto lhe amava pediu pra que ela nunca mais procurasse saber nem se ela era viva ou morta. Mandou que sumisse no oco do mundo sem nem deixar rastro de mijo pra não ser encontrada por um cachorro miserável feito ela. Aos prantos, Pureza juntou uns trapinhos velhos num lençol e foi embora pra beira da estrada arranjar uma carona que lhe levasse pra qualquer lugar longe dali. Ela ia tentar trabalhar no que melhor sabia fazer nos últimos anos. Ia dar prazer aos homens desde que lhe pagassem.

Ao chegar a Maceió, Pureza não se deu bem não. Comeu o pão que nem o Diabo quis amassar. Parece que pisara em rastro de corno porque a vida dela entortou de vez. Nos dez anos que passou na capital andou de cabaré em cabaré. Tinha dias que ela até achava o ex-padrasto um homem santo comparado aos sujeitos que tinha que se deitar. Cada um tinha um desejo mais esquisito que o outro. Nem a mais experiente das raparigas conseguia imaginar um jeito de satisfazer a tantos loucos.

Teve de fazer coisas arrepiantes com aqueles homens. Uma vez teve de lamber sabão pra facilitar o coito. Uivou de quatro pés, imitando uma loba, em cima de uma mesa. Trepou de tudo quanto foi jeito e até quando não tinha jeito. Em baixo da cama, dentro da geladeira a gás, em cima dum fogão de lenha aceso, em pé numa rede, por baixo de jangada, por trás dos coqueiros, em vários bancos de carros. Por entre as covas do cemitério de Jaraguá, no necrotério da Santa Casa, na delegacia de polícia, no quilometro vinte e cinco da BR 101 Norte, na bica da pedra e na Barra Nova. Em boléia de caminhão, garupa de bicicleta, em andaime de construção e escadaria de igreja. Na areia da praia ela trepava durante a noite e ao sol escaldante do meio dia. Quase perde um pedaço da bunda numa mordida de siri quando tava transando com um marinheiro Alemão no cais do porto de Jaraguá.

Deixou muitos homens desconsolados e morrendo de ciúmes com o desprezo que ela impunha a todos com suas técnicas especiais.

Depois de formada em putaria, pós-graduada em sacanagem, doutorada em orgias e PHD em surubas, viu que pra deixar de dar dinheiro aos cafetões e cafetinas de plantão e melhorar de situação teria de abrir seu próprio negócio. Começaria com uma pequena empresa, ela e mais duas garotas. Depois, se a coisa melhorasse, expandiria e diversificaria os negócios.

Naqueles tempos existia em Maceió uma sociedade secreta entre os donos de puteiros e ela não conseguia se estabelecer como queria. Deu pra ganhar um dinheirinho e fazer um pé-de-meia razoável mesmo com as perseguições de Chico Meia Tripa, um cafetão castrado do testículo esquerdo, e chefe da máfia local de prostituição, que vivia a lhe perseguir onde quer que ela abrisse uma pequena casa de tolerância.

Medindo e pesando as conseqüências do empreendimento, resolveu mudar-se com suas meninas para o interior do Estado. Lá, ela mataria dois coelhos com uma paulada só. Se livraria de Chico Meia Tripa e de quebra ficaria mais perto da mãe. Naquela altura do campeonato já tinha perdoado a filha porque precisava de seus préstimos financeiros pra pagar os remédios que tomava pra curar uma tuberculose gravíssima que aos poucos ia tirando sua vida. Demorou muito tempo não, a velha. Seis meses depois da chegada da filha, a mãe deu entrada no reino das almas com roupa, doença, incenso e tudo que cabia dentro do caixão.

Na inauguração do primeiro bordel de qualidade da região norte, os prefeitos das três principais cidades decretaram feriado por conta própria. Partiram com mais de mil a fim de experimentarem as delícias da culinária Maceioense que se apresentavam bem ali pertinho, no então povoado do Toque, um lugar escondido entre um sítio de coqueiros, a dois quilômetros do centro de São Miguel.

O lugar ficou uma beleza. Com as economias que tinha e mais alguns generosos empréstimos a fundo perdidos, por parte dos prefeitos e coronéis das redondezas, Pureza conseguiu reformar uma antiga casa de fazenda dando-lhe um ar de cabaré de luxo. Na noite de inauguração o movimento extrapolou todas as expectativas. Eram tantos clientes e raparigas se agarrando no meio do ambiente que dava pra rapar com enxada e encher caminhão. Ao final de três dias de orgias, surubas e depravações, Madame Pureza, como era chamada pelas meninas e clientes do seu antro, resolveu fechar a casa pra descansar o couro e os pentelhos de suas quengas.

Aquela festa ficou registrada na memória dos participantes como a mais animada e organizada de todos os tempos. Até os vira-latas latiam de saudades quando se lembravam dos restos de carnes e ossos de frangos assados que comeram durante as comemorações inaugurais do prostíbulo. Durante aquelas madrugadas de festa eram tantos homens e putas andando nus pela areia da praia do Toque, que se alguém mal avisado visse aquelas cenas pensaria que Sodoma ainda não tinha se acabado.

Quando soube da orgia o Padre Bernardo entrou em conflito com o prefeito Sandoval. Queria fechar o bordel de qualquer jeito. Jogou até praga no administrador municipal. Mas não teve jeito não. Político tem mãos e corpo fechados, além de muitos amigos influentes e nesse embalo o padre foi transferido para casa do chapéu e ninguém mais ouviu falar naquela criatura calva, suarenta e cheia de direitos adquiridos em nome da fé alheia.

Das quinze meninas que compunham o plantel de beldades de Pureza, algumas se destacavam pela beleza e pelas façanhas mirabolantes com que satisfaziam os clientes locais e estrangeiros da casa. Lili toda pura, era uma loira de peitos fartos, muito requisitada pelos gringos que contrabandeavam animais silvestres. Um desses clientes, me contou Pureza, anos depois inventou um tal de Air-Beg. Juçara Boa Boca, uma morena experte em chupança, era a preferida dos asiáticos pescadores de baleias, que na época trabalhavam no litoral da Paraíba e nos fins-de-semana apareciam para gastarem seus dólares. Tereza da Égua era outra morena escultural, de ancas largas, uma sumidade em matéria de “sessenta e nove”.

Inácia au-au, uma baixinha de cochas grossas, era a mais querida pela turma apreciadora da posição de cachorrinho. Ilda Vaqueira, outra loira de médio porte, era professora na arte do cavalinho. Ensinou vários vaqueiros a cavalgarem em égua de duas pernas. Toinha Construtora arranjou nome e fama só atendendo pedreiros e serventes fanáticos no seu famoso “carrinho-de-mão”. Glorinha Marinheira, uma mulata sem precedentes, era a mais popular de todas. Gostava de conversar e escutar as histórias de cada cliente antes da trepança. Adorava fazer suruba com no mínimo três parceiros e cobrava modestamente o preço de um.

Com as informações recebidas através das meninas, Pureza foi apurando seu leque de posições e desejos absurdos de seus clientes. Pra colocá-los em prática somente com algum prefeito ou fazendeiro endinheirado.

Dentre seus amantes mais assíduos estavam Raimundo da Bananeira, um fazendeiro metido a bravo, que adorava trepar com uma fruta enfiada na bunda. João da Cabra, prefeito de uma cidadezinha do interior pernambucano, pagava Pureza só pra lhe chupar os peitos por horas a fio. Dr. Juca, mais conhecido como Juca Mão Direita, diretor de uma escola religiosa em Maceió, pagava caro só pra ser masturbado por Pureza. Tinha também Zequinha do Haras, um criador de cavalos árabes, que adorava se vestir de mulher e caminhar pelo corredor do piso superior do cabaré enquanto a farra rolava no salão de baixo. Eram tantas as esquisitices dos clientes que se fosse enumerá-las daria um rosário com mais de mil contas.

Madame Pureza passou anos bons de fama e glórias no povoado do Toque. Ganhou muito dinheiro com suas meninas, mas tudo que vem fácil, fácil se vai. Sem querer apaixonou-se e acabou engravidando de um rapaz que tirava cocos nas propriedades vizinhas a seu estabelecimento. Ela se encantou por sua juventude e a forma carinhosa com que ele lhe tratava quando estavam se amando por entre os coqueiros da praia de Marceneiro. Foi lá onde se conheceram e namoravam nas horas vagas escondidos dos admiradores ricos e poderosos de Pureza.

O assédio a ela era tanto que a coitada nem tinha tempo de tomar banho de sol às margens do Rio Tatuamunha junto com suas pupilas. Era lá que as quengas adquiriam aquela corzinha bronzeada de raparigas novas.

Quando descobriram sobre sua gravidez e seu amor secreto pelo cabra de peia, os clientes mais abastados financeiramente, começaram a se afastar de sua casa de prazeres. Cada um deles achava que era seu dono e não admitia dividi-la com um sujeito pobre, negro e sem cultura. Com o tempo o dinheiro foi se acabando devagarzinho feito água de cacimba em época de seca. As noitadas de grandes festas foram ficando cada vez mais raras.

Pra remediar a situação, tentou fazer um aborto e quase morre. Foi transferida para o pronto socorro da capital e lá ficou por quase um ano, morre mais não morre. Quando saiu do hospital, parecia uma cachorra magra. Uma guenza caçadora de preá. Mal se alimentava e abria muito pouco os olhos. O prostíbulo não existia mais. Sem ela à frente dos negócios o movimento caiu quase a zero e a saída foi as meninas venderem a casa grande pra poder pagar seu tratamento médico.

Quando conheceu Maria Arruda, a rezadeira Pureza já estava quase comprometida com o coveiro. Ele até já tinha lhe tirado as medidas para o corpete de madeira. A rezadeira começou a tratá-la com banhos à base de folhas de Pirituba misturada com folhas de urtiga seca e chá de pau babado. Foi tiro e queda. Pouco mais de um mês ela estava boazinha. Só perdera o útero, um rim, a banda do pulmão direito e os movimentos da perna esquerda. Tirando esses detalhes, ficou joinha, joinha. Até hoje ela diz que se não fosse as rezas e os chás de Maria Arruda, ela já teria virado adubo de cana a muito tempo.

Deus foi muito bom com ela. Depois de lhe tirar a fama, dinheiro e divertimento, deu-lhe o amor. Juntou-se com Carlinhos, o tirador de cocos e viveram felizes por mais de onze anos até que um coco caiu na cabeça dele e o coitado bateu as botas antes do tempo. Foi mais uma grande perda, mas, ela se recuperou e guardou luto por um longo período. Ficava a maior parte do tempo trancada em casa. Só ia à rua em noites especiais como o natal e sexta-feira da paixão. Sentava no banquinho de trás na igreja e fazia suas orações.

Quando cansou de andar de preto, já estava com mais de cinqüenta e sete anos no lombo. Mesmo assim em sua casa bem escondidinha, a danada ainda fez a felicidade de muitos garotos iniciando-os na vida sexual. Os amigos mais velhos também a procuravam de vez em quando pra lembrar os velhos tempos de orgias. Com eles, ainda fazia algumas posições aprendidas na juventude. Dava gosto de vê-la num sessenta e nove, num desgalha coqueiro, carrinho de mão, bailarina, centopéia, e chup-chup.

Numa dessas performances, encantou Dr. Osvaldo, um juiz aposentado e viúvo que passava férias na casa de veraneio na praia de Marceneiro. Quando voltou pra Maceió o velho homem da lei levou consigo as lembranças de seus melhores dias de safadeza. Nem quando era jovem havia experimentando tanta sacanagem de uma vez só.

Pureza realmente sabia como fazer um homem se sentir bem na cama. Apesar da idade ela ainda tinha o velho corpo em forma. Os anos tinham lhe tirado muita coisa, mas ela seguia vivendo ainda com o mesmo jeitinho de quando era jovem. Alegre, determinada, e faceira.

Enquanto segui nossa conversa eu notei várias vezes ela olhando disfarçadamente para Pedro da Cachorra que estava jogando uma partidinha de baralho com alguns amigos na mesinha improvisada atrás da grande árvore da praça. De vez em quando ele retribuía com um sorrisozinho meio escondido por entre os lábios. Senti que seu coração ainda estava aberto a novas aventuras amorosas e que Seu Pedro parecia ter certa caída por ela.

Quando terminou o bate papo já passava das oito horas da noite. Agradeci a confiança em me contar os seus segredos e fui embora pra casa pensando em como ela tinha sofrido durante a vida, por conta do infeliz do padrasto. Se não fosse por ele, talvez sua vida tivesse outro rumo. Poderia ter sido dona de casa, mãe e esposa fiel de algum daqueles bravos homens que tiram do mar ou da agricultura o sustento do lar. Poderia ter sido professora, costureira, bordadeira ou qualquer outra coisa.

Passei o resto da noite em claro pensando nela. Queria achar uma forma de ajudá-la a conseguir o que estava tramando seu velho coração de quenga aposentada. Pela manhã fui a casa de Pedro da Cachorra e com muito jeito contei-lhe da paixão de Pureza por ele. O velho ficou espantado com a notícia. Ele queria uma coisinha mais novinha pra esquentar suas costelas em noites frias de inverno, mas quando lhe falei dos dotes culinários da pretendente, ele não pensou nem meia vez, botou sua melhor roupa, se lambuzou de água de colônia e saiu porta à fora me dizendo que ia buscá-la pra ser sua companheira.

( Herivaldo Ataíde -2001 )

Herivaldo Ataíde
Enviado por Herivaldo Ataíde em 07/05/2009
Reeditado em 23/11/2023
Código do texto: T1581839
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