AS VIOLETAS AZUIS

(Herivaldo Ataíde - Setembro de 2001)

Na primeira página de quase todos os jornais, estava estampada a seguinte manchete: Perito criminalista conclui que, caso P.C. Farias, foi crime passional. O coitado foi encontrado mortinho da silva ao lado da namorada, numa casa de praia, próximo a Maceió.

Todo mundo esperava um motivo muito mais intrigante, desses que vemos no cinema americano, envolvendo milhões de dólares, cobrança de propina para liberação de verbas federais ou tráfico de qualquer coisa do tipo influencia política, drogas, lavagem de dinheiro, etc.

Desde o início se falava em corrupção ativa e passiva, desvio de dinheiro público e remanejamento de sobras de campanha, pela ligação que o morto tinha com o então presidente da república, mas eram só boatos, nada tinha sido provado, pelo menos até então.

O país inteiro estava com os olhos voltados para o nosso pequeno estado de alagoas. Era noticiário de rádios e televisões, quase o tempo todo, revirando e massacrando a pobre alma do falecido, de seus familiares e de quebra, o povo alagoano.

As mentes mais brilhantes do país tentavam desvendar aquele crime, como se ele fizesse parte de cada uma das famílias brasileiras. Havia até bolsa de apostas pra saber o motivo, quem foi o autor intelectual e o autor material do dito cujo. A coisa estava mais misteriosa que assassinato em novela das oito. Cada um tinha uma versão para a história.

Depois de tanta espera, exumação pra cá e pra lá, em busca de provas, discussões entre peritos criminalistas, policiais civis, militares e federais, testemunhas de todo tipo irmãos, filhos, amigos, empregados e etc. A notícia veio pra nos chocar. “Crime passional”. Não dava pra acreditar.

Queríamos mesmo era que se apurasse tudo de novo, mais detalhadamente para termos uma versão mais digna, daquele homem, que um dia foi o cidadão mais procurado do país.

Essa questão de crime passional não é de agora, desses tempos modernos, é de sempre. Houve um que mudou a história da humanidade. Os livros não contam, porque teve a participação do demônio no desenrolar do caso, mas tudo que acontece nos dias atuais em torno do mundo árabe, pode nos levar a crer que está ligado a esse episódio.

“O diabo era um sujeito sério e responsável”. Quem disse isso foi o velho Orestes Barbosa, que já partiu desta vida pra uma melhor, com quase oitenta anos. Se não fosse um derrame cerebral de última hora, combinado com mais dois, sofridos vinte anos antes, que havia lhe deixado o lado direito do corpo meio paralisado, e mais um câncer na bexiga, que os médicos não aconselhavam a fazer uma cirurgia de retirada, por causa do estado de seus pulmões que só funcionava com a metade de um lado, ele ainda estaria vivo, porque no resto, seu Orestes era sadio. Quando morreu, não deixou inimigos, dívidas nem fortuna, só um pequeno tesouro constituído pela esposa, três filhos, duas netas e uma pequena bisneta.

Quando criança ele ouviu do pai, o velho Ludurgério, que tinha ouvido de um velho escravo, que também tinha ouvido de sua avó, que ficou sabendo por intermédio de um índio, remanescente de uma longa linhagem de guerreiros catequizados pelos jesuítas. Contava ele que o diabo ficava com a pior parte da criação. Tente se colocar no lugar dele pra ver como é difícil conviver com tanta gente ruim, indisciplinada e cheia de direitos por anos a fio. Nem Deus com toda sua poderosa e infinita bondade agüentaria tamanha perturbação por tanto tempo.

O diabo é pintado como o ser mais cruel, mais feio e o mais ganancioso do universo. Sua feição estranha e seu mau humor vêm da dureza da vida que ele leva, mas nem sempre foi assim. Dizem que a profissão mais antiga do mundo é a prostituição, mas o diabo está ai pra provar que não. Antes mesmo de se tornar o senhor de todas as maldades, ele tinha sido padeiro. É por isso que quando passamos por alguma dificuldade, dizemos estar comendo o pão que o diabo amassou. Como o demônio é tão velho quanto a idade da terra, a profissão mais antiga do mundo é sem dúvida nenhuma a de padeiro.

As religiões se multiplicaram em todo o mundo, acompanhando o crescimento da população. Todos os dias aparecem novas seitas, novas igrejas e formas de louvar o Deus que habita nosso imaginário e satisfaz nossas necessidades diárias de fé e de um caminho a seguir. Pra que isto aconteça é preciso ter alguém em quem possamos jogar a culpa de todos os nossos pecados, as maldades e as desigualdades da vida. Como não tinha outro, só poderia ser ele, o diabo.

Sua culpa já lhe era atribuída desde a antiguidade, mas ele nem se importava com isso, pois tinha um grau de maldade aceitável para os padrões da época. Hoje ele está muito pior. Mais ambicioso, invejoso, e rancoroso que nunca, principalmente com gente de bom coração, porque são mais facilmente enganados pelas falsas paixões e promessas de amores.

As coisas não mudam em curtos espaços de tempo. Sendo assim a água bate na pedra vagarosamente até perfurá-la e dividi-la cada vez mais até que sejam apenas pequenos grãos de areia que se perdem na poeira dos tempos. Foi assim desde o início da criação e será para todo o sempre.

Certo dia deu entrada no purgatório, que é praticamente a recepção do inferno, um homem de aproximadamente uns trinta e cinco anos chamado Matias. Estava com as roupas sujas de sangue e o corpo todo moído de pancadas. Acabara de morrer a pauladas, pelas mãos de um pai enfurecido. Horas antes Matias havia matado Siloé, um jovem com menos de quinze anos, por isso veio parar ali, assim que foi morto pelo pai do rapaz. Como Matias era um bom cidadão cumpridor de seus deveres e temente a Deus não podia simplesmente entrar no inferno e ser castigado para sempre. O purgatório serve para as almas boas, que cometeram algum delito grave, se arrependerem de seus pecados e através de torturas psicológicas voltarem a trilhar o caminho do bem.

Um crime é sempre um crime para o diabo, que já estava com os olhos brilhando de felicidade ao sentir a possibilidade de levar o pobre Matias para as profundezas quentes de sua morada. Como em um júri sem advogado, só com promotor, o diabo rapidamente interrogou o homem, querendo saber os motivos da tragédia, pois tinha pressa em levar sua alma para o castigo o mais rápido possível.

Matias começou contando ao diabo que o que fez foi por paixão. A dona do seu coração, uma mulher de nome Maria Madalena, era uma criatura esplendorosa. A mais linda de toda na face da terra. Trocaria tudo que possuía para tê-la só prá si. Era capaz de atravessar todos os desertos escaldantes e os mares mais revoltos do mundo por ela. Enfrentaria até o poderoso exército romano se fosse preciso. Ela era seu raio de sol nas manhãs de inverno, sua chuva leve sobre o campo de trigo, sua lua cheia sobre as montanhas, sua constelação de estrelas. Era poder viver a cada minuto uma vida inteirinha quando estava com ela.

Ele a conheceu ha um ano, em uma taberna na Judéia, e como todos os homens que ali se encontravam, tinha se encantado no primeiro instante em que seus olhos cruzaram com os dela. Teve que brigar com quase todos eles para poder conquistá-la só pra si, e isso o fizera o homem mais feliz do mundo.

Estava ele tomando conta de suas ovelhas, quando lhe deu uma vontade imensa de ir embora mais cedo pra casa e ficar com seu amor. Quando entrou silenciosamente em casa, querendo fazer uma boa surpresa, eis que ela estava deitada abraçando aquele rapaz, que apareceu em sua cama não sabia de onde nem porquê. E foi aí que viu sua vida perder o sentido e não pensou nem duas vezes e meia, matou o moço ali mesmo em cima de sua amada. Ela conseguiu jogar o corpo de lado e saiu correndo aos gritos pelo povoado. Nem deu tempo de Matias arrumar direito suas coisas para fugir. Quando olhou pra porta da casa, lá estava o pai do rapaz com um cajado na mão a lhe bater. O primeiro golpe foi na cabeça e aí ele não viu mais nada. Quando acordou já estava na fila do purgatório, cheirando a defunto fresco.

O amor que ele tinha por aquela mulher era tamanho que o diabo se impressionou. Cada palavra que ele ia falando sobre ela, o diabo ia se enchendo de curiosidade a ponto de querer conhecê-la pessoalmente. Enquanto ouvia, o coisa ruim calculou logo que essa mulher era uma ameaça. Ninguém pode amar tanto assim alguém a não ser a Deus ou a ele, o soberano de todas as maldades. Num gesto brusco como lhe era peculiar, deu as costas, deixou o pobre infeliz falando sozinho, foi rapidamente ao inferno, deu algumas ordens para seus auxiliares e no mesmo instante tomou o rumo da Galiléia em busca de Maria madalena.

Crime passional, É isto crime passional, deduziu o diabo enquanto viajava no tempo e no espaço.

Vinte para as cinco da tarde, ele entrou numa taberna perdida no meio da poeira de Jerusalém, pois sabia por intuição e cálculos matemáticos e diabólicos, que ela estaria naquele lugar daí a poucos instantes. Ao dono do estabelecimento, se apresentou como Demóstenes, o puro. Num instante estava bebendo vinho e prometendo dias melhores aos que ali se encontravam como certos candidatos fazem em suas campanhas políticas nos dias atuais.

De repente a porta da taberna se abriu e entrou uma mulher de feições angelicais porém de corpo escultural. Imediatamente Demóstenes fez o tempo passar bem devagar só prá poder vê-la andando até o balcão em câmera lenta.

Os olhos dela encantavam como o mais puro dos diamantes. Seus cabelos brilhavam como a luz da lua refletida no mar da Galileia, onde naquele começo de noite, alguns homens pescavam com um sujeito até então desconhecido chamado Jesus. Com seus olhos vermelhos e vivos olhou-a de cima a baixo lhe medindo e pesando por todos os ângulos de seu interesse. Ao passar por ele, Demóstenes sentiu logo o mais profundo e agradável cheiro de pecado que exalava do corpo daquela mulher. Não tinha como negar era mesmo a criatura mais linda que ele tinha visto naquele mundo terreno.

Depois que falou com o taberneiro ela se virou e veio andando em sua direção. Sentou à mesa onde ele estava e lhe sorriu como quem quer se apresentar sem dizer quem é. Isso foi o bastante pra amolecer seu coração maldoso. Quando ele a olhou nos olhos, começou a sentir uma enorme palpitação no peito, a garganta seca, os olhos queimando, as mãos frias e as pernas tremendo. Precisava tomar logo alguma coisa pra se refrescar por dentro.

Quando ele se distraiu por uma fração de segundos, pedindo mais vinho ao dono da taberna, ela foi rápida e deu um beijo nele. Enfiou a língua sedosa e molhada por dentro da boca de Demóstenes sem nem querer saber da sua cara feia nem de seu bafo de enxofre azedo. Tal fato inesperado deu um revertério danado no juízo dele que o cão ficou sem chão pra pisar e caiu do banco onde estava sentado. Os homens em volta riram do acontecido, mas ele nem quis saber daqueles coitados que já estavam em sua caderneta de futuros hóspedes, pois estava ocupado em se recompor o mais rápido possível e saber o que tinha se passado com ele.

O efeito que o amor causa nas pessoas, até hoje a ciência ainda não sabe explicar ao todo, e o que aconteceu com Demóstenes foi terrível. Viu-se invadido por um sentimento doce e puro. Era uma coisa desagradável, uma sensação muito estranha que de repente o faz pensar ser uma criança pura de todas as maldades do mundo. Sentiu no coração, se é que o diabo tem um, a mesma sensação que Matias tinha descrito como paixão.

Todo veneno ou remédio não tem efeito duradouro no corpo do demônio, logo ele voltou a ser quem realmente era. Agarrou-a ela pelo braço e a arrastou para um estábulo por trás da taberna, onde dividiu seu corpo com ela entre as palhas do chão. Alguns animais que ali estavam serviram como testemunhas oculares daquela noite quente e iluminada.

Amaram-se sem parar por setenta e dois minutos e treze segundos até ele não agüentar mais e disse que era chegada a hora de partir para os seus compromissos de trabalho. Antes, porém prometeu voltar ao final de seis meses e torná-la uma rainha em um reino que não teria fim.

As mudanças da vida são sentidas no dia-a-dia, desde o raiar do sol até as últimas horas da noite. Assim que o diabo voltou daquele encontro começou a modificar o inferno. Mandou diminuir a fornalha porque o calor estava lhe incomodando. Mandou servir refeições mais fartas prá recuperar as energias, pois estava se sentindo meio magrão. Mandou trocar as cortinas dos aposentos e encomendou móveis novos para o quarto ficar mais aconchegante e confortável. Para perfumar o ambiente, importou violetas azuis e orquídeas vermelhas de um paraíso tropical, que séculos depois veio a ser descoberto e batizado de Brasil. Mandou reformar seu trono com sedas e madeiras entalhadas na china. Ficou majestoso em todos os detalhes, alguns por sinal tão pequenos que ele teve que se aproximar e apertar os olhos prá enchergá-los melhor. Ficou furioso com aquilo e jogou uma praga sobre os chineses e todos os asiáticos pra que todos ficassem com os olhos bem fechadinhos e assim se fez até hoje. Ao final de quase seis meses de trabalho tudo estava do seu gosto para receber sua futura esposa.

Os meses passaram logo e numa sexta-feira, final de mês, ele se aprontou todo pra voltar a Jerusalém porque aquele era o dia de Maria. Tomou seu banho quente como era de costume, se barbeou, aparou, lixou e lustrou os chifres, que esconderia cuidadosamente sob a vasta cabeleira, pra que ela não os visse antes do casamento. Perfumou-se com água de cheiro, vestiu seu melhor traje e colocou no bolso as alianças de compromisso que havia prometido a Madalena.

Às sete e trinta da manhã ele chegou à praça do mercado, cheio de amor pra dar. Procurou, procurou e nada. Chamou por Maria, mas nada. Gritou o mais alto que pode e mesmo assim nada dela aparecer. Saiu desesperado como quem procura uma agulha num palheiro andando por tudo quanto era beco e ainda assim nada de encontrá-la. Perguntou por ela a um aleijado e como ele não sabia de nada o Cão o fez ficar cego. Perguntou a um surdo-mudo que disse não tê-la visto por ali esses dias. Com raiva o diabo o deixou paralítico. Por fim vinha passando um doido, que se dizia um sacerdote, e sem mais nem menos olhou para o demônio e disse que ela havia se convertido dos pecados e mudado de vida depois que um tal de Jesus, em nome do Divino, lhe perdoara todos os delitos cometidos por ela, voluntariamente ou não, no decorrer de sua vida mundana. Agora ela vivia com ele, andando pelo mundo à fora ajudando os pobres, os doentes, os injustiçados e de quebra pregando o perdão sem olhar a quem, a paz e o amor puro, sem sacanagem de qualquer espécie.

A cada povoado que passavam a multidão de seguidores aumentava e ela ia na frente fazendo a propaganda dos milagres operado por esse tal de Jesus, que também se auto afirmava rei dos Judeus e filho do poderoso Deus dono de todo o universo.

O diabo ouviu tudo calado como quem não quer nada. Quando o doido terminou de falar não deu nem um minuto, já tinha virado uma estátua de pedra bem no meio da rua. Prá inaugurar a obra, passou logo um vira-lata sem a metade do pelo nas costas e mijou no pé da danada da estátua.

Nesse dia a coisa ficou preta na face da terra. O cão abriu o matulão de malvadezas e começou a jogá-las no povo. Não uma de cada vez, mas todas de uma vez só. Foi tanta desgraça que não escapou nem quem estava dormindo. Traçou logo um plano pra se vingar de Madalena de forma que ela perdesse o que mais gostava. Semeou a discórdia, a inveja, a ganância e mais um rosário de coisas ruins no meio da terra. Infernizou os sacerdotes, escribas, governantes e tudo quanto era de tribos, vilarejos e cidades. O povo não se entendia mais. Tanto fez que conseguiu incriminar Jesus, mesmo sem ter cometido crime algum, foi parar nas mãos dos guardas e levou uma surra que quase perdeu o couro. Não se dando por satisfeito, enfureceu a população de Jerusalém até que eles pediram ao governador Herodes que desse um castigo maior àquele homem. Mesmo sem querer, teve que atender ao clamor do povo e permitiu que Jesus fosse crucificado como um bandido qualquer.

Em sua mente diabólica achava que sem Jesus em seu caminho, agora podia ter sua Madalena de volta, mas eis que aconteceu a ressurreição, e ela foi uma das primeiras pessoas a falar com Jesus. Ficou com a incumbência de juntar-se aos apóstolos e pregar seus ensinamentos pelo mundo à fora. Como ela amava Jesus mais que qualquer outro, o peste do cão perdeu de novo sua amada. Dessa vez não podendo mais matá-lo resolveu intrigar o resto do mundo. Começou a partir daí uma guerra que dura até hoje. O que se vê é cristão matando mulçumanos, que matam judeus, que matam cristãos. Quanto mais se busca a paz, mais se faz a guerra naquela parte do mundo.

O pior disso tudo é saber que a desgraça da humanidade pode ter tido origem num crime passional. O diabo vive feliz da vida quando chega em sua porta um caso assim. Ele rapidamente providencia um tratamento especial a quem ousa cometer esse tipo de crime.

Herivaldo Ataíde
Enviado por Herivaldo Ataíde em 14/04/2009
Reeditado em 03/06/2009
Código do texto: T1538370
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