O Caso da Saia Voadora
Para o trabalho que gostamos levantamo-nos cedo e fazemo-lo com alegria - William Shakespeare
I
Senhores e – principalmente – gentis Senhoras e formosas Senhoritas: se vocês acreditam que já viram de tudo nesta vida – lamento muito! - mas tenho a lhes informar que se enganaram redondamente!
A história que eu vou contar aconteceu numa das Varas localizadas no fórum de Betim, no terceiro andar do antigo prédio da Justiça do Trabalho.
Se desejarem uma maior especificidade desse autor em relação ao local onde transcorreu a maior parte desses acontecimentos, eu não hesitaria em lhes informar que eles se deram no banheiro feminino de uma daquelas Secretarias e que o presente caso versará nada mais e nada menos do que sobre o misterioso vôo de uma saia pelos céus de Betim. Esta é – inclusive - a primeira vez em que um autor se dará ao alegre trabalho de compor um caso sobre uma saia que literalmente “alçou vôo para a liberdade”.
Entretanto, existe um dado importante que os prezados leitores e leitoras jamais poderão saber: este nada mais é do que o nome da personagem principal ao redor da qual gira todo o enredo e o conteúdo dessa narrativa. Foi essa, aliás, a única recomendação feita pela bela mocinha e que - por Zeus! - não me atreverei de maneira alguma a desrespeitar. Assim, para os fins específicos desse texto literário, batizaremos a nossa heroína com o nome fictício de senhorita Gracinha. Nome este, aliás, que muito faz jus à graça e à beleza da mulher brasileira.
Entretanto, deixemos de lado esse lero-lero e sigamos juntos rumo ao início da nossa história...
II
Gracinha acordou com um humor admirável e muito bem disposta naquela fria manhã de agosto. Após tomar o seu café-da-manhã e se adornar graciosamente com uma boa quantidade de apetrechos coloridos e penduricalhos de metal, saiu para trabalhar sob forte ventania e pesada ameaça de chuva.
Vestia-se com um conjunto novinho em folha composto por blusa e saia bege, tudo em tom sob tom. Completava-lhe o traje um par de botas quase da mesma cor de sua roupa e umas meias que a protegiam do frio e da ventania.
Ainda que se saiba muito bem que os funcionários públicos exercem em seu dia-a-dia uma variedade muito extensa de funções e atividades, a verdade é que a nossa servidora passava os seus dias autuando pilhas e pilhas de processos que lhe pareciam não ter fim. Certamente - imaginou ela - que aquele não haveria de ser um dia muito diferente dos demais.
No entanto, logo que começara a executar as suas tarefas, sentira-se um pouco úmida nas “partes baixas”. Ao observar-se mais atentamente, percebera em sua saia uma pequena mancha vermelha. Ela acabara de ficar menstruada e – para lhes antecipar toda a verdade da coisa – aquilo definitivamente não haveria de ser o pior acontecimento que lhe estava reservado naquele dia.
Gracinha então se encaminhou até o banheiro da Secretaria e – vendo que uma réstia de Sol batia diretamente na janelinha desse cômodo - teve uma idéia. Aliás, uma brilhante idéia: tiraria a saia e lavaria o pedaço do tecido que se manchara de sangue. Depois colocaria a roupa a secar ao Sol que batia na janelinha do banheiro.
E foi exatamente isso o que fez. Durante algum tempo – imaginou ainda – poderia permanecer no banheiro escovando os dentes, penteando os cabelos, retocando o batom e a maquiagem; enfim, deixando simplesmente que o tempo escorresse e que o fraco Sol de agosto realizasse o seu importante trabalho. Certamente que a saia não ficaria completamente seca – calculou a moça – mas no final das contas estaria um pouco menos úmida do que se achava naquele momento.
III
Pois bem. Os segundos passavam e os minutos também, como costumam voar ligeiros esses danadinhos. Acredito que a moça tenha chegado inclusive a “puxar uma palha” enquanto estivera sentada na borda do vaso sanitário.
Então - considerando que se passara tempo suficiente e que as suas colegas já deveriam estar estranhando a sua ausência prolongada - Gracinha levantou-se para retirar a roupa da janela do banheiro e vestir-se. Eis então que neste momento – e apenas neste momento, gentil e amável leitora – Gracinha percebe que a sua saia desaparecera misteriosamente. E veja a senhora e a senhorita que aquele banheiro ficava localizado no terceiro andar daquele edifício. A dita janelinha situava-se no lado norte do referido prédio e sua parede externa dava para um lote vago que se localizava nos fundos, repleto de todo o tipo de capim e recheado por uma grossa camada de folhas que caiam de uma mangueira ali situada e que se acumulavam sobre aquele solo ruim.
“Bem” – calculou a mocinha – “decerto que a minha saia não foi roubada”. Curiosa, subiu na beirada do vaso e – com alguma dificuldade e um principio de desespero – pode ver que a sua bela saia bege fora parar no galho mais elevado daquela mangueira vizinha, achando-se agora a flanar ao vento como a bandeira de um navio pirata impulsionada pelas ventanias vindas de todas as possíveis regiões dos sete mares. Sua saia havia simplesmente sido carregada pelo vento que se apresentava muito forte naquele dia.
IV
A primeira idéia que surgiu na cabeça daquela desesperada servidora foi que deveria abrir uma pequena fresta na porta do banheiro e solicitar a imediata ajuda de suas colegas e amigas. Elas com certeza viriam socorrê-la rapidamente. O problema foi que aquela linda morena se viu apossada naquele momento por uma grande timidez: sua voz mal chegava a soar no recinto. E mesmo quando ela tentava erguê-la num tom mais elevado, fazia-se ainda praticamente inaudível:
- Maria, Maria - dizia ela de um jeito tal que ninguém poderia mesmo escutá-la.
Ou então:
- Beth... Pelo amor de Deus, Beth, vem cá...
E, finalmente:
- Aninha, Aninha... Alguém ai, por favor, vem me ajudar, me acode!
O fato foi que naquele momento um dos colegas da nossa heroína passava próximo ao corredor que dá acesso ao banheiro e ouviu aquele estranho murmúrio vindo lá de dentro. Era ninguém menos do que o tão famoso “Belezinha”, um cara sempre muito brincalhão e gozador. Ele era o tipo do sujeito que podia até perder um amigo, mas que jamais deixaria passar uma piada.
Mas Belezinha ficara um tanto quanto assustado ao ouvir aquele som. Ainda que possuísse aquele lado malandro e engraçado, sentia também muito medo de coisas como “almas de outro mundo, fantasmas do além e assombrações”. O sujeito ficou imóvel durante alguns segundos e dispensou toda a sua atenção àquele possível “chamado do além”. Percebera então que aquele som se parecia com uma voz muito conhecida sua. Mais um ou dois instantes foram então suficientes para que ele finalmente reconhecesse naquele murmúrio esquisito a voz da sua colega Gracinha.
Então criou coragem, aproximou-se da porta do banheiro e perguntou pra ela se estava precisando de alguma coisa.
- Belezinha - respondeu-lhe a menina – me faça a gentileza de chamar a Beth ou a Aninha...
- Mas o que você quer Gracinha? É só me dizer que eu prontamente buscarei para você. É o papel que acabou?
- Não é nada disso, Belezinha. Chama a Beth, pelo amor de Deus... Tem que ser mulher! Tem que ser mulher, entendeu, insistiu a moça desesperada.
Por uma daquelas boas coincidências da vida, nesse momento a própria Beth viera passando pelo corredor quando deu de cara com o Belezinha conversando com a porta do banheiro feminino. Por mais esquisito e doido que o seu amigo pudesse ser – calculou - aquilo de falar com uma porta era estranho demais até pra ele. Ela então perguntou ao colega o que estava acontecendo.
Belezinha lhe contou tudo: que imaginara inicialmente ter ouvido uma “voz do além” a chamá-lo, mas que um segundo depois percebera tratar-se da senhorita Gracinha; e que esta, finalmente, se encontrava naquele momento no banheiro a implorar pela presença de alguma de suas amigas.
Enquanto isso – ouvindo próxima de si a voz da colega - Gracinha imediatamente abriu um pouco mais o pequeno vão na porta do banheiro e confidenciou-lhes o que ocorrera. Ambos ficaram sabendo de toda a história, da menstruação, da mancha de sangue, da idéia de lavar a roupa e, finalmente, do vôo inusitado da saia da morena pelos céus de Betim impulsionada pela famosa ventania do mês de agosto.
Querida leitora: com certeza você consegue imaginar a terrível situação em que se vira envolvida a nossa heroína. Mas vede que existem pessoas que conseguem rir até mesmo das tragédias alheias! Ao saber do motivo que retinha a sua colega no banheiro da Secretaria, Belezinha desabara no chão e permanecera ali pelo menos por uns cinco minutos rolando de rir.
V
Gente: boato, epidemia e noticia ruim correm e se espalham que é uma beleza, não é?! Ainda não havia passado quinze minutos desde que a menina se trancafiara no banheiro e parecia que todo aquele terceiro andar do edifício já ficara sabendo da saia voadora e da difícil situação da nossa jovem.
Na Secretaria, as amigas da Gracinha puseram-se de imediato a imaginar uma maneira de poderem ajudar a companheira a sair daquela encrenca. A Beth, por exemplo, sugerira a idéia de que alguém poderia emprestar um casaco ou blusa de frio para a colega. Ela prenderia a roupa em volta da cintura como os adolescentes costumam fazer na saída das escolas. Pelo menos assim conseguiria ir até a sua casa para trocar-se.
Essa idéia, entretanto, foi logo descartada pela própria Gracinha:
- Pessoal, vê se eu vou sair daqui com uma blusa de frio amarrada na cintura! E ainda mais usando essas botas de cano longo!
Outra idéia – e esta era um tanto mais interessante que a anterior – fora a de que alguém poderia descer até a rua principal, num ponto não muito distante onde se localizavam as lojas de comércio da região, e comprar um moletom ou uma calça jeans para a Gracinha.
Mas para lhes dizer a verdade completa, a menina também não ajudava muito na solução do problema. Descartara igualmente essas outras possibilidades e continuava amoitada no banheiro feminino. Quanto ao moletom – dissera ela - não estava necessitando de um naquele momento; e em relação ao jeans, ela achava complicado comprar uma calça sem que lhe fosse dado verificar se a mesma caíra bem em seu lindo corpinho.
Prezados leitores, as coisas são de fato assim mesmas: apesar de muito aflita com aquela situação, Gracinha era também bastante exigente e melindrosa acerca das suas próprias vestes e de sua aparência.
Eis, porém, que nesse ponto da nossa narrativa surgem dois novos personagens para abrilhantar o seu conteúdo: o diretor da Secretaria e o senhor juiz. Ambos se dirigem a passos lentos, mas constantes até a porta do banheiro onde se acoitara a infeliz criatura.
Haviam ficado sabendo do acontecido e fizeram absoluta questão de vir prestar as suas “solidariedades” à menina. Aproveitariam para dar uma espiadela e uma conferida no desenrolar de toda aquela periclitante situação. O próprio diretor da Secretaria – que no aspecto da gozação era tão terrível quanto o nosso Belezinha - não perderia por nada desse mundo uma oportunidade como aquela para rir e se divertir à custa da mocinha. Ele já não estava mesmo se agüentando de tanta vontade de rir!
Mas o que fez com que ele afinal arrebentasse de fato numa grande e irônica gargalhada fora um pensamento que tivera e as palavras que acabara pronunciando quando se achava diante do único olho visível da menina entrevisto através da fresta na porta do banheiro, como se um ciclope ela fosse:
- Então, Gracinha, a sua saia já voltou do passeio? Ou você ainda continua peladinha ai dentro?
E o homem desandou a rir sem piedade alguma.
Minhas senhoras e senhores: nessa altura já não era apenas o terceiro andar do edifício que ficara sabendo da tragédia alada que se abatera sobre a pobre menina. O assunto já se espalhara até mesmo aos outros andares do prédio e muitas das pessoas – advogados, reclamantes, reclamados, etc. - que se encontravam aguardando as audiências nos extensos corredores do edifício não falavam de outra coisa.
Alguns chegaram a formar grupos de discussão e se puseram a comentar o que poderia ser feito para tirar a menina daquela terrível enrascada. Outros - que não haviam compreendido correta e completamente o conteúdo e o teor daquela história - principiavam a fazer confidências e conjecturas num tom mais baixo e às bocas pequenas: talvez a mocinha tivesse sofrido uma tentativa de estupro ou algo assim e se escondera de seu malfeitor no banheiro daquela Secretaria...
Como podem perceber, estava ocorrendo naquela situação exatamente o que costumamos designar sob o prisma de um velho ditado popular: “quem conta um conto aumenta um ponto”.
Mas acredito que a situação da mocinha estava mesmo para mudar em breve. E para melhor!
É como diz aquele meio-ditado popular: “tudo na vida é passageiro, exceto o motorista e o trocador”. Se o problema da menina parecia estar se alongando indefinidamente no tempo e no espaço, devo comentar que a solução já se achava a caminho e vinha a passos largos.
VI
Eis que do nada surge dona Santuza, a responsável pela limpeza e conservação daquele andar do edifício. Anunciara ela - como um São João Batista pregando aos judeus acerca da vinda iminente do Messias - que o caso já estava praticamente resolvido.
- Praticamente resolvido, insistiu ela. Um dos faxineiros do nosso prédio vestira-se de coragem e – realizando quase um salto triplo como o de João do Pulo no Pan-Americano do México em 1975 – lançara-se incólume no interior daquele lote vago.
Ele levara consigo uma comprida vara de metal e se pusera a escarafunchar nas alturas e entre as folhagens da mangueira a saia voadora da mocinha, até que a mesma se soltou da forquilha que a prendia e caiu lentamente nas mãos do homem como um troféu alado. Aquele fora o último vôo da saia da menina.
Ao finalizar o presente caso, devo informá-los que daí a pouco a saia chegou de fato às mãos da sua bela proprietária, voltando a enfeitar e a abrilhantar o seu gracioso corpo moreno. É certo que a saia retornara um pouco suja e recheada de gravetos e carrapichos, mas cumpria ainda o seu papel de proteger e ornamentar aquela vaidosa servidora.
Por fim, devo esclarecer que durante todo o resto daquele expediente - e mesmo nos muitos e muitos dias que se seguiram ao terrível evento - a nossa Gracinha permaneceria sempre com o rosto enrubescido e muito baixo quando acaso se encontrava com alguém nos corredores ou na portaria do edifício. Nesses momentos ela mantinha os olhos fixos no chão e pedia a Deus com todas as suas forças que ninguém sequer se apercebesse ali da sua simples presença...