HOMERO, O DESCASCADOR DE VERBOS* [I]

O mascate que sempre teve foros de ‘honoris causa’, na casa do Camará, foi Seu Emídio. Mas outro, também, existiu que era uma casa cheia. Estou a falar é do caixeiro-viajante Homero.

A presença dele nos foi meteórica. Não lembro que fosse tão assíduo quanto o seu concorrente da comercialização de bugigangas. Contudo, suas visitas ao sítio deixaram pegadas indeléveis.

O homem era um conversador de marca. Nunca vi tanto poder de convencimento e semelhante clareza no lombo das palavras. Em poucos minutos, ele desfiava uma conversa de sala que dava gosto ao mais chato dos ouvidos.

Por ser um sujeitão novo e com promessa de ainda puxar estrada por mais cem anos – e também para não se fazer analogia com a excelência das presenças do Seu Emídio –, aqui vou botar, neste causo, só o nome menos de gravata de Homero, evidente que sem o “seu”.

Homero tinha corpanzil de atleta, era alto e de uma moreneza acentuadamente clara. Um tipo que a convenção social costuma chamar de bem-apessoado. Seu perfil psicológico passeava do sujeito gentil-homem e educado ao tipo britânico da realeza.

Não fosse a singularidade dos seus modos de ser bem distintos, provável que a figura marcante de Seu Emídio nem me facultasse esta chance de poder falar, aqui, de outro mascate por dá cá aquela palha.

O vendedor ambulante Homero, além de portar o nome pomposo do maior poeta grego da Grécia Antiga, como já disse supra, também na bagagem levava o dom de exímio descascador de verbos, daí a sua singularidade.

Digo melhor: o cara sabia na ponta da língua tudo que eram verbos do idioma de Camões e os debulhava, conjugando-os, com extrema facilidade. Nunca vi coisa igual, nem da boca dos cobrões do vernáculo do Liceu ou dos acadêmicos por onde, bem mais tarde, eu ira amassar bancos escolares.

Não havia tempo nem modo, ou mesmo qualquer marca de verbo, que o mascate não desembuchasse, ali, em cima da hora. Sabia de tudo, até quando um defectivo apresentava uma barreira e não devia ser conjugado em tal ou qual pessoa do discurso.

Minhas irmãs – que já eram mais escoladas – e eu nos deliciávamos com a metralha de linguagem daquele desbravador de verbos. Meu pai e minha 'mammy' nem davam bolas, só se riam e achavam tudo bonito. Que coisa engraçada e curiosa: nem no mais-que-perfeito o homem enferrujava a saliva. Pareceria ter um gravador de voz na cabeça. Espinafrava verbo por verbo, um a um. Ele era um fenômeno, em declamação verbal, e de pôr o fenômeno do futebol abestalhado.

Até hoje, quando embarco numa página da Literatura Brasileira e vejo o nome do ficcionista Homero Homem, fico a matutar se o meu herói, o descascador de verbos, não é o mesmo escritor norte-rio-grandense, autor de Tempo de Amor, Cabra das Rocas, Menino de Asas e tantos outros romances.

Pode até ser ele, o mundo é pequenino. Diabo é quem duvida. A gente não o põe entre as duas mãos, naquela bolinha do mapa-múndi? E então, ãh, o que você aí me diz?

Veja só como o tal Homero fazia com a língua: “Eu amaria, tu amarias, ele amaria; nós amaríamos...” Lá mais na frente: “Se eu amasse, se tu amasses, se ele amasse...” E eu, ainda menino miúdo, jamais podia imaginar que, também, já em dias temporãos, iria cair na mesma esparrela de ir conjugar o dito verbinho caviloso.

Fort., 07/05/2009.

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(*) Texto a este geminado: "Um mascate letrado" (publicado em 11/05/2010).

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 07/05/2009
Reeditado em 11/05/2010
Código do texto: T1581640
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