O filho do coração
Conta minha mãe que há alguns anos, quando estava em uma fila de banco um senhor idoso, ao encontrar-se com um amigo dele e perguntado se estava ali para receber sua aposentadoria disse que não. Estava para receber a ajuda de um filho adotivo seu prestada mensalmente há vários anos, diferentemente dos demais (biológicos), todos em boas condições econômicas, passando a narrar a situação que minha mãe e, certamente outras pessoas que ali estavam, ouviram-na com atenção.
Vale a pena recontar o caso, apesar das previsíveis alterações, já que “quem conta um conto aumenta um ponto”, mas que no final, não altera a sua essência.
E para facilitar a compreensão da narrativa irei dar nomes fictícios aos atores desta lição de vida.
José já estava aposentado, com seu primeiro filho formado e os mais jovens terminando a universidade, quando sua mulher Maria, também aposentada, juntamente com amigas passou a se ocupar em prestar ajuda aos internos de um orfanato da capital paraense, tendo algumas delas decidido escolher entre os órfãos seus “afilhados”, pelos quais se incumbiriam, mesmo à distância, em disponibilizar maiores cuidados quando estes assim estivessem necessitando.
Certo dia Maria disse a José que estaria trazendo, para passar uns dias em casa, um de seus “afilhados” que apresentava um quadro grave de desnutrição e que se não fosse tratado com maior carinho e cuidado talvez não resistisse.
José que era tolerante e amava sua querida esposa, não se opôs a essa iniciativa, apesar de achar intimamente que era precipitação aquele idéia da mulher e quem sabe uma sarna para se coçar, como diz o ditado.
No dia seguinte José deparou-se com um menino depauperado, com as costelas saltando da pele e os olhos grandes e tristes suscitando piedade.
Ele teve vontade de mandar fazer retornar imediatamente aquela criatura que aparentava idade menor a que realmente tinha, mas, para não magoar sua amada, apenas torceu o nariz e os beiços, não fazendo o menor esforço em demonstrar sua desaprovação.
Mas a mulher, de forma meiga e doce, disse que aquela situação era questão de dias, até que o afilhado melhorasse suas condições de saúde, quando então retornaria ao orfanato.
Passaram-se dias, semanas, e José até já se acostumara a situação, quando Maria disse ao amado que estava tendente a adotar aquela criança que não conhecera os pais, pedindo ao marido sua tolerância e aprovação, dizendo que já sondara o juiz de Menores (hodiernamente da Infância e juventude) e não teria problema de adoção, o que acabou ocorrendo, apesar de José lá no fundo do fundão achar que aquilo não era uma boa idéia. Bem, mas não seria ele quem iria se envolver na criação do menino.
Aquele ano terminou e no início do seguinte, o pequeno Cristiano já usando o nome de família de José e Maria e já em melhores condições de saúde e nutrição foi matriculado em uma escola pública às proximidades.
O pequeno Cristiano, por instinto de sobrevivência não deu trabalho, não repetindo nenhum ano escolar até o último ano do colegial. E, ao concluir o ensino médio, foi aprovado na seleção da Escola de Oficiais da Marinha Mercante.
Nos dias que antecederam a formatura de Cristiano como piloto marítimo, Maria em conversa com José disse que aquele filho deles o escolhera como seu paraninfo, pois era seu desejo homenagear o pai, o homem que o acolhera em sua casa e lhe dera o nome na adoção.
José disse a Maria, como ele disse na fila do banco, para quantos o ouviam, que apesar de ter dado o nome, nunca se apegara aquele menino, nunca lhe fizera um afago e então não se sentia à vontade para aquela homenagem, mas Maria ponderou que o menino gostava muito dele e fizera questão de escolhê-lo e pedira a sua mãe do coração que sondasse aquele que conhecia como pai para estar a seu lado naquele momento solene e importante de sua vida profissional.
José acabou concordando e no dia da formatura lá estava ele sem graça ao lado de seu filho adotivo, se emocionando na cerimônia, principalmente ao abraçar Cristiano quando este foi declarado oficial de Náutica, sentido um pouco de remorso em ter sido tão frio durante aqueles anos, mas o menino, que se tornara homem, o compreendia e o aceitava daquele jeito.
Houve uma rápida festa em família e dias depois, Cristiano contratado por uma grande empresa de navegação fez sua primeira viagem e meses depois estava singrando os oceanos em escalas ao exterior.
José anos antes havia hipotecado sua casa, na esperança de resgatá-la posteriormente, confiando em seus filhos naturais, todos em condições econômicas razoáveis. E um dia foi chamado à instituição financeira com a qual se endividara, quando então foi notificado a quitar o débito dentro de um certo prazo ou teria sua casa de morada, levada a leilão.
Diante de tal dilema, José convidou seus filhos para um almoço dominical e ao final, expôs o seu problema, pedindo a eles a ajuda necessária para o pagamento da dívida e evitar que a casa onde todos cresceram fosse parar em mãos estranhas, obrigando seu pais a morar no interior ou viverem em casa alugada na cidade.
O filho mais velho, que era engenheiro, disse que naquele momento não havia condições de ajudar seu pai, pois, havia utilizado todo o dinheiro de sua poupança para a realização da festa de 15 anos de sua filha caçula, prestes a ocorrer.
Uma outra que era odontóloga disse que também que não podia ajudar seu pai porque se endividara na compra de novos equipamentos para seu consultório.
O outro que era médico disse que viajaria dias depois para fazer residência médica em outro país e que todo o dinheiro que dispunha utilizara naquele empreendimento.
Um deles disse ao pai que alugasse uma casa que eles ajudariam no aluguel.
José sorriu amarelo, enquanto seus filhos se despediam, deixando-o sem graça à mesa com sua mulher, endividado, frustrado, decepcionado, prestes a se dispor de seu patrimônio fruto de anos de trabalho.
Estando o casal a sós, Maria sugeriu a seu marido que buscasse a ajuda de Cristiano, tendo José imediatamente rechaçado a idéia. Primeiro, não sabia onde o ex-menino raquítico estava desde a sua partida. Segundo, que não se via em condições emocionais e morais para pedir ajuda a uma pessoa que apesar de ser pai adotivo, sempre o tratara como um estranho.
A mulher então disse que sabia onde encontrar seu filho, através da empresa onde trabalhava e que nunca deixara de manter contato com este. E que sempre, em suas cartas e telefonemas, fazia menções carinhosas a seu pai José, e que regularmente enviava ajuda a sua mãe que vinha depositando em uma caderneta de poupança. E tinha certeza de que se José o procurasse, seria atendido.
José, como disse na fila do banco, diante da enrascada, engolindo o orgulho, e acatando as recomendações de sua amada mulher resolveu escrever uma carta a seu filho adotivo, se desculpando e falando de seu problema.
Se durante aqueles anos não fora mais afetuoso era porque seu jeito era aquele, e que o perdoasse de sua frieza. E que agora estava precisando de sua ajuda para evitar que sua casa de morada fosse a leilão.
Uma semana depois José recebeu um telegrama de Cristiano mais ou menos nestes termos: “Meu querido pai, estou muito feliz em poder retribuir o muito que o senhor fez por mim. Aguarde meu telefonema que farei quando chegar ao próximo porto. Te amo muito meu pai”.
Dias depois, os dois se falariam ao telefone, tendo Cristiano depositado o valor necessário para a quitação do débito de seu pai, passando, a partir de então, a enviar mensalmente uma mesada, o que já fazia mais de cinco anos.
E ele, José, estava ali para descontar o valor depositado mensalmente por Cristiano que tinha se revelado como o filho mais grato, enquanto os demais continuavam a visitá-lo aos domingos para empanturrar-se com a comida patrocinada pelo filho do coração.