O GATO

A verdadeira história de Raquel três peitos.

O velho Severiano Ferreira, um negro já cansado da vida, com seus quase setenta anos de idade maus passados na existência, nem sonhava que a vida lhe reservara uma última decepção antes de deixar esse mundo.

Nasceu em berço remediado. Seus pais não eram ricos, mas tinha uma pequena propriedade lá pras bandas do Toque, lugarejo pertencente ao município de São Miguel dos Milagres no litoral norte de Alagoas, onde com muito sacrifício tiravam o sustento da família, família esta que por sinal era bem graúda. Tinha Rosa a mais velha, que Deus estava naquele de leva mais não leva por conta de uns problemas no coração. Severiano, o nosso protagonista, e mais azarado de todos. Carminha a mais manhosa que se derretia em dengos pro lado das visitas. João Severino, o mais inteligente, que conseguiu se formar na quarta série primária e se achava o senhor da sabedoria. Otacílio era o mais independente, vivia pelo mundo à fora e quase não dava notícia. Alfredo que possuía uma jangada era o mais abastado de todos. Todo dinheirinho que ganhava com a venda dos peixes, guardava sempre um pouquinho escondido em baixo do colchão. Tinha também a Rosália, uma morena formosa que se perdeu na vida ainda com dose anos. Severina, uma beata que só saía de casa pra igreja e vice versa. E por fim tinha o Cícero, doente do juízo e que o povo dizia virar bicho em noites de lua cheia.

Ao completar quinze anos, o pai Seu Samuel Cipriano, faleceu de um passamento repentino deixando toda a família entristecida e atolada em dividas.

A desgraça não marcou hora nem dia pra entrar na vida daqueles pobres coitados. Um mês e dezoito dia depois do enterro do pai, o que sobrou do sítio foi só a casa velha carecendo de muitos consertos. O resto foi tudo vendido pra pagar aos credores. Não demorou muito pra família se despedaçar e cada um procurar um rumo na vida, indo trabalhar ou morar de favores em terras estranhas. Na velha casa, só ficaram a mãe dona Josefa, que não trabalhava devido a idade avançada, já abeiçando os setenta, Severina a rata de sacristia e Severiano o mais teimoso e desprovido de sorte que com muito sofrimento e trabalho duro estava dando conta de arranjar o sustento da miserenta, e agora miúda família, que a cada dia comia e bebia menos.

As coisas do coração são difíceis de explicar e o amor conquista espaços onde nem o diabo gostaria de entrar. Foi assim que Severiano se apaixonou por Raquel “três peitos”, dona de um pequeno bordel na beira da ponte do rio Tatuamunha.

Naquele mísero estabelecimento de orgias moravam duas outras prostitutas sem muito valor sexual; Terezinha, uma gorda baixinha que mancava de uma das pernas e Procópia, uma galega cega do olho esquerdo devido a uma sífilis mal curada.

Raquel conquistou o coração de Severiano desde a primeira noite em que fizeram sexo por cinco horas e doze minutos debaixo dos coqueiros, nos fundos do cabaré. Ele gostou tanto do que viu, cheirou, lambeu e comeu, que achou pouco e marcou casamento pra daí a uma semana sem mais demora. A mãe do então apaixonado quase parte dessa pra melhor, quando soube da notícia do matrimônio do filho com aquela mulher do mundo. Como não teve jeito de fazê-lo mudar de ideia, lhe jogou um meio rosário de pragas, que o acompanhou pro resto da vida.

Na noite chuvosa do seu casamento, ele ia todo entusiasmado pra pequena capela. Seguia pela calçada andando todo apertado dentro de um paletó branco, emprestado por seu amigo e padrinho de casório, Augusto coveiro. De repente um carro passou apressado pela rua onde havia uma enorme poça de lama e lhe deu um banho de cima a baixo deixando o noivo todo melado daquela água barrenta.

Já sentindo o peso das pragas da mãe, ficou enraivecido, mas não tinha outra roupa pra vestir, sendo assim decidiu entrar na casa santa do jeito que estava e consumar o casamento com Raquel, o grande amor de sua vida.

O coitado não sabia, mas aquela era só uma das tantas pragas que teria que conviver. Mais à frente em seu caminho havia acontecido uma briga entre dois bêbados e um deles foi esfaqueado. A polícia ia chegando ao local exatamente quando ele ia passando, e concluiu que Severiano que estava todo sujo tinha participado da confusão., não deu outra e levaram o infeliz preso. Ele jurou por tudo quanto era santo não ter nada a ver com o ocorrido, mas o delegado só o soltou pela manhã depois de apurar os fatos, que durou praticamente toda a noite.

Quando saiu da cadeia foi correndo atrás de Raquel, mas ela não quis nem vê-lo. Estava mais brava que cobra de resguardo pelo fato dele tê-la deixado mofando sozinha aos pés do altar diante dos convidados, que eram pra mais de cinquenta, todos frequentadores da sua cafua.

Revoltado, cansado e choramingando, resolveu voltar pra casa e dormir. No caminho deu de cara com uma procissão que passava com mais de duzentas pessoas cantando e louvando Santo Antônio, pois era mês de junho, e naquele dia se prestava homenagem ao santo casamenteiro. Naquele momento deu-lhe uma vontade danada de se vingar do santo e de Deus também. Apanhou a primeira pedra que viu pela frente e jogou em direção à multidão. Em seguida saiu correndo pra casa sem nem querer saber do resultado.

Deitou-se e dormiu um sono pesado. Ao meio dia acordou com o choro desesperado da irmã. Perguntou-lhe o motivo de tanta desolação e ela lhe contou que sua mãe acabara de falecer por causa de uma pedrada. Um doido que ninguém viu, jogou a pedra no meio da procissão onde ela e a mãe estavam e acertou justamente na cabeça da velha.

Cheio de remorso e sem poder contar pra ninguém que ele era o culpado, Severiano enterrou a mãe no quintal da casa e sumiu no oco do mundo fugindo dos seus pecados.

Cachorro morto ninguém chuta, pois não há futuro nisso. A vida do pobre Severiano passou a ser pior que isto. Depois de passar muita fome perambulando pelas estradas durante quase dois anos finalmente chegou a São Paulo, mas não encontrou o irmão que morava por lá desde a morte do pai. Sem dinheiro e sem ninguém conhecido acabou indo morar na rua mesmo. ]

A pequena trouxa de roupa que ainda possuía foi roubada na primeira noite. A única coisa que sobrou foram os documentos que estavam guardados no bolso da calça. Passou ainda mais fome e pra esquentar o frio das madrugadas passou a beber cachaça ou álcool.

O pouco dinheiro que conseguia arrumar pedindo esmolas pelas praças e ruas só dava pra esse propósito e mais nada. Andava sujo pelos becos revirando latas de lixo feito gato vagabundo.

Certa noite um bando de moradores de rua estava sendo perseguido pela polícia. Ele não tinha nada a ver com o caso, mas sabia que se ficasse parado ia entrar no cacete de todo jeito. Correu por horas sem parar até que achou um muro não muito alto e pulou pro lado de dentro a fim de se esconder. Ficou por ali ouvindo a gritaria do lado de fora até que não agüentou o cansaço e adormeceu deitado em cima de um gramado fofinho e aconchegante. Na manhã seguinte quando acordou viu uma espécie de guarda lhe cutucando com um cassetete e perguntando o que ele fazia ali no cemitério. Severiano lhe contou não só o ocorrido durante a noite passada, mas também o que estava passando na vida desde que colocou os pés naquela cidade de doidos.

O vigia Seu Everaldo teve pena dele. Deu-lhe uma muda de roupa, deixou que tomasse um banho no alojamento dos funcionários e lhe deu de comer. Toda noite ele vinha pro cemitério e ficava até altas horas a conversar com o amigo e quando precisava, ele ajudava os funcionários a limpar as capelas e organizar os velórios. Com o tempo foi juntando uns trocados que recebia dos familiares enlutados, por sua presteza naquelas horas difíceis, e comprou uma caixa pra engraxar sapatos, seguindo o conselho do amigo Everaldo.

Nessa luta, de engraxar sapatos durante o dia e passar a noite entre os mortos, viveu por alguns anos até arrumar uma vaga de lavador de pratos, por intermédio dos familiares de um morto, que antes de passar dessa pra melhor, era dono de um restaurante no bairro do Bexiga. Com o tempo passou pra garçom, mas o chefe o pegou trabalhando embriagado e o demitiu. Depois disso o mundo entortou de vez pro lado dele e não teve mais profissão certa. O que aparecia ele enfrentava. Foi auxiliar de mecânico, e porteiro. Padeiro, eletricista, pedreiro e diarista. Flanelinha, sapateiro, coroinha e ajudante de macumbeiro. Foi borracheiro, leão-de-chácara, gigolô e motorista. Foram pra mais de trinta empregos, mas sempre demitido por justa causa devido seu estado constante de embriaguês.

Passados mais de quarenta anos ele ainda vivia mendigando pelas ruas e se envolvendo com todo tipo de gente e aguardente que conseguia encontrar.

Os urubus se divertem nos lixões das cidades e Severiano, como eles, tirava seu ganha-pão no aterro sanitário da velha Sampa. Além dos retos de comida ele também juntava sobras de metais como alumínio e cobre e depois os vendia. O pouco dinheiro recebido com as vendas ajudava a manter o vício que a cada dia carregava um pedaço de sua saúde.

Certo dia, vasculhando um monte de papéis achou um cheque de uma quantia razoável. Procurou o velho amigo Everaldo que já estava aposentado fazia alguns anos, e através dele conseguiu descontar o referido documento e botar a mão no dinheiro.

Everaldo lhe deu um conselho. Pegue esta grana e volte pra sua terra natal. Tente viver o resto de seus dias junto com seus parentes se é que ainda restava algum vivo.

Na rodoviária ele comprou uma passagem pra Maceió, tomou um banho e vestiu roupas novas que comprou ali mesmo nas lojinhas do terminal. Enquanto esperava a hora do embarque, tomou um porre com o resto do dinheiro que lhe sobrou, comemorando sua volta à velha e querida Alagoas.

Depois de três dias de viagem, chegou à Maceió em plena segunda-feira. A cidade estava quase a mesma pouca coisa havia mudado. Só o calçamento de algumas ruas tinham sido trocados por uma camada negra de asfalto.

O odor da maresia no ar lembrava o mesmo cheiro da cidade em que nascera no litoral norte do Estado. No ônibus em que veio, conheceu um sujeito que vinha visitar a família e o vendo sem lugar pra ficar, o levou pra sua casa no bairro de Jaraguá. Deixou que ele ficasse por uma semana até dar um rumo na vida.

Em um sábado a noite estava bebendo na casa de Socorro, uma velha prostituta aposentada, que morava numa vila de casinhas emparelhadas, chamada Sovaco da Ovelha, no bairro do Poço. Lá, conheceu Juventino, um capataz da antiga usina Alegria. Beberam por horas e conversaram sobre o destino de cada um. Ao final da farra, com pena daquele farrapo humano o capataz convidou-o pra trabalhar como cortador de cana na fazenda de seu patrão.

No Domingo, por volta de uma hora da tarde, sem saber, Severiano partiu junto com o capataz para o seu último pedaço de calvário.

O tempo destrói os metais e os minerais assim como comeu seus dentes, sua juventude e suas forças. Já não tinha mais agilidade para o trabalho pesado mesmo assim ele seguiu seu destino feito um burro de carga, cortando e carregando os feixes de cana nas costas. Passou várias semanas nessa jornada de escravo pra pagar a comida e a dormida no barracão da usina.

O trabalho enobrece o homem e em contra partida, enriquece o patrão do mesmo. Depois da luta diária o velho Severiano voltava pro barracão só o pó. Já havia se passado quase dois meses e ele estava a seco feito açude sertanejo em época de verão.

Sem nenhuma gota de álcool no sangue, o coitado estava em estado de loucura. Andava babando pra tomar uma dosezinha que fosse, mas o cansaço era tanto que quando entrava no barracão se jogava na cama e adormecia a velha carcaça em cima do colchão de palha. As únicas alegrias que tinha eram os sonhos em que ele sempre se via embriagado. Uma noite, sonhou matando um sujeito que lhe tomou a garrafa das mãos no momento exato em que ele ia começar a beber. Quando acordou ainda sentia na garganta o gosto adocicado e ardente da danada da bebida. Precisava acabar com aquele sofrimento sem fim e prometeu a si mesmo que dessa semana não passaria.

Às cinco e meia da tarde do sábado, juntou o resto das forças que ainda havia entre o couro e os ossos e se mandou pra venda da usina a fim de encher a caveira de álcool. Quando entrou teve a má notícia. Lá era proibida a venda de qualquer tipo de bebida alcoólica por ordens extremas do patrão. O velho Severiano não se conteve e começou a chorar feito cachorro novo.

Juventino ia chegando, e vendo o amigo naquela situação resolveu ajudá-lo. Disse que se ele tivesse força e coragem poderia ir até o povoado vizinho que ficava a dezesseis quilômetros da usina e lá ele encontraria a venda de Seu Batista judeu onde, com toda certeza, iria achar o que tanto procurava. A vontade era muita, mas aquela hora o corpo não agüentaria tal empreitada e resolveu deixar para o dia seguinte.

Às quatro da manhã antes de Figueiredo, o galo da fazenda, cantar, Severiano pôs os pés na estrada rumo à felicidade. Como sempre não contava com a sorte. Durante a jornada foi mordido por dois cachorros, teve a pele toda cortada com os pelos das folhas das canas verdes e foi picado por uma surucucu que estava escondida numa moita de capim. Quase se afoga na travessia do Riacho das Mulas e sofreu uma chuva de ferroadas que as abelhas lhe deram quando passava por baixo de uma velha mangueira carcomida pelo tempo e pelos cupins.

Ao meio dia, finalmente chegou ao povoado. Subiu os dois degraus da venda vagarosamente como quem entra na fila do céu. Andou até o balcão e ficou parado por alguns instantes tomando fôlego e coçando as queimaduras que as folhas de urtiga tinham largado em seu couro de bode velho acabado no decorrer de tantas lutas.

Com voz ainda cansada chamou por seu Batista e pediu pra ele trazer aguardente pra mais de dois. Queria beber até virar o cabelo de banda e desafiar o Satanás a lhe levar daquela vida de condenado que ele vivia desde o dia do seu mal fadado matrimônio.

O vendeiro pegou uma garrafa com um pouco de cachaça dentro, que deu pra encher um copo grande, e lhe entregou. Severiano disse a Batista que gostaria de algum tira gosto pra acompanhar a bebedeira que seria das grandes. O velho o deixou sozinho e foi pra dentro da venda providenciar um prato de guisado de bode que estava fervendo e espalhando o cheiro pelo meio do mundo.

Nesse momento passou pela porta do estabelecimento um indivíduo que aparentava um alto grau de embriagues. Com certa dificuldade, o sujeito parou e lhe deu um bom dia.

- Bom dia! Respondeu Severiano, segurando na mão tremula o copo cheio de aguardente.

Todo bom bebedor sabe que beber sozinho é o mesmo que beijar sogra na boca, não tem graça nenhuma. Sem contar conversa, ofereceu um gole àquele camarada que parecia uma boa companhia pra um papo animado.

- Aceito sim, disse o bêbado, já tomando o copo de sua mão e bebendo o conteúdo num gole só.

Depois de beber, agradeceu a gentileza do velho Severiano e saiu tropeçando na própria sombra. Disse-lhe que não podia ficar proseando com ele por que sua mulher o esperava em casa com a filha doente e precisava providenciar ajuda.

Batista voltou lá de dentro com um prato de guisado e colocou-o em cima do balcão.

- porque não esperou pelo tira gosto antes de tomar a cachaça? Perguntou o dono da venda.

- Dei a um companheiro que passou aqui pela porta com uma sede maior que a minha, respondeu Severiano.

- Bote outra dose mais caprichada que aquela, pois agora vou lhe mostrar como se bebe isso, continuou ele.

O vendeiro baixou a cabeça em sinal de tristeza e respondeu:

- infelizmente aquela era a única aguardente que eu tinha aqui na venda. Só vou receber outro carregamento quando Zefinha, a jumenta de Seu Alonso, descansar do trabalho de parto. Ela teve filhote na noite passada e só vai poder ir até a cidade mais próxima pra trazer um novo carregamento a semana que vem.

Ao ouvir essa notícia Severiano foi ficando vermelho. Sentiu o sangue lhe subir a cabeça e o suor a escorrer pela testa como uma cachoeira. A respiração foi ficando mais difícil e teve um acesso súbito de raiva. Deu quatro chutes no pé do balcão e oito socos na parede da venda. Cuspiu dentro do prato de bode e de quebra ainda chamou o dono da venda de filho de uma rapariga de cego.

Sem contar história pegou uma faca grande de cortar charque que estava em cima do balcão e saiu apressado pra matar o bêbado que havia tomado seu copo de cana de uma golada só. A raiva o deixou cego e ele nem viu o gato que dormia tranquilo junto da porta, mas se assustou com seu berreiro e também saiu correndo do lugar onde estava pra não ser atingido por sua ira.

O destino é mesmo de lascar. O velho Severiano tropeçou no gato e caiu escada a baixo com a faca espetada na barriga. Ficou deitado sangrando enquanto juntou uma pequena multidão de curiosos. Aos berros Severiano foi dizendo suas ultimas palavras:

- Deus por que me fizeste tão feio, tão pobre e tão azarado?

- Por que tive que pagar um preço tão alto pelo desprezo de Raquel Três Peitos, se na verdade ela só tinha dois e o outro era só um grande furúnculo no meio deles?

- Responde Deus por que foste tão ingrato comigo? Foram suas últimas palavras. A respiração foi enfraquecendo e alguns minutos depois só restou um corpo sem vida estendido no meio da rua.

Gato é um bicho tinhoso. Esse ficou com fama de assassino depois que contribuiu com a morte do velho Severiano. Por azar, o felino não demorou muito pra se juntar a ele no vale dos mortos. Foi atropelado por um carro-de-boi, conduzido por Sinval Leiteiro, um vaqueiro cego do olho esquerdo e míope do direito.

Herivaldo Ataíde
Enviado por Herivaldo Ataíde em 30/04/2009
Reeditado em 28/11/2023
Código do texto: T1567497
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