A morte da pitomba.

A MORTE DA PITOMBA

Manhã de junho, Givanildo Couto, um conhecido repórter, foi anunciado pela secretária do Prefeito, Zildinha da Zilda, ao deputado Tutinho, que, de antemão, havia-lhe concedido uma entrevista. Era ele um repórter respeitado, pelo falar sério e responsável, tal qual, Didi, Bronco, Pantaleão, personagens de Renato Aragão, Ronald Golias e Chico Anísio, respectivamente.

Givanildo entrou gabinete adentro, tratando logo de se apresentar:

- Deputado Tutinho, meu nome é Givanildo Couto, sou repórter da TV Brasil da Gente, e gostaria de fazer uma entrevista com o senhor. Todo mês, entrevistamos uma pessoa ilustre, que conseguiu, através de seus méritos, lugar de destaque no cenário nacional. O senhor se prontifica a conceder essa entrevista?

- Com o maior prazer. Estou a seu inteiro dispor – respondeu orgulhoso o nosso protagonista.

- Carlinhos, comece a gravar, vamos realizar o melhor trabalho de nossas vidas – disse Givanildo.

- Tudo pronto, chefe, vamos lá! – retrucou Carlinhos.

- Estamos ao lado de uma das mais importantes figuras deste país.

- Gostaria que essa pessoa se apresentasse aos nossos telespectadores.

- Bem, meu nome é Etelvino Noroaldo da Costa, vulgo Tutinho, sou empresário e pertenço ao meio político.

- E, por que, Tutinho?

- Quando criança, como bom mineiro, meu prato predileto era tutu. Cidade pequena, você sabe como é... Antes de aprender a andar, a própria família providencia um apelido para a gente. Por eu gostar muito desse prato, surgiu esse apelido. Primeiro me chamaram de tutu, virou tutuzinho e, meu pai prevendo outras derivações menos honrosas, definiu meu apelido para Tutinho.

- Sabendo que o senhor se origina de um meio pobre, como chegou até aqui e como é sua vida hoje?

- É, na verdade, não posso reclamar, tenho uma vida muito boa, bastante dinheiro, filhos e esposa honestos e trabalhadores. Quero dizer que amo a vida. Realmente, minha vida não foi sempre esse mar de rosas. Quando menino, tive de lutar muito. Agarrei com coragem a primeira chance que a vida me ofereceu.

- Quem, ou melhor, o que o impulsionou na carreira política, e quais fatores o fizeram prosperar tanto?

- Tenho que agradecer por tudo, aos meus queridos Epicentro, Bocudo, um bando de medrosos; não podendo me esquecer de Pitomba, que foi, e será a principal figura dessa curiosa trajetória. Meu pai, apesar de ser um bom sujeito, não era o que podemos chamar “um exemplo de coragem”. Fomos criados na casa do padrinho de meu pai que, por sinal era o Prefeito de Curupira, uma pequena e ordeira cidade. Um lugar de homens extraordinariamente pacíficos. Para não dizer, um tanto quanto frouxos, a começar pelo Prefeito. Vou contar minha historia e dos demais habitantes do lugar.

- Primeiramente, Tutinho, não vejo como um epicentro pode ajudar alguém, estou ansioso para saber como isso aconteceu.

- Bem, tudo começou por volta de l934. Peço que não duvidem do que digo, pois os últimos que duvidaram quem acertou contas com eles, foi o terrível Bocudo e sua maldição.

- Cruz credo, Tutinho, eu jamais pensei que sua historia tivesse um fundo macabro! - comentou assustado o repórter.

- Eis minha historia:

- “A pequena cidade de Curupira amanheceu em silêncio. O galo não cantou, o vira-lata da Crotilde não latiu. Nem as crianças compareceram às aulas. Era uma manhã de setembro, o Prefeito Coronel Julião, homem íntegro, porém, impetuoso, saiu à rua para reclamar de Cremildo, o padeiro, que não lhe trouxera o pão. Vendo a cidade deserta, sentiu calafrios. Nem mesmo o leiteiro, Juca, entregara o leite. O Prefeito voltou para casa receoso, sentou numa poltrona e começou a matutar: “que diabos está acontecendo com essa cidade? Teriam seus moradores se mudado ou fugido durante a noite, e por quê? E quem sabe um extra-terrestre os tenha raptado? E se todos estiverem mortos dentro de suas casas? Talvez uma peste fulminante. Mas, por que não aconteceu nada comigo e com os meus? Se bem que esses pobres têm mania de se abraçar feito primatas, um pode ter contaminado o outro e, pronto! Tenho que mandar meu criado, Zeca do Toti, para verificar o ocorrido.

Coronel Julião, com toda educação que lhe é peculiar, chamou seu protegido e afilhado que, por sinal, é meu pai, o qual era um homem muito gordo, sua preguiça exalava pelos poros:

- Zeeeeeeeeeeeeeeecaaaaa! Sua voz, dessa vez, batera todos os recordes, chegando a derrubar vasilhas na prateleira. Com cara de preguiça, cabelos por pentear, com uma roupa toda amarrotada, denotando ter ele dormido com ela, chegou à porta:

- O senhor me chamou, Padrinho?

- Não, chamei foi a mula-sem-cabeça, seu filho da morcega!

- Cruz credo, Padrinho, eu podia jurar que tinha me chamado!

- É claro que chamei seu cabeça de macaxeira. Vá à Prefeitura e peça aos vereadores, a meu chefe de gabinete, aos faxineiros e todo aquele bando de sanguessugas ( isso se eles tiverem ido trabalhar e não tiverem sumido, é lógico), para irem às ruas, saber o que está acontecendo com essa gente. Preciso de respostas urgentes. E diga também a eles que se movimentem. Ora essa, eu que sou o prefeito, dou o exemplo, levanto cedo todos os dias, com o dia escuro. Mesmo que haja estrelas no céu, às nove horas já me encontro de pé. Vá agora, seu filho de mula, corra...

Ele, então, agarrou as alças dos suspensórios com os dedos, levantou a cabeça e, a passos lentos, caminhou rumo à porta.

- vá rápido, seu bicho preguiça com hemorróidas!

- É pra jááááá, patrão!

Ao chegar à rua, o valente Zeca, meu progenitor, começou a apavorar. O silêncio era profundo. A cidade estava deveras vazia. Nem sei contar onde esteve. Mas, a verdade verdadeira, só ele, e eu, conhecemos. Após esses acontecimentos, ele também sentiu calafrios. Um vento levantava uma fina poeira e, junto ao pó, lá se foi a coragem de nosso futuro fracassado candidato a herói. Dois fortes trovões sacudiram a cidade. Com as pernas bambas, cabelos arrepiados, voz trêmula e, sem forças para gritar, balbuciou:

- Ajuda-me, Nossa Senhora dos Desencorajados, a voltar para casa. Sou um pobre coitado, frouxinho... Frouxinho. Se me ajudar, prometo nunca mais bulir com a Carmela, mulher do Mané Justo, nem vou ficar olhando pelo buraco da cerca a Sinhá do Chico tomar banho de bacia, na coberta do forno!

E, assim, nosso valente mensageiro decidiu voltar e enfrentar a fúria do padrinho. Nessas alturas, meu pai, já sem forças nas pernas, se arrastava pelas ruas. Chegando à porta de casa, a garganta seca pelo susto, sacudiu o portão, sussurrando:

- Ô padrinho, pa...pa...dri...nho, abra a por...por...por...ta, pelo a ...a ...amor...de...de...Deus!

- Zeca, filho de uma demonha, o que foi que aconteceu? Você está com cara de cachorro com diarréia! Fala logo, homem, senão, lhe arranco o couro!

Ele, que era negro, estava cinza. Sua voz mais parecia miado de gato novo. O padrinho, aos poucos, tomava consciência da situação em que seu afilhado se encontrava e, era realmente lastimável.

- Seu porco! – disse o padrinho tampando o nariz – vai tomar um banho e depois venha prosear comigo.

Bem devagar, com as pernas abertas, o nosso herói foi-se deslocando rumo a sua pequena casa. Esta era ligada à casa do patrão, apenas por uma porta. Seu traseiro gordo mais parecia um guia de procissão de mosquitos. O mau cheiro tornava irrespirável aquele ambiente.

- Filho de um gambá, filho de anta, filho de uma cadela sarnenta! – gritava o Prefeito, maldizendo a incompetência de seu protegido.

Ao atravessar a porta, foi recebido por minha mãe e seus quatro filhos que, tapando a boca com as mãos, desatamos a rir. Os filhos, como se estivéssemos numa festa de aniversário, dizíamos em coro: “o pai borrou nas calças, o pai borrou nas calças, o pai...”.

Fomos interrompidos pelos berros de meu pai, ameaçando pegar o cinto. Minha mãe, Floristéia, perdendo a paciência com a incômoda situação, gritou com a gente: “ô bando de pulga com prisão de ventre, sossega! Será que é pouco ter um pai frouxo? Eta homem mole da moléstia, tem medo até de sombra. A bacia d’água está lá no quarto , vá se lavar, antes que intoxique a gente com tanta catinga!”

Com a cabeça baixa, sem nada responder, foi para o quarto, onde fez sua higienização, ainda que de forma precária, “male-male”, como diziam os curupirenses.

Nesse momento, Givanildo Couto, interrompe a narrativa do deputado e avisa que é hora de faturar e, durante os comerciais, disse a Tutinho que a audiência iria atingir o pico e que, até ele, acostumado a bombásticas entrevistas, estava apreciando demais aquela narrativa. Quando voltou ao estúdio, Givanildo Couto se dirigiu ao entrevistado:

- E o Prefeito Julião, a quantas andava a vida dele nesse momento da história?

O deputado, retomando a palavra, continuou:

Julião andava da sala para a varanda, de um lado para outro, demonstrando total falta de paciência, com a demora do afilhado cagão. Floristéia, minha mãezinha, ferroava o marido Zeca, para que andasse depressa. Por conhecer, sabia muito bem que o padrinho Prefeito estava aflito e não demoraria a iniciar a sessão dos gritos:

- Vá, seu molenga, seu padrinho acaba vindo aqui, as coisas podem piorar...

Nessas alturas, Zeca já vestira sua mortalha de missa. Pediu à esposa que lavasse os excrementos de sua calça predileta, saindo em seguida, abotoando os suspensórios. Com a cabeça baixa de vergonha do padrinho, disse:

- Padrinho, me desculpa, não sou nenhum bunda-mole, apenas faltou coragem para cumprir suas ordens. A coisa lá fora, padrinho, está feia, carece mais que coragem, é preciso uma espingarda polveira e muita munição, se não for desse jeito, sair de casa vai ser suicídio.

- Seu filho de boi-bumbá, por que não me conta o que viu, aí eu avalio se carece eu mesmo, pessoalmente, enfrentar o não sei lá o quê...

- O negócio lá fora está mais feio que a Liça, mulher do Dirço. Pro senhor ter uma idéia, lembra dos filhos do Juca e da Padia?

- Carece me clarear a mente, quem são esses dois?

- São aqueles dois que trabalhavam na fazenda do Grotão, eram atrasados de cabeça. O senhor achou que os dois tinham que casar para ser o casal mais feio do mundo! E os filhos ganharam dos pais na feiúra, lembra?

- Agora, me lembrei. Foi realizado o casamento na sexta-feira, treze de agosto, não foi? E lá na grota das Almas. Até me lembrei da cara do padre, quando avistou os noivos, dizendo: “nossa, que par de garruchas!”. Pelo que meu afilhado tá contando e, pelas comparações que está fazendo, estou já com os cabelos em pé! O que você viu mesmo, homem de Deus?

- Padrinho, só de pensar no que vi, me borro todinho. Foi horrível!

- Fala direto, moleque, estou esquentando a piolhenta...

- Quando saí na rua, estava vazia feito algibeira de pobre.... Fui andando com toda aquela coragem que o senhor me ensinou a ter. Estava preparado para esmurrar qualquer extraterrestre que eu encontrasse. Meus pés comichavam de vontade de chutar o traseiro de qualquer fantasma. Desci a rua do Capim, entrei na rua da Encrenca, quando cheguei no boteco do Pustema, na praça da Virtude, olhei pras bandas da igreja e me arrepiei...

- O que você viu, seu sapo-boi?

- A praça estava abandonada...

- Por que não fala logo, seu estrume de bicho-preguiça, o que lhe causou esse medo? Ou fala logo, ou lhe corto na chibata!

- Calma, a praça estava deserta, como sua careca...

- Zeeeeca!

- Perdão, meu padrinho... Olhei para um lado, para outro e, como estava em frente ao bar do Pustema, me deu uma vontade danada de tomar uma timbuca.

- Você tem coragem de contar que bebeu cachaça no bar do Pustema, sem pagar?

- Não, padrinho, o bar do Pustema estava fechado, então, fui até o bar do Perrengue. Lá estava servindo buchada de bode e uma panelada de testículo de boi. Aí, eu sozinho, com tanto tira-gosto e uma garrafa de cachaça da marca “Mata ou Aleija”, agasalhei uma na goela...

- Até agora não falou o que quero saber.

- É que era tanto rango de graça e aquele danado com aquela mão tão boa para cozinhar. Nem sua cozinheira Gestrude cozinha igual aquele mastigo. Mas, voltando à morte da bezerra, quando eu bebia, no quarto copo, dois fortes trovões sacudiram aquele lugar. Tive que me esforçar para não soltar a garrafa da birita. Fui até a porta do bar, muito assustado e, quando olhei para o Beco dos Aflitos, aí é que tudo petecou de vez! Não sei se foi pela força diabólica ou a feiúra daquela criatura, eu me senti paralisado. Padrinho do céu, a coisa era feia, entortava de um para outro lado, balançava para frente e para trás, igual um bêbado querendo abrir a porta.

- seu bêbado miserável, que forma tinha essa alma penada?

- O senhor nem queira saber... O corpo era magro como o da Dona Tervina, sua mãe, isso com todo o respeito. A cabeça, redonda e grande como a da Odinéia, sua secretária. A boca enorme, quase como a boca da Candinha, sua mulher. A boca cheia de falhas como a doTiodolino, seu pai, que Deus o tenha.

Julião coçou a barba, enxugou com a toalha de mesa a sua careca e, por fim, disse:

- Ô seu gambá desidratado, pelo que descreveu, eu estou achando que você viu foi a Zirdinha, da pensão de Cremilda.

- A Zirdinha eu conheço bem, até por demais. O Senhor precisava de ver a tal coisa, espero que, se acontecer com o senhor, não venha a se borrar todinho...

- Homem frooooooouxo, acha que sou feito você? Criatura como você, eu mato, tiro o couro e seco, ainda vendo as gorduras pra fazer sabão e farinha de osso!

- Eu já disse que sou tão besta, que faço meu padrinho perder a cabeça.

- Aí melhorou...

Desculpe eu interromper o amigo, mas onde é que o nobre deputado entra na estória e vira herói?

Você vai ver como eu entro em cena e não saio mais até o desfecho – respondeu Tutinho

Continuando, Zeca, meu querido pai, sugeriu ao padrinho que mandasse a Floristéia, minha mãe e eu, porque, apesar dos doze anos, já era valente feito um texugo. O Prefeito, num rompante imprevisto, passou a falar muito alto, dizendo que, se não fosse autoridade, já teria encontrado esse Bocudo, com uma peixeira e uma polveira de dois canos e obrigava ele dizer o que fez com a gente inútil da cidade.

Nesse momento, ignorando o sorriso crítico do afilhado, o prefeito Julião manda meu pai pra casa, para fazer um tira-jejum e assenta em sua poltrona de madeira, na varanda, para matutar. O pensamento que lhe chegou primeiro era que sua esposa, dona Candinha, se tivesse presente, estaria dizendo: “meu frouxinho, prefeitinho de merda, seja macho, pelo menos uma vez na vida!”

Segundo o dizer de Julião, Candinha, sua mulher, se ele não concordasse com ela, riscaria o chão com a peixeira, cuspia o pedaço de fumo que costumava mascar e sairia maldizendo o seu casamento com um covarde...

Mais calmo, pediu Gestrude para trazer-lhe a comida, criticou dizendo que aquilo era canja de hospital, não era comida para homem como ele. Gestrude retrucou que ele não comprou carne e que era cozinheira e não milagreira e insinuou que ele estava mesmo precisando de um regime. A cozinheira também ameaçou deixá-lo e ir trabalhar para o doutor Ovídeo, que pagava bem melhor...

A mando do patrão, Gestrude sai e vai chamar Zeca, meu paizinho e sua família, para trocar umas idéias sobre como descobrir o paradeiro de todos da cidade.

Ele indagou antes de atender:

- Gestrude, ele está manso ou como uma galinha arrepiada?

- Ele está mais é pra bezerro desmamado! A situação não é das melhores. É só olhar nos olhos de seu padrinho e você vê que ele está é se borrando todo... Vale a pena conferir!

Todos riram e fizeram muita piada sobre aquela situação, até que Floristéia, minha mãezinha, lembrou que era bom rir do patrão, sem esquecer que eram eles mesmos que teriam de enfrentar a fera lá fora... Meu pai, Zeca, interferiu:

- Valha-me, meu São Jorge Guerreiro, ajuda esse pobre trabalhador a ter coragem, se tudo terminar bem, eu juro que contarei à Candinha que foi eu quem colocou o sapo no bolso dela, a fazendo desmaiar ao lado do deputado Eraldo, no dia da festa da posse do padrinho!

- Se você não contar, eu mesmo contarei seu safado, e ela disse que ia mandar capar o autor dessa maldade! – protestou minha mãe, Floristéia.

- Não faz isso com esse maridinho que te ama, é ruim pra você e pra mim...

- Vamos embora, minha gente, vamos resolver o problema dessa turma de frouxos – emendou Floristéia.

Chegando à casa de Julião, meu pai, Zeca gostou de vê-lo caído, como soldado que perdeu a guerra, pelas criticas ofensivas a sua pessoa, a vida inteira, sem trégua.

- Padrinho, o que está acontecendo? O Senhor está mais branco que macarrão em prato de doente, e sua coragem, está escafedendo?

- Quando tudo terminar – respondeu o prefeito – não vou esquecer desses comentários maldosos, o que me faz aflito é a responsabilidade que tenho com esse povo sumido.

- Não será muito amarelão, para pouca preocupação?

- Zeca, se falar mais um “a”, eu corto sua língua e mais alguma coisa que tiver sobrando.

- Nossa Senhora dos Infelizes, seu Julião, a língua pode cortar, mas as outras coisas... Tenha misericórdia, o pobre tem pouco divertimento. Vai fazer falta pra mim...

O Prefeito iniciou um discurso: “eu botei meu pensador pra pensar, quase surtei. Depois de pensar mais um pouco, eu decidi que é hora de melhorar a auto-estima de vocês. Eu só tenho realçado em vocês a burrice. Tem um livro sagrado que diz que a verdade mora nos lábios dos pequeninos. Muito embora vocês sejam minúsculos, quero dar-lhes uma chance de provar que têm um mínimo de massa cinzenta em suas cabeças. Entendam que não estou assinando um atestado de incompetente, quero mostrar que são também capazes de pensar, pelo menos, um pouquinho, um tiquitinho que seja!...”

Givanildo interrompe, dizendo:

- Estou aflito deputado Tutinho, quando entrará em ação?

- Já está chegando a minha hora, preste atenção.

Retumbou naquele momento, um grande trovão. O susto foi tamanho que uns caíram sobre os outros, amontoando-se. Pareciam porquinhos de porca recém-parida! Apenas eu, Tutinho, me mantive de pé. Indignado com aquele bando de medrosos, procurando abrigo. Santo Deus, que vergonha, e ainda dizem que os filhos têm de seguir os exemplos dos pais. Achei melhor imitar o Moisés, aquele bode velho, que, mesmo sem forças, ainda enfrenta o marruage do Norvino.

Julião raspou a goela, empurrou Gestrude, que empurrou Floristéia, que deu uma cotovelada nas partes baixas do meu pai, Zeca. Mesmo gemendo, ele se desculpou, dizendo que os estava abraçando para defendê-los do Bocudo que estaria chegando.

Chamei a atenção de pai e disse que era hora de apurar a coragem dele e de seu padrinho, para confirmar se sua valentia correspondia as suas falas, pois ter autoridade é uma coisa, ser macho é outra. Pedi que me dessem a polveira e eu traria o Bocudo morto, mortinho da silva. O prefeito argumentou que eu era muito pequeno para entender que, se algo acontecesse a ele, ficaria o povo sem rumo, ao que eu respondi: “é se acontece alguma coisa com o povo, o senhor também não procura rumo!”.

Meu pai, Zeca, me perguntou de repente:

- Tutinho, se acontecer alguma coisa comigo, o que será de sua mãe e de vocês, meu filho?

- Já vi que pra ser frouxo não precisa idade. Saio de casa, com a polveira, um porrete ou um estilingue. Nem sei se o pior é enfrentar o Bocudo, ou assistir a um bando de frouxos, reunidos num mesmo lugar! Vamos logo, senão, não salvaremos ninguém...

- Zeca, se nós dois formos, arrisca a gente borrar as calças; se deixarmos o Tutinho ir sozinho e acontecer alguma coisa com ele, as pessoas não nos perdoarão. Por outro lado, se ele conseguir desvendar o mistério do Bocudo, ele sozinho será o herói e não eu, o Prefeito. O que faremos?

Zeca, meu pai, chamou o padrinho para um canto e começaram a traçar um plano que os protegesse de uma situação constrangedora, e ainda pudessem lograr proveito.

- Padrinho, se entregarmos a polveira pro Tutinho, a gente diz aos outros que estamos dando moral pro menino e, esperto como somos, acompanharemos o moleque de longe, como a proteger o bichinho e coisa e tal... Se o boca grande aparecer, é claro que ele vai fugir. O bicho não consegue pegar; se ele borrar as calças, não tem problemas, é uma criança. E, nós, olhando de longe, vai ser um pé lá e outro cá, certo?

- Não é à toa que é meu afilhado, seu gênio do bem! Desde a invenção do trem-de-ferro que ninguém pensa tão fácil! Só falta convencer a Floristéia a deixar o menino resolver um assunto que é nosso.

- É fácil, dizemos que nós os homens vamos enfrentar o Bocudo e ele, sendo homem, deve ir conosco. E, lá na rua passamos pra ele nossos planos.

- Filho de uma boa mãe, está me saindo melhor que a encomenda – enfatizou o Prefeito.

- Obrigado, padrinho, é o melhor padrinho do mundo, estou emocionado. É a primeira vez que me trata com carinho.

- Larga de enxurro de choro. Tá parecendo a Margarida do Chico, no velório de Jucão, seu amásio. Toma tenência homem.

Meu pai chama minha mãe para falar com o coronel Julião:

- Olha só, o Zeca e eu estávamos juntando nossas idéias e resolvemos que só os homens podemos perseguir o Bocudo, o que acha?

- Já foi tarde, seus frouxos de uma figa!

- Mas o Tutinho vai com a gente, mulher, ou ele não é homem?

- Isso é que não, ele é muito pequeno, só tem doze anos, cria vergonha na cara, Zeca!

- Mãe, eu tenho que ir. Esses bundas-moles vão ficar perdidos que nem cachorro no meio do foguetório.

- Então vá. Deus te acompanhe só se mete com medrosos. Pega logo a polveira de dois canos, vamos ver se essa velharia ainda funciona!

Saímos os três. Ao chegar ao portão, me revelaram o plano e a estratégia de guerra. Eu deveria ir à frente com a espingarda e os dois corajosos atrás. No momento em que o tempo esquentasse, chegariam os dois e acabariam com a fera. Acho que iam mesmo é cair na moita, como se diz.

Eu segui determinado, gritei com os dois:

- vocês estão muito atrás, quando o Bocudo chegar, vocês vão assistir é a minha batalha contra o bicho!

Nesse ponto da narrativa, Givanildo interveio:

- É, parece que é agora que o nosso nobre deputado vai mesmo entrar em ação, eu só quero ver o bicho que vai dar...

- Preste atenção nos detalhes...

Prudentemente, desci a alameda principal. Entrei na Rua do Capim, revistei com os olhos cada canto, enquanto o pai e o prefeito me seguiam empalidecidos de medo. Não encontrando nada, desci a Rua da Encrenca. Ao chegar ao bar do Pustema, observei que meu pai, em sua narrativa, dissera a verdade. Realmente, estava fechado. Senti, pela primeira vez, um arrepio em pensar que ele vira de verdade, uma horrenda criatura. Não me intimidei, se ela estivesse por ali, eu iria encontrar. Desci lentamente rua abaixo, até a praça da igreja. O pai e o prefeito, atrás. Prontinhos a dar meia volta. Eles se aproximaram um pouco mais e sussurraram tão baixo que quase não entendi:

- Você não viu nada suspeito?

- Decerto que não, já estou sentindo cheiro de mentira no ar...

- Não, filho, o que vi foi no Beco dos Atrevidos, perto do bar do Perrengue.

- Então, vamos até lá.

Cheguei até o bar, olhei para dentro e, de repente, dei um grito e corri para dentro do bar. Meu pai e o prefeito não hesitaram em rodar sobre os calcanhares e, pernas para que te quero!

Ao chegar a casa, planejaram uma boa desculpa pelo meu sumiço:

- Cadê o Tutinho? – perguntou minha mãe, Floristéia, muito apavorada - Não diga que vocês o deixaram pra trás para enfrentar sozinho o boca grande!

- Não foi bem assim – se antecipou o prefeito – nós estávamos os três vasculhando a área, procurando a indesejável criatura. O Zeca de um lado, eu do outro, o menino no meio. Quando vimos, o coisa feia pegou o Tutinho, ele deu um grito, mais ou menos como se dissesse “coveiro”!

- Não, padrinho, escutei bem, estava perto, quando ele gritou mais ou menos isto: ”sovertei, que o trem é feio!”. Conhecendo a coragem do menino, e ouvindo dele mesmo que o trem era feio, eu caí no mato. Deus há de ter piedade dele e ele vai vencer, tenho certeza...

- Meu deus! – interrompeu a mãe, Floristéia – vocês deixaram o menino sozinho, cadê a coragem de vocês? Cambada de frouxos, filhos de uma gambá prostituta. Vocês não têm coração, vocês valem menos do que aquilo que o gato enterra!

- Desculpe, Floristéia, na hora em que o Zé Brodó, especialista da prefeitura, em achar as vítimas do Bocudo, entrar em ação, ele achará também seu filho, ainda que seja o que sobrou dele...

- Não diga isso, eu não sei de vocês, mas eu vou buscar meu filho, que dois cabras safados deixaram para trás.

- A senhora não pode com aquela coisa, ainda mais agora que não tenho minha polveira...

- Com polveira ou sem polveira, com coragem ou sem coragem, eu vou. Ainda vou dar uma surra muito grande de chinelo, se aquele Bocudo tiver, ao menos, bulido com meu menino Tutinho.

Dizendo isso, ela, Floristéia, saiu ao encalço do menino, queria de todo jeito o filho de volta. Os dois patifes se entreolharam e não viram outra saída, a não ser voltar àquele apavorante lugar. Ela ia rua acima, xingando, estava disposta a mostrar a fúria de uma mãe dedicada e amorosa. Os dois marmanjos tentavam detê–la, mas corriam atrás, sem êxito. Percorreu todas as ruas da cidade, até que chegou ao Bar do Perrengue. Sentiu enorme receio, pois se perguntava “e se o Bocudo fosse feio como todos diziam?” chegaram os três devagarinho. Por várias vezes, fecharam os olhos. Chegaram a imaginar o menino sem cabeça, ou todo mastigado e cuspido, num canto do bar... O bar estava vazio, minha mãe, Floristéia, com voz rouca chamou o filho. De repente, uma voz detrás do balcão assustou os três. Meu pai e julião deram um grito, pulando os dois no colo dela. Caíram os três no chão.

- Mamãe, mamãe..., eu gritava, mas ela desmaiara. Os corajosos fecharam os olhos e rogavam: “seu Bocudo, o senhor até que é bonitinho, poupe nossas miseráveis vidas e eu lhe dou um cargo comissionado lá na prefeitura...”.

- Calma, gente, sou eu, não tenham medo, podem abrir os olhos.

Minha mãe, devagar, ia recuperando, me abraçava e perguntava pela fera. Aí eu expliquei que não havia nenhuma fera. Esclareci que, quando eu cheguei ao bar do Perrenque, não havia ninguém. Quando vi a máquina de sorvete, fiquei doido! Chamei os dois cagões, dizendo “sorvete, sorvete! Quem chegar por último é mulher do padre!” Não sei o que eles entenderam. Só sei que, quando olhei para trás, eles já haviam dobrado a esquina. Quando se tem medo, cada um vê e escuta o que quer...eu tomei tanto sorvete que fiquei com barriga de bagre de enchente.

Voltando ao assunto do Bocudo, eu acho que sei quem é ele, mas não vou contar agora; ainda não sabemos onde foi a gente da cidade. Talvez esteja enganado e não quero cometer injustiça.

- Eu, como Prefeito, não posso deixar as coisas como estão. Acho que temos de ir à prefeitura investigar, procurar pistas...

E, assim, fomos os quatro para a prefeitura. Eu ia à frente, todo serelepe, carregando aquela velha espingarda que mais parecia um canhão. Os três andavam sempre juntos, com medo do Bocudo. Ao chegar ao Beco do Infeliz, tive quase certeza de ter visto alguém correr e se esconder no prédio do banco local. Meu pai não acreditou em minha observação e disse que era minha imaginação, mas tremia feito vara verde. Eu falei, então:

- Arriégua! Estou sentindo cheiro de gente frouxa, outra vez, será que meu pai esta se borrando?

- Não é isso, seu inseto a pilha! O que seu pai quer dizer é que não podemos perder muito tempo, temos de chegar à prefeitura quanto antes, ou, poderá ser tarde. Dando tempo, podemos até agarrar o tal de Bocudo!

- Obrigado padrinho – cochichou meu pai no ouvido do prefeito – você ajudou a disfarçar o meu medo.

- Calma, nós estamos no mesmo barco – respondeu o prefeito – vamos parar com conversa mole. Tutinho, mostra pra esses dois borra-botas, que você é o neto do coronel Crementino da silva, que Deus o tenha. Aquele era homem, caçador de assombração e mula- sem- cabeça. Era o maior. Se ele vivesse, o tal Bocudo já tinha virado Boquinha- de- Chupa-Ovo.

- Quando crescer, quero ser como o vovozinho...

- Cruz credo, Tutinho, Santa Maria dos Desajuizados. Você está admirando o maior mentiroso do mundo, disse meu pai apavorado.

- Deixa de calúnia, seu invejoso, você lembra muito bem, quando apareceu aquele chupa-cabra, comendo animais, você foi lá fora matar o malvado e voltou borradinho, borradinho..disse minha mãe, .salvando a memória do seu pai.

- E você acreditou que existiu esse tal? – perguntou meu pai.

- É claro que sim. Você não viu o couro e o sangue do bicho – respondeu minha mãe, toda orgulhosa, lembrando a suposta proeza de seu pai.

- Eu vi, parecia mais um couro de cachorro. Por que ele enterrou o cadáver antes de a gente ver?

- Porque era um homem ativo. Ele sabia que você, Zeca, e as crianças eram de pouca coragem, então ele enterrou para que não se impressionassem.

- Me engana que eu gosto – reforçou meu pai, Zeca – ele era um mentiroso. Contava certa caçada, que fez lá pelas bandas do capão das cruzes, que até hoje ninguém engoliu. E você acha Floristéia, que essa foi a maior façanha dele.

- Conta, mamãe, pra nós.

Nesse momento, Givanildo interrompe o deputado Tutinho e pergunta se a história era comprida, se fosse, era melhor pular esse pedaço, porque tinham que dar um tempo para os comerciais. E explicou que, também nos meios de comunicação, tempo é dinheiro. Tutinho achou melhor entrar a propaganda porque a história de seu avô merecia um capítulo à parte. Passados os reclames, ele iniciou a narrativa.

“Foi por volta de l9l3, crementino, meu avô, Pascoalino, Zé canzir e Barrinho foram procurar algumas onças, que assolavam o Capão das Cruzes. Chegaram à tardinha na mata. Encontraram um rancho velho abandonado, bem no meio de um bambual. Havia uma nascente que, segundo os moradores, era onde as onças se agrupavam, para beber água. Prepararam os apetrechos pra não serem surpreendidos pelas bichinhas. Vocês devem saber que o bicho onça é ladino por demais. O Zé canzir era o encarregado de fazer o mastigo para a turma. Depois de se fartarem, carecia que alguém fosse até a fonte lavar os pratos e panelas. Era hora de provar quem era o mais corajoso. Um olhava para o outro, esperando que alguém se oferecesse para o serviço. Emudeceram-se. Vendo que, daquele mato não sairia coelho, resolveram fazer um sorteio. Ficamos bolando uma maneira de sermos justos. Ninguém deveria trapacear. Pasmem. Resolveram fazer um campeonato de cuspe. Era o seguinte: todos encostariam na parede do rancho e o que cuspisse mais perto, ia para o córrego lavar as vasilhas. Primeiro foi o Pascoalino. Ele preparou, apontou e cuspiu em cima da cama do Barrinho, o que significava uma distância de uns dez palmos. Então, chegou a vez do Barrinho. Ele apontou, mirou, disparou. Acertou a parede esquerda do barraco, o que significava uma distância de uns quinze palmos. O Zé Canzir fez como os outros, cuspindo tão forte que foi parar longe, numa distância de uns trinta palmos. Aí chegou a vez do meu avô. Estava seguro, jamais perdera um campeonato de cuspe. Ele se ajeitou na parede, se preparou, mas, quando ia soltar o jato, a onça deu um miado, bem perto do rancho. O cuspe foi parar, devido ao susto, dois dedos abaixo da boca. Não teve saída. Meu avô ajuntou as vasilhas e foi para o córrego. O Zé Canzir ainda o alertou para levar a polveira, mas ele disse que o homem, que é homem, pega onça é com a mão. Entrou grota abaixo, procurando o bendito córrego. Quando chegou na beira da água, se agachou como uma mulher que se prepara para se aliviar.. Olhou para um lado, para outro, quando viu dois enormes olhos o ameaçando. Pareciam soltar fagulhas. Suas pernas paralisaram. A tremura era tanta que chocalhava as vasilhas, jogando-as para cima. Gritou por Nossa Senhora dos Frouxos, e desandou a correr mato adentro. A malvada parecia dar risada, correndo pra cima dele. Corria mais que um corisco. Mas não adiantou, quando ele olhava com rabo de olho, ali estava ela afiando os dentes com a língua. Infelizmente não era um dia de sorte. Quando pensou estar livre da megera, viu-se encantoado, numa gruta de pedra. Aí é a hora que separa o homem dos borradores de calças. Parou frente a frente com a maldita, olhando dentro dos olhos dela. Engalfinharam-se numa luta brutal. De caso pensado, enfiou as mãos pela garganta da bandida, levou a mão até onde a espinha perde o nome e. zás... Quando a onça apercebeu, vovô estava com o couro dela inteirinho na mão. A fera, nessas alturas, se deu por vencida, deu um pinote para trás e sumiu no meio da mata, com vergonha de sua nudez. Meu avô pegou no couro da bichinha, jogou nas costas e saiu cantarolando rumo ao rancho. Quando já estava no meio do caminho, eis que surge outra onça, pouco menor que a primeira. A onça parou na sua frente, olhou o couro que meu avô carregava orgulhoso e pediu ao vovô Crementino que devolvesse a roupa da mãe dela que estava com muito frio.

O repórter Givanildo Couto não interrompeu dessa vez, mas olhava para o Tutinho, com os olhos arregalados, parece que sem acreditar muito naquela façanha. Mas Tutinho retomou a narrativa naquele ponto em que os quatro heróis iam para a Prefeitura tentar agarrar o Bocudo, ou seja, Tutinho, Floristéia, Zeca e o Prefeito.

Bem, meu pai, ao ouvir a narrativa de minha mãe, arriscou:

- Mas, que mentira cabeluda! Nem Zecoré, o rei dos mentirosos, conseguiu inventar uma história assim... Não é mentira. Ninguém conseguiu desmentir essa façanha. Mas, vamos indo, ela disse.

Como sempre eu me antecipei. Com a arma na mão, saí seguindo os três medrosos, mas o Prefeito me chamou a atenção dessa maneira:

- Sua caricatura miniaturizada de Tarzan, vá mais devagar, “a prudência é a salvaguarda da vida!” o seu apavoramento pode lhe custar caro.

- não se preocupe, padrinho, esse filhote de pigmeu é mais esperto que nós três juntos.

E assim retomamos a caminhada rumo ao prédio da Prefeitura. Chegando, paramos na porta. Julião pegou seu molho de chaves e, com dificuldade, numa tremura só, destrancou a porta.

Como eu fosse o menor, pediram-me que entrasse primeiro e que vasculhasse o ambiente e que, se encontrasse algo estranho, corresse para fora que eles, os corajosos, iriam acertar pessoalmente as contas com o intruso. Assim, mostraríamos ao Bocudo, como era bom mexer com os valentões da cidade.

Apontei a espingarda para frente e segui sem pensar. Venci o hall de entrada, atravessei o salão nobre, revistei o gabinete, cheguei à janela e chamei os apreensivos companheiros de batalha.

- Podem vir, a barra está limpa!

- Você tem certeza? Perguntou o prefeito.

- É claro, só me falta olhar a sala de comunicação.

- Seu projeto de gente, vá logo à sala de comunicação, se o Bocudo for um ET, certamente está alojado lá, pode estar procurando aparelhos elétricos para recarregar suas baterias.

Obedecendo, entrei prudentemente na ante-sala. Ouvi um barulho estranho. Voltei devagarzinho, sem olhar o que causava tal ruído. Saindo do prédio, narrei aos companheiros tudo o que vira no interior da Prefeitura.

- Senhor prefeito, o senhor tem razão, pode estar mesmo na sala de comunicação, mas preciso da chave para entrar lá, não é? Assim poderei ir desentocar o dito cujo.

- Vá mesmo, meus planos estão me fervilhando a cabeça. Ficaremos de tocaia, se bulir com você, voaremos no cangote dele.

Nossos heróis até chegaram perto da sala pretendida. Mas fui eu quem destrancou a porta devagar e, com a arma apontada, fui andando em direção ao barulho. Quando cheguei perto da escrivaninha, o barulho aumentou. Levantei a espingarda e abri fogo contra o estranho barulhento. O coice da arma foi tão forte que fui arremessado contra a parede. Mamãe se preocupou:

- Tutinho, Tutinho, você está bem, o que houve com você?

- Estou bem, mamãe, acho que matei um filhote do Bocudo, este não geme mais. Pode vir aqui, prefeito, reconhecer o cadáver.

Nesta hora, o prefeito, muito pálido e trêmulo, entrou na sala, olhou em cima da escrivaninha, deu um berro, daqueles que só ele e sua delicadeza são capazes de proporcionar:

- seu filho de jegue, inteligência de toupeira. Não é capaz de reconhecer um telégrafo. Você destruiu a possibilidade de convocar as Forças Armadas para salvar nossa cidade dessa ameaça bocuda que nos assola... Quando acabar tudo isso, se estiver vivo, torço-lhe o pescoço!

- Patrão, não tive culpa, ninguém me mostrou o retrato do boca grande, pois não foi?

- Foi, mas de qualquer maneira, corremos o risco de virar merenda desse caboclo desafeiçoado.

- Me dê mais uma chance, prometo que não falharei na próxima oportunidade. É só dizer o que preciso fazer. Vocês verão a melhor máquina de capturar bocudo que existe.

- Ta bom, seu moleque, vamos procurar novas pistas. Ninguém some sem deixar rastros, ainda mais uma cidade inteira.

- O que devemos procurar? Perguntei.

- Sangue, tatu, gato, gambá e o diabo, ora, ora...

- Credo em cruz – falou minha mãe.

- Se eu soubesse o que procurar, não precisaria desse bando de bicho-preguiça.

Todos saímos a procurar o tal. Procurávamos há horas, quando meu pai foi ao banheiro, começando um tremendo escândalo:

- Corre aqui, Julião, depressa, esse boca grande destruiu a todos da cidade, embrulhando o sangue deles em pacotinhos!

- Cadê, sua anta, não vejo nada!

- Olha, prefeito, dentro desse balainho, pelo menos, quatro deles estão aqui, veja!

- Ah, seu cérebro de minhoca! Você nunca viu absorvente, é o que as mulheres usam quando estão naqueles dias...

- Nossa, eu nunca ouvi falar em travesseiro de acomodar a. a...nos dias que ela está perrengue...

- Chega de aula de ignorância, vamos continuar a busca.

Meu pai advertiu:

- Padrinho, há uns papéis aqui, será que não é uma pista? É uma penca, quer que eu leve todos pro senhor ver?

- Zeca, seu filho de uma coruja imunda, é claro que quero, todo papel na minha mesa é importante.

Givanildo resolveu interromper dizendo que seria melhor resumir a história dos papéis, para não ficar muito extenso o assunto.

- Pois, bem, Givanildo, vou resumir o quanto for possível.

Então, meu pai, zeca, ajuntou os papéis. Até um rolo de papel higiênico se misturou ao monte. Os primeiros eram contas de luz, água, fornecedores, recibos de professores e tudo que é corriqueiro em uma repartição desorganizada. Um cartaz de “Procurados” chamou a atenção de Julião. Eram fugitivos de uma penitenciária, com os dizeres “procura-se, vivo ou morto”. Havia dois retratos com os respectivos nomes e alcunhas, Everaldo Calhambeque e Péricles Puxa-a-faca.

O Prefeito ficou preocupado, e se os dois chegaram e seqüestraram o nosso povo e vão pedir resgate. Ele ficou de cabelo em pé. Pegou o segundo papel, mas se assustou tanto, que bambeou as pernas. Era um telegrama do governo com os seguintes dizeres “Ao prefeito de Curupira, coronel Julião, comunicamos que foram detectados epicentros nessa região. Favor tomar providências. Assinado, Governador do Estado”. O prefeito estava transtornado e tentava coordenar as idéias. “Que diabos é esse tal epicentro, será que o Bocudo tem alguma coisa com isso?” Enquanto ele matutava, eu dava asas a minha imaginação, até que o abordei:

- Prefeito, estou vendo que o senhor tem dificuldades para decifrar a mensagem. Vamos colocar nossas máquinas pensantes para funcionar juntas. Talvez o governador não colocou o nome correto, por causa dos espiões, eles poderiam por tudo a perder...

- Desembucha, homem, não tenho paciência com ignorantes!

- Calma, senhor, o governador escreveu pedindo para tomar providências urgentes, o telegrama diz um epi...

- Epis... Retrucou o prefeito – aonde você quer chegar?

- Everaldo e Péricles, estou certo?

- E pi pode até ser, Everaldo e Péricles, mas e o centro?

- Eles não são ladrões de bancos? E o banco não fica no centro? Logo, são eles ladrões de banco do centro.

- Seu menino, Rui Barbosa morreria de inveja de você. É cabecinha de ouro. Quando acabar tudo isso, será meu chefe de gabinete, pois não?

- Vou cobrar do senhor, doutor!

- Menino, e eu lá sou homem de duas palavras?

Lembrei-me, naquele momento, que, quando passei perto do Banco, vi dois homens se escondendo atrás de uma coluna do prédio. Falei ao prefeito que, na mesma hora, me cobrou outra idéia. Falei que devíamos consultar meu pai, zeca, pois ele conhecia todas as estratégias de caça do meu finado avô e que seria de grande valia para capturar os epicentros, ao que o prefeito me respondeu:

- Não acredito que, da cabeça de seu pai possa sair alguma coisa aproveitável, mas como o possível desafia o provável, vamos tentar. Zeca, o que você tem a nos dizer?

Os olhos de meu pai reluziram de contentamento:

- “Há muitos anos atrás, meu sogro foi trabalhar numa fazenda do estado do Pará. Quando lá chegou, os colegas tentaram ajudar, dizendo a ele que, quando saísse do acampamento, fosse armado, já que as onças faziam fila para devorar as pessoas. Ele duvidou e disse que, se aparecesse alguma, ele a levaria viva até eles. Os dias se passaram e o velho não viu nem um gatinho. Certa manhã, ele saiu para conhecer as matas da região. Seus colegas pediram para não afastar muito. Teimoso como era e, sem acreditar na existência do felino, deu uma risadinha zombeteira. Atravessou o ribeirão, entrou por uma capoeira. Chegando a um descampado, avistou uma pedreira. Caminhando em sua direção, defrontou-se com uma enorme onça pintada. Ela partiu para o ataque. O velho assustado e indefeso desandou a correr, tentando fugir da fera. Ele correu, correu, até chegar ao acampamento. A onça estava bem próxima de seu traseiro. Os amigos assistindo àquela caótica situação, apostavam que o velho não tinha saída. Assustado, entrou correndo casa adentro, saindo pela porta da cozinha, fechando-a atrás de si. Depois de prender o bicho dentro de casa, chamou os companheiros e disse para eles tirarem o couro desta bichinha que ele ia buscar outra.”

Então falei aos meus destemidos companheiros que assim é que poderíamos caçar os epicentros. O prefeito argumentou:

- Até que a idéia não é má. Mas, quem seria a isca?

Todos olharam ao mesmo tempo para mim. Fora escolhido por maioria absoluta. Apenas balancei os ombros, sorrindo sem graça. Meu pai, que arquitetara o plano, falou:

- Padrinho, cada um de nós tem de desempenhar com precisão o nosso papel. Você, Tutinho, vá pegar as jóias da patroa. Sorrateiramente, vai entrar no Banco, chamar a atenção dos epicentros, deixando que eles vejam as jóias, depois, corre rua abaixo, fazendo com que eles venham atrás de você. Corra como se tivesse fugindo do coisa ruim. Quando chegar à casa do padrinho, a porta estará aberta. Entre, atravesse a sala. Sua mãe também vai ficar com a porta aberta. Depois de sua entrada, ela fechará a porta com a tranca e o ferrolho. O padrinho vai esconder atrás da escada. Quando eles tentarem arrombar a porta de casa, o senhor dê a voz de prisão a eles. Quando eles levantarem os braços, eu fecharei a porta, entrarei com a corda. Aí amarraremos os patifes. Acho que todo mundo entendeu o que temos que fazer.

- Sim, respondemos todos ao mesmo tempo.

Saímos da Prefeitura, caminhamos até a casa do prefeito. Chegando lá, preparamos uma estratégia. Julião pegou uma polveira, recarregou-a, buscou o melhor ângulo. Minha mãe, Floristéia, abriu a porta da casa do prefeito, escondendo atrás dela. Meu pai subiu no forro, com um bom pedaço de corda. Eu peguei as jóias, alguns dólares e, lá fui eu com a coragem que Deus me deu. Chegando à Rua do Banco, pude ver os marginais, tentando arrombar a porta da agência. Aproximei e gritei:

- Seus epicentros, vocês estão querendo é isso?

- Moleque, onde arrumou isso? E precisa chamar nós de palavrão? Indagaram.

- Lá na casa do Prefeito e ainda têm muito mais e é tudo meu!

Dizendo isso, corri como o vento, rua abaixo. Os marginais correram atrás. Era muita riqueza para ficar com um menino, pensaram.

Tudo estava saindo como planejado. Em pouco tempo, estava às portas da casa do prefeito Julião. Diminui a velocidade para que eles não me perdessem de vista. Entrei casa adentro. Atravessei a porta, fechando com tranca e ferrolho. Em pouco tempo, os ladrões chegaram à porta. Um deles ficou no alpendre, o outro entrou cautelosamente pela sala, comprometendo o bom andamento do plano. O marginal tinha uma faca nas mãos. Detrás da escada, o prefeito tremia mais que vara verde. O malvado viu o prefeito e disse:

- Seu filho de uma piranha, sai daí. Ande depressa, não tenho tempo a perder, minha paciência é nenhuma. Ande sua lesma!

O prefeito, morto de medo, foi saindo, tropeçou no degrau. Sua espingarda caiu, disparando dois tiros para o alto. Um dos tiros pegou no forro, onde meu pai estava escondido. O teto veio abaixo. Zeca, meu pai e afilhado do prefeito, muito gordo, caiu em cima de um dos marginais, desmaiando junto com ele. O outro pegou o prefeito pela orelha, quase levantando ele do chão:

- Levanta, seu prefeitinho de merda. Onde estão as jóias e o dinheiro. Se demorar a me entregar, vou cortar sua orelha, arrancar seus olhos, depois vou cortar os seus entretanto e finalmente, pra jogar pros cachorros!

O que os marginais não contavam era com a chegada da Candinha. Ela chegou bem devagar, pegou o pobre coitado pela gola da camisa, aplicou-lhe um tapa na orelha, que até zumbiu, derrubando o malvado. Dona Candinha, brava como uma caninana, berrou:

- Ninguém chama meu frouxinho de prefeitinho de merda, nem tampouco fala em cortar os entretanto e finalmente dele...

Nesse momento, levantou a mão e bateu na cara do infeliz. Foi um golpe fatal. Em pouco tempo, o prefeito colocou a sua finíssima esposa a par da situação da cidade. Reanimaram meu pai, pegaram as cordas, amarraram os marginais, levando eles para a cadeia municipal.

Floristéia, minha mãe, ficou responsável pela cadeia, até descobrirem o paradeiro da população da cidade e, também, o mistério do Bocudo. Julião, Candinha, meu pai e eu saímos pelas ruas da cidade. Depois dos últimos acontecimentos e da chegada da tal esposa do prefeito, sentiam de alma lavada. Tão seguros, que estavam prontos a enfrentar, ainda que cara a cara, o terrível Bocudo. Nossos valorosos representantes curupirenses tomaram o rumo da igreja, para buscarem pistas.

Chegaram lá, o templo estava todo aberto, como se esperasse os fiéis para a missa. Entraram, olharam, tudo estava nos seus devidos lugares. Chegando em frente ao Sacrário, ajoelharam, pedindo a proteção de Deus contra o inimigo oculto. Revistaram toda a igreja e nada encontraram. Candinha resolveu ir até a sacristia. Lá existia um microfone conectado com o alto-falante que era de utilidade pública. Era com ele que se propagavam todos os eventos da cidade, desde enterros, casamentos, batizados, até mesmo alguma compra e venda de mercadorias, de qualquer natureza. A primeira dama curupirense foi até a mesa, pegou o microfone e começou a ler as notas divulgadas. Encontrou uma recente, para ser mais exato, do dia anterior. Nela havia a seguinte mensagem:

“Moradores de Curupira. O serviço comunitário da Paróquia de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro vem avisar, embora fora do horário, pois são vinte e três horas e trinta e cinco minutos, devido à urgência que o caso requer que, recebemos um telegrama, avisando que dois marginais foram vistos vindo em direção a nossa cidade. São procurados pela policia federal. E também uma nota do governador estadual de que um tal de epicentro, não sabemos com certeza quem seja e nem sua origem, está chegando. O governador pede providências. Pedimos a todos que se cuidem, pois são de alta periculosidade. Aproveitando a oportunidade, informamos, também, que o senhor Benito das Flores, vulgo Zé Caroca, comunica o falecimento de sua égua Pitomba. O sepultamento será realizado às quatorze horas de amanhã, lá na gruta das Almas. Antecipa agradecimento aos que comparecerem. Acho que todos temos uma dívida para com a Pitomba. Foi ela quem conduziu quase todas as mulheres em sua charrete, para dar a luz. Também foi ela quem levou quase todos os noivos da cidade para a igreja. De dezoito anos para cá, Pitomba se tornou uma figura querida em nossa cidade. Povo de Curupira, se quiserem escapar dos marginais, ou seja, do tal do epicentro, vamos para o velório que estaremos salvos. Sem mais, Pitomba agradece.”

- Ah, então é isso, ninguém quer saber da égua Pitomba, na verdade, são um bando de covardes. Meu prefeitinho de merda, meu frouxinho, você não ouviu o alto-falante da igreja?

- Não, minha flor de maracujá, você sabe, tanto eu, quanto meus protegidos dormimos como anjinhos, nem explosão de dinamite nos desperta.

- Que comparação mais besta, anjo não dorme, não ronca e não solta pum!

- Está bem, minha flor de maracujá, dormimos feito porcos!

- Aí até eu vejo a semelhança. Mas, vamos ao que interessa. Nós dois vamos pegar a charrete e iremos até o capão das Almas, buscar o nosso povo, que deve estar com fome e com frio, e só não voltou porque o medo é o mais sincero dos sentimentos. Enquanto vamos até lá, o Zeca e o Tutinho vão trazer, vivo ou morto, o boca grande para nós. Se não desvendarem o mistério, vão prestar conta comigo.

Meu pai, sabendo que a patroa era rigorosa, começou a tremer, como se estivesse com maleita. Eu já suspeitara quem era o Bocudo:

- Não se aperreie meu pai, eu sei como contornar essa situação.

O prefeito e sua esposa foram rumo à gruta das Almas. Eu e meu pai fomos até o armazém da Prefeitura, pegamos muitas dinamites, indo direto para a praça principal.

- Filho, você não está levando isto muito a sério. E se não encontrarmos o Bocudo, o que faremos com esse arsenal?

- Calma, pai, eu já sei onde encontrar o bicho. Não vou deixar o senhor passar por mentiroso.

Chegaram à praça principal. Foram até o bar do Perrengue. Lá, meu pai perguntou:

- Se você sabe onde está esse tal boca grande, me mostre, estou muito curioso com sua calma, diante do encontro com a fera.

- Papai, olhe daqui do balcão, você bebeu além da conta. Quando o senhor ouviu o grande trovão, ficou com tanto medo que ficou vulnerável às fantasias da mente. Quando saiu à porta, os piores fantasmas já haviam tomado conta de você. Olhe daqui, para a Rua dos Atrevidos, o que você vê?

Não me diga que o que vi foi o relógio novo da praça!

- Mas é claro que foi, veja só, corpo muito magro como o da dona Tervina, mãe do prefeito; a cabeça grande como a da dona Odinéia, secretária do homem; a boca tão grande como a de dona Candinha, que é o mostrador onde aparecem as horas. Os dentes são tortos e falhados como os de Tiodolino, pai do Julião, que são, apenas, os números e os ponteiros que mostram as horas. Olha, pai, lembra de sua bebedeira, vê se não foi isso?

- Arriégua, foi isso mesmo. E agora? O que faço para diminuir a vergonha?

- Calma, velho, eu já tenho tudo na cachola. Pega as dinamites, coloque no relógio e debaixo dos bancos da praça.

Zeca, meu pai, sem questionar, fez tudo direitinho.

- E agora, o que vamos fazer?

- Vá até a churrasqueira do bar, pegue carvão, esfregue bastante no corpo e na roupa, rasgue a camisa e a calça, depois volte para o último ato desse espetáculo de bagunça.

Em pouco tempo, meu pai voltou e ficou esperando a decisão do filho.

- Pai, agora nós vamos transformar a praça em ruína de guerra.

- Ah, agora estou entendendo, simularemos uma batalha. Mas como será uma batalha sem corpos?

- Essa batalha será diferente. Estamos enfrentando o Bocudo, ou um extraterrestre que fugiu em sua nave espacial.

- Eta, menino porreta, você tem um dom natural que não podemos desperdiçar. Você é um político nato!

Os dois dispararam as dinamites, deram tiros de polveira nas paredes, rolaram na poeira. Depois foram para o bar tomar sorvetes.

Enquanto isso, o prefeito e a esposa chegavam da gruta das Almas. Na entrada, viram Calu, filho da Tonha, que era chefe de gabinete do homem:

- Ah, prefeito, o senhor me desculpe, não houve tempo de lhe avisar. A prefeitura não poderia deixar de ser representada no velório da Pitomba. Afinal de contas, o município deve muito a esse maravilhoso animal...

- Largue de mentira, seu frouxo, aquela égua não valia o capim que comia, era um animal empacador e preguiçoso. Esta não cola, vocês todos ficaram com medo dos marginais.

Calu abaixou a cabeça como que consentindo.

- É verdade, nós só voltaríamos quando os bandidos não oferecessem mais risco.

- Homem, pra ser homem, tem de aprender a agarrar o diabo pelo rabo – disse Candinha.

- Junte todo o pessoal, vamos embora, os malandros estão na cadeia. Senhor delegado, até o senhor e toda guarnição esconderam-se aqui?

- Não, senhor prefeito, é que todos vieram para cá. Aí tivemos que vir para cá para manter a ordem e a paz.

- Ai, meu Deus, até o Padre e o sacristão?

- Senhor, prefeito, eu tinha que vir, como representante da igreja. Quem mais poderia trazer ajuda espiritual e consolo a esse povo! O senhor sabe como era importante essa égua para toda a comunidade!

- Cambada de mentiroso... Arrematou Candinha.

- Eu, como prefeito, e Calu, vamos à frente, temos de comunicar ao governador o ocorrido.

Dizendo isso, foram rapidamente para a prefeitura, onde passaram o seguinte telegrama: “senhor governador, eu, julião, prefeito de Curupira, informo que prendi os epicentros. Eles não oferecem mais risco para a população. Sem mais, agradeço”.

Lá da rua, ouvia-se o barulho do povo retornando à cidade, gritando o slogan: “hei, hei, hei, julião é nosso rei!”.

O prefeito saiu da prefeitura indo de encontro à esposa e toda a população da cidade.

O povo carregou o prefeito pelas ruas da cidade. Ao chegar na praça principal, as pessoas pararam. Fez-se um profundo silêncio. Julião olhou aquela praça destruída e murmurou:

- Zeca, Tutinho, meu Deus! Eu não devia ter mandado eles enfrentar sozinhos o Bocudo. Fui responsável pela tragédia. Como poderei encarar Floristéia?... Eu não poderia contar para ela que perdeu o marido zeca e o filho Tutinho. Ah, meu Deus! Vamos, amigos, procurar os corpos, eu nem acredito que esse Bocudo tenha devorado esses verdadeiros heróis de nossa cidade. Darei um bom dinheiro a quem os encontrar primeiro.

Foi como um estouro de boiada. Todos queriam localizar o cadáver dos heróis. Procura daqui, procura dali e nada. O prefeito desolado entrou no bar do Perrengue, pensando em tomar um timbuca. Quando abriu a garrafa, viu um pé debaixo de uma parede caída. Com o coração na mão, foi retirando os escombros, quando ouviu uma voz familiar:

- Padrinho, sobrou um gole para mim?

- Seu filho de uma égua manca, pensei que tivesse morrido e o Tutinho?

- O garoto está aqui – disse meu pai.

- O que aconteceu, parece ter havido uma guerra!

- É, padrinho, nem te conto, quando chegamos aqui, uma grande máquina luminosa estava parada no meio da praça. Quando aproximamos, apareceu o tal Bocudo com uma arma esquisita na mão, partindo para cima de nós. Tutinho pegou a polveira e abriu fogo. Corri para o coreto, peguei sua carabina e comecei a atirar. Os Bocudos sentiram que não teriam chance contra nós. Atiravam bombas. Tutinho e eu corremos para dentro do bar e abrimos mais fogo neles. Eu só vi quando entraram para dentro daquela coisa. Atirou ainda uma granada em nossa direção. Ainda vimos quando levantaram vôo. Eu estou certo de que, depois dessa escaramuça, não voltarão jamais.

Naquele momento, chegaram algumas pessoas e gritavam eufóricas:

“Salve nossos heróis curupirenses”!

A charrete luxuosa do Dr. Jeremias parou na praça. O povo carregou novamente o prefeito, o meu pai, eu, e nos colocou no veículo, bem como a primeira dama Candinha e minha mãe. Eu peguei as rédeas, estalei o chicote no ar, dando a partida. Candinha, abraçada a Julião, disse em voz baixa:

- Meu frouxinho, prefeitinho de merda, eu amo muito você!

Minha mãe, agarrada ao pescoço de meu pai, disse:

- Seu cagão, frouxo, medroso e covarde. Tutinho me contou toda a verdade. Esse será nosso segredo, amamos você do jeito que você é...

Talvez, nem em Hollywood, tenha-se visto um evento tão grandioso quanto aquele. Enquanto a comitiva passava, o povo gritava, jogava chapéus, flores e até camisas. Eu, com olhar de cumplicidade, dei uma piscadela para meus pais, como se dissesse, “nós merecemos”.

Desde os idos de l934, quando aconteceu esse extraordinário episódio, tenho observado no meio político de nosso país que, poucos são capazes de enfrentar os bocudos. Isso se repetiu várias vezes, ao longo dos anos. A aparição mais recente da tal criatura se deu antes de l964, se estendendo por vários anos. Mais uma vez foi preciso muitos Tutinhos e Zecas que, apesar do medo, marcaram presença. A maioria de nossa cambada, ao invés de agir, prefere ir ao velório e ao enterro das pitombas. Após os bichos dominados, aparece e é capaz de afirmar “nós estivemos lá”. Mas, nós, os tutinhos, os zecas, os juliões, candinhas e floristéias piscamos os olhos e dizemos: “conhecemos a verdade”.”

Hoje, expectadores dessa querida estação de TV e amigos presentes, moro na capital federal. Vocês não acham que, depois de enfrentar o ocorrido, estou desperdiçando o meu talento. Na verdade, eu teria que ser, no mínimo, Senador da República. Ou até, fazendo-se a justiça, chegar à Presidência da República, não é verdade?

- Tutinho, por que você não contou a verdade ao povo de Curupira, a respeito do Bocudo?

- Se contasse a verdade, meu pai seria esfolado vivo pelo prefeito e primeira dama. De mais a mais, essa mentirinha trouxe publicidade e desenvolvimento para aquela estagnada região. Se você prestar atenção, até hoje, com outros nomes, alguns de nossos políticos vivem matando bocudos para chegar ao poder.

- Tutinho, estamos deveras emocionados com tamanha coragem e franqueza. Agradeço imensamente essa sua entrevista. Tenho certeza de que seus eleitores admirarão ainda mais sua valorosa figura. Levarei ao ar a sua história, na íntegra, sem editar a matéria. Você sabe que a sua vida daria um caso mais que especial para a tv. Agradecemos em nome de nossa TV Brasil da Gente, muito obrigado mesmo! Considero encerrado o programa, eu, Givanildo Couto, o repórter louco.

Amigo Givanildo, in off, além de agradecer pela oportunidade, eu lhe informo que, em breve, lançarei um livro contando tudo. Mas, esclarecerei a todos que não será uma biografia de ninguém da minha cidade ou de qualquer outro lugar. Qualquer semelhança terá sido mera coincidência.

Tonho tavare

ANTÔNIO TAVARES
Enviado por ANTÔNIO TAVARES em 25/04/2009
Código do texto: T1559895