O Homem que morreu na véspera

O Toninho estava sentado, como fazia todos os domingos pela manhã, em sua cadeira de balanço no terraço da casa. Dali ele tinha visão privilegiada de toda rua. Vez ou outra interrompia a leitura do seu jornal para observar quem vinha subindo ou descendo pela calçada.

Tanto ele, como a Dona Zefa, sua esposa, eram pessoas muito conhecidas ali no bairro. Ele com setenta e oito anos e ela com setenta e cinco, eram, com certeza, o casal mais antigo do lugar.

O Toninho costumava bater sempre no peito quando estava numa roda de amigos e dizer em bom tom:

----Eu sou do tempo da parteira. Nasci dentro daquela casa que era dos meus pais e estou ali até hoje. E só saio dela depois de morto.

E enquanto o Toninho lia tranquilamente o seu jornal naquela manhã ensolarada de domingo, véspera de feriado, a Zefa, sentada no sofá da sala, não desgrudava os olhos da televisão, que naquele santo horário, a mais de trinta anos, não perdia de maneira alguma o programa da Inezita Barroso: “Viola minha viola”.

Já eram quase dez horas quando o Toninho largou o Jornal, espreguiçou-se em sua cadeira e chamou pela Zefa.

----Benhê!!!

Ela, que estava entretida com seu programa predileto, fingiu não ter ouvido. O Toninho chamou novamente.

----Zefa!!! Sê ta ai na sala???

----Que foi Toninho??? Já vai começar a encher o saco logo cedo!!!

----Vem cá só um pouquinho!

----Espera que o programa já está terminando!

O Toninho pegou novamente o jornal e retornou a sua leitura. Ouviu passos na calçada e esticou a cabeça através do muro para ver quem era. Avistou o Zé Nilton que vinha subindo a rua, suando em bicas, arrastando o seu carrinho de feira.

----Bom dia Toninho!

----Oi Zé, tudo bem? Já foi fazer a feira?

----É... a Vera pediu pra comprar umas frutas e um pouco de verdura.

----Ta certo, né Zé? Tem que fazer um agrado que é pra mulher ficar contente!

---- “I num é”??? --Completou o Zé Nilton dando risada.

----Você passou ali pelo bar do chulé? Perguntou o Toninho.

----Passei sim! O pessoal já ta montando as duplas de dominó!

----Vou comer alguma coisa e depois desço até lá.

----É isso ai Toninho! Daqui a pouco vou pra lá também!

A Dona Zefa veio até a porta e acenou com a mão para o Zé Nilton.

----Oi Dona Zefa! Tudo bem?

----Tudo bem Zé! E a Verinha como ta? -Perguntou Dona Zefa.

----Graças a Deus ta tudo bem Dona Zefa!

Ficaram ali proseando por mais alguns minutos até que o Zé Nilton se despediu. Antes, porém, combinou com o Toninho de jogarem de parceria no dominó.

Assim que o Zé Nilton se retirou a Dona Zefa perguntou para o Toninho o que é que ele queria.

----Dá pra você fazer um pão com omelete pra mim?

----Você sabe muito bem que estas coisas mexem com a sua pressão!

----Ahhh! Um pãozinho com ovo batido não vai matar ninguém!

A Zefa balançou a cabeça e foi para a cozinha, pois já sabia que não ia adiantar nada discutir com ele. O Toninho era mais teimoso que uma mula velha.

Lá de dentro ela gritou pra ele se a dor no peito havia passado. Ele respondeu que sim. Dona Zefa andava preocupada com o Toninho. Há mais ou menos dois dias que vinha reclamando de uma dorzinha chata na altura do peito. Marcaram uma consulta com o Cardiologista para a terça-feira na parte da tarde. Seu filho Arthur viria pegá-los conforme combinaram durante a semana para levá-los ao hospital.

Já ia começar a preparar o omelete quando o telefone tocou. Era a Margarida querendo saber se o pai havia melhorado. Ela respondeu que sim e que ele estava no terraço lendo o jornal. Antes de desligar o telefone ela mandou um beijão para os dois e combinou que passaria depois do almoço para visitá-los.

Dona Zefa pegou os ovos, cebola, tomate, cheiro verde, presunto, queijo, bacon, orégano e começou a preparar o omelete. Lá dá rua dava para sentir o cheiro. Assim que ficou pronto preparou um lanche para ela e outro para o Toninho. Arrumou a mesa e chamou por ele.

----Ta pronto Toninho!

Ela sentou-se à mesa e ficou esperando. Estranhou a sua demora. Chamou novamente.

----Ta pronto Toninho! Vem logo antes que esfrie!

Permaneceu em silêncio tentando ouvir algum ruído vindo lá do terraço. Uma quietude quase fúnebre estremeceu o seu coração. Sentiu o corpo arrepiar-se por inteiro. Dona Zefa pressentiu que alguma coisa estava errada. Levantou-se de supetão derrubando a cadeira que bateu de encontro com a parede e ficou caída junto à geladeira. Correu desesperada até o terraço e viu o Toninho esticado na cadeira de balanço com os olhos entreabertos e a cabeça pendida para o lado esquerdo. O jornal estava caído junto aos seus pés e os seus óculos jogado sobre o tapete próximo a entrada. Uma das mãos parecia comprimir o peito como se tivesse tido a intenção de arrancar de dentro do próprio corpo alguma coisa que lhe dilacerava a alma. A outra mão jazia inerte quase rente ao chão.

Dona Zefa gritou desesperada por socorro. Não demorou muito e os vizinhos se apinharam próximo ao portão para ver o que estava acontecendo. Surpreenderam-se ao ver o Toninho, em pé, gritando nervoso com a Dona Zefa.

----Sê ta ficando louca? Eu tava cochilando e você me dá um susto desses! Quase morro do coração!

----Pelo amor de Deus Toninho! Eu pensei que você tivesse morrido!

----Larga mão de ser besta mulher! E você acha que eu ia morrer antes de comer o meu omelete, e ainda por cima numa véspera de feriado?!!!

A Dona Zefa coitada, com os olhos arregalados e, ainda não refeita do susto, não sabia se chorava ou se ria.