O PEÃO IRINEU

O Irineu, era um peão dos bons, cabra macho, cujo trabalho se resumia em receber animais chucros para serem domados na base da espora e do chicote, isso sem contar com a valentia , qualidade que lhe sobrava.

No entanto, a coragem que reinava nos lombos de burros bravos, se ausentava quando se tratava de contrariar a esposa, D. Paricida, filha de Totonho da Bica, que como um bom e generoso sogro, já lhe havia aconselhado tomar todos os cuidados num possível enfrentamento, visto que as mulheres da família, incluindo sua sogra, não eram, definitivamente, fáceis de serem domadas, como as mulas por ele montadas.

Assim sendo, o Irineu, com paciência e cautela, ia levando a vida, riscando espora de dia, e conversando baixinho, bem de mansinho, à noite.

Esta vidinha afastava toda e qualquer hipótese de participação do nosso intrépido peão nas reuniões de fins de semana na vendinha do Tunico de Lia, onde os homens das redondezas se encontravam religiosamente, para prosear, “jogar pinga na goela” e ainda ouvir uma sanfona com viola, coisa prá lá de animada.

Numa tarde, acocorado em frente à casa, pitando um cigarrinho de palha, ele teve uma idéia que lhe pareceu ser muito boa, com a qual conseguiría enrolar D. Paricida, e de quebra, participar da próxima reunião da turma, que se realizaria no sábado, do próximo fim de semana; Ele diria que precisava ir ao povoado, pros lados da Lagoa Seca, afim de comprar umas tralhas para uso nos seus arreios de trabalho, e como isso levaria muito tempo entre as viagens de ida e volta, chegaria muito tarde, pela madrugada, dispensando D. Paricida de aguardá-lo.

A história funcionou maravilhosamente, a tranquila esposa confiava no cabra, não tinha nenhum motivo para duvidar dos propósitos de um marido tão comportado como aquele, conhecia-o muito bem, após tantos anos de casamento, sem nenhuma rusga conjugal importante.

No sábado bem cedo o Irineu preparou sua mula, despediu-se da mulher, puxou o chapéu na testa, e lá se foi rumo à liberdade, coração batendo forte, ansioso como um moleque prestes a executar o proibido, rasgando o pó da estrada, fazendo mil e um planos de como se divertiria após tanto tempo em absoluto recolhimento.

Ao chegar na vendinha a confusão já tinha começado, estavam lá o “Mané Oito Baixos” , sua sanfona, cujo furo no fole resultava em som quando se abria, e sopro quando se fechava , acompanhado pelo “Linalvo de D. Ciça” e sua viola, com tres pares de cordas sobreviventes, totalmente desafinadas, impossibilitando se tocar qualquer melodia, o que ninguém percebia, valia mais o barulho, era isso o que realmente importava.

Na percussão o “Bastião Piá” surrava impiedosamente o que restava de um tambor, couro murcho, usando dois pedaços de cabo de vassoura a lhe servirem de baquetas.

A trilha musical resultava em algo parecido com : “Fom Fúúú, Fon Fúúú” na sanfoninha, enquanto a violinha sustentava um “Berém Bém, Berém Bém”... atropelados pelo “Tchuc, Tchuc” do tambor, tudo sem o menor sentido, mas que a turma, no calor dos “embalos de sábado”, aproveitava com toda animação e gosto.

À tardinha, beirando o escurecer da noite, D.Paricida resolveu dar uma chegada até a vendinha para comprar umas quitandas, afim de melhorar a janta que prepararia para o Irineu, maridão , que chegaria muito tarde cansado, e certamente,com muita fome.

Diante da porta do comércio deparou, incrédula e assustada, com o Irineu, chapéu cobrindo os olhos, executando movimentos que ele achava serem de dança, contorcendo-se como minhoca em areia quente, amparando-se em tudo e todos, menos nas próprias pernas...ao som de “Fom Fúúú, Fom Fúúú, Berém Bém, Berém Bém, já sem apoio do tambor...o pobre couro e o vigoroso “Bastião” não haviam resistido ao esforço do espancamento brutal, jaziam ambos, esparramados, em um dos cantos do pequeno empório.

Surpresa e furiosa, D. Paricida, mãos nas cadeiras, indagou ao cambaleante dançarino:

-Voce não disse que chegaria tarde!?

O Irineu, piscando apertado ambos os olhos afim de enxergar melhor, levantou a aba do chapéu amarrotado, tateou com braços vacilantes à procura do balcão para se apoiar, pigarreou e disparou:

- Pois então, no que bateu a saudade eu voltei mais cedo, só prá lhe fazer uma surpresa, minha nêga!!!

Naquela noite, a mula do Irineu, a passos lentos, regressou só, com arreio torto e folgado, sem o cavaleiro.

Nos tres dias que se seguiram o peão não trabalhou, sumiu, provavelmente envergonhado pelos inchaços no rosto, olhos arroxeados e o corpo de quem levara uma chifrada de guzerá de tonelada.

E pior, pesadelos assombravam-lhe as noites mal dormidas, martelando-lhe a cabeça dolorida com um som infernal:

“Fom Fúúú, Fom Fúúú, Berém Bém, Berém Bém”...

Um grande abraço à todos, e até a próxima,

Obs: Quaisquer semelhanças com nomes, pessoas, ou fatos reais, terão sido meras coincidências.