A última vela

Novamente Marcos chegara tarde da noite naquele domingo, e como de costume estava ouvindo a mesma ladainha de sua esposa Rose. Mas, desta vez não merecia escutar tudo aquilo. Era injusto! Só por causa de um jogo de futebol no final de semana!? Depois de ter recebido tantos pontapés do adversário lá no campo horas antes, agora estava com marcação cerrada de sua esposa em casa – Marcos discorria consigo:

– “Depois de uma semana de trabalho exaustivo, nada melhor do que uma ‘pelada’ no fim de semana com os amigos”.

No domingo anterior não tinha sido diferente, tinha participado de um torneio de futebol com a rapaziada da outra vila; se bem que na verdade tirando a modéstia, o seu time era bem respeitado na região, papava quase todos os torneios que disputavam. Só que quem não gostava muito era sua esposa Rose. Ela detestava de ser dividida com o futebol. Literalmente os jogos incentivavam seu marido às comemorações depois de cada peleja avançando até altas horas, e o pior, tudo isso regado de bebidas e algumas companhias femininas. Rose assim pensava:

– “Essas bruacas de plantão, não podem ver pernas de homem! Mas com o meu marido vai ser diferente. Essa situação vai ter que mudar!”.

E lógico, o Marcos gostava de ser paparicado pelas fãs. Boa pinta, corpo atlético; nas ruas por onde passava sempre despertava desejos femininos. Era normal receber cantada e elogios:

– Marcos você estava maravilhoso naquele short. No domingo você jogou muito bem. Não quer bater bola comigo! Você tem as pernas lindas! Ah! Se eu te agarro!!!

O que Rose não compreendia, é que desde que se casou o marido nunca trouxe para casa troféu ou medalha alguma. Depois de casada ela tentou algumas vezes ir ao campo assistir o jogo do marido, só para satisfazê-lo, mas não gostou nada da experiência. Eram muitos palavrões e empurra-empurra, não compreendia tanto homem correndo atrás de uma bola. Eles chegavam a suar aos extremos, se esborrachavam ao chão, saiam de maca e logo estavam de volta ao campo, totalmente refeitos; e tinha até juiz para comprovar tudo aquilo! Realmente uma coisa de louco! Mas troféu que era bom... Nada. Nunca viu um. Pensou com ela mesma:

– “Se o Marcos trouxesse para casa os troféus que disse que o seu time ter ganhado ficaria lindo a sua estante, pois a sala bem que merecia um ornamento diferente”. Usando essa linha de raciocínio, ela deu asas aos seus planos.

No meio de semana Rose resolveu pegar pesado com o marido e propôs a ele uma troca justa. Sabia ela que Marcos adorava futebol e no final de semana seria quase a mesma rotina. Toda quinta-feira e sexta-feira havia reunião na sede do Ipanema Futebol Clube, time do coração de Marcos. Também era verdade que o Marcos jogava naquele time desde criança, seria difícil afastá-lo de lá de uma hora para outra. Era uma paixão antiga! Mas ela teria que mudar aquele quadro...

A semana percorria com ansiedade, pois o próximo ‘pega’ de domingo seria um torneio regional; reuniriam as quatro melhores equipes do arrabalde, seria uma disputa de sair fogo das chuteiras. Foram convidadas duas equipes da Vila dos Carneiros, e também a equipe do pessoal do Morro Azedo, eternos rivais. Quando se enfrentavam em campo, haja coração para agüentar; ninguém queria perder, pois a gozação seria certa.

Como de costume, na quinta-feira Marcos chegou em casa já tarde da noite. Sua esposa com toda a serventia levantou-se da cama, tascou-lhe um grande beijo, e com sorrisos largos foi esquentar a janta para o ‘maridão querido’ – coisa que dificilmente fazia. Marcos já um tanto desconfiado falou com ironia:

– Aí não vem coisa boa! Esmola de mais o santo desconfia... O que aconteceu Rose? – No que ela respondeu:

– Tá bom! Tá bom! Estou totalmente desgastada com as suas atitudes, você chega as quinta-feira e sexta-feira tarde da noite e diz que estava no clube Ipanema com os seus amigos. Você desaparece nos fins de semana e diz que estava jogando futebol. Mas eu nunca vi você chegar aqui em casa com troféu ou medalha alguma. Uma vez você chegou aqui com batom na camiseta e disse que foi uma fã que deu um ‘selinho’ de resvalo sem querer. Também não engoli aquele roxo no teu ombro, você disse que foi uma cotovelada do adversário, pelo o que sei cotovelo não tem formato de dentes. Pois bem, queria que você trouxesse para casa, uma prova concreta que estava jogando futebol mesmo!

Marcos encarou a patroa com olhar compacto e bradou:

– O que quer que eu faça para que você acredite em mim?

Rose respondeu:

– Como você diz que o seu time sempre ganha os jogos que disputa; que não perdem um jogo sequer, e o seu clube não têm mais lugar pra colocar tantos troféus, no próximo domingo, impreterivelmente traz aqui pra casa o troféu de campeão, aliás, nossa estante está precisando de uma decoração diferente. Se você não trouxer um troféu, deixará de participar dos jogos de futebol e freqüentar o Ipanema Futebol Clube por alguns meses.

Marcos sentiu-se 'quase' acuado, olhou em torno da sala e pensou que talvez desse uma bela estética um troféu ali no canto, realçando com a carranca e algumas estatuetas que ali estavam. Imaginou um troféu quase do seu tamanho, acabaria assim com as desconfianças da patroa. Iria unir o útil ao agradável. Toda vez que Rose olhasse para o canto da sala, daria mais crédito a ele, e conseqüentemente aquelas suas ‘escapadinhas’ ficariam mais fáceis. Pensando bem essa proposta seria uma boa, uma moleza, veio na hora certa. Falou concordando com a mulher:

– Tudo bem, Rose! Aceito a sua proposta, e em contrapartida se eu trouxer o troféu de campeão do torneio você pára de me pentelhar. Os dias que eu chegar tarde da noite você vai levantar com bom humor e esquentar o meu jantar, e na maioria dos fins de semana terei livre arbítrio para sair. Ah! E tem mais, nos fins de semana diminuiremos as nossas idas à casa de sua mãe. Ir à casa da jararaca só de vez em quando. Combinado?

– Mas minha mãe não tem nada a ver com isso!

– Ela entra no pacote também! Você é que sabe! É pegar ou largar. – Rose pensou bem... Decidiu.

– Combinado. Aceito! Mas não adianta mentir e comprar um troféu pra dizer que ganhou o jogo, pois ficarei sabendo depois. Se fizer isso, alguém me conta. As más línguas é que não faltam na vizinhança.

Assim feito a aposta, o casal guardou-se em seus aposentos. Na cama, um de costas para o outro, cada qual com seus pensamentos maquiavélicos. Marcos conjeturou:

– “É tudo o que eu queria, vai ser mole, mole. Vou matar vários coelhos com uma cajadada só. Tirarei sarro da cara da Rose até não querer mais!”.

E a Rose por sua vez mordeu os lábios... Pensou com os seus botões:

– “Vou ascender umas velas para os meus santos para que o time dele perca. Desta vez seguro ele em casa; conheço uma oração que é infalível!”.

A sexta-feira demorava a passar, e o pensamento no jogo de domingo era constante, seria a passagem para o paraíso, tanto para ela, como para ele.

Depois do expediente Marcos reuniu-se com uns colegas no Ipanema Futebol Clube e expôs o acontecido – a conversa que tivera com a sua esposa na noite anterior. Seria para ele um jogo de vida ou morte. Os amigos decidiram que no sábado iriam comprar o troféu para a equipe campeã, queria que o troféu fosse um dos maiores e dos mais belos da história dos torneios da região. Conversou com o dirigente do Ipanema Futebol Clube (homem prestigiado por todos) a situação que lhe foi imposta; no qual o mesmo prontificou-se a ajudar de imediato, pois Marcos além de ser ídolo do time, era um ótimo amigo.

No sábado cedo, o Clube procurou e comprou o troféu mais bonito, o maior encontrado em todas as casas de esportes. Um troféu com quase 1.80m de altura. O suntuoso brilhava ao longe, destacando bem acima da taça maior um jogador com bolas aos pés, todo majestoso e imponente; ladeado com taças pequenas e estrelas em volta de si. Um verdadeiro monumento!

Chegou o domingo, o tão esperado dia do jogo. Marcos levantou-se cedo com ansiedade pela hora do confronto, não via a hora de entrar em campo. Foi na sapateira e escolheu aquela ‘chanca’ que sempre lhe dera sorte, já tinha marcado vários gols com aquela chuteira. Ao sair de casa deu um beijo na patroa... Seu pensamento foi lá longe, como quem quer dizer:

– “Vou ganhar esta aposta, e você Rose, vai ficar a ver navios. Vai ter que me engolir! Adeus domingo na casa da sogra!”.

Rose retribuiu o beijo com cara de desdém. Logo pensou instintivamente:

– “Desta vez te prendo em casa seu espertalhão! Seus sumiços estão com os dias contados! Você só vai sair comigo. Mamãe vai adorar!”.

Lá no estádio, já no vestiário antes da partida, na preleção do treinador com os jogadores, a conversa girou em torno da aposta que Marcos fizera com a sua esposa. E o alvo daquele torneio com certeza, era aquele magnífico troféu. Criou-se até um grito de guerra entre os jogadores:

– ‘UM POR TODOS E TODOS POR UM!!!’.

Terminado o primeiro jogo e a placar foi uma moleza. A equipe do Ipanema Futebol Clube bateu o time da Vila dos Carneiros por 6X0 – cinco gols do artilheiro Marcos. Todo folgazão Marcos pensou irradiante:

– “Hoje vai ser o meu dia!”.

Marcos não se conteve e resolveu fazer acinte à Rose. Lá mesmo do vestiário pegou apressadamente o celular e ligou para a patroa com ironia:

– Alô Rose! Ganhamos o primeiro jogo e estamos na final de logo mais à tarde. Vai ser fácil, fácil! Será uma barbada! Limpa bem o canto da sala e retira aquelas samambaias velhas e secas penduradas no corredor, senão o troféu não vai passar de tão grande que ele é!

Rose retorceu o nariz, cruzou os dedos, fixou o olhar na vela acesa ante alguns santos no altar em cima da penteadeira, e murmurou baixo:

– Oxalá quê perca a final. Meus santos nunca falharam!!!

Já era quase tarde e começa a grande finalíssima. Todos os jogadores estavam tensos, mas por enquanto a sorte estava do lado de Marcos... A rede foi balançada por mais três vezes pelo artilheiro Marcos, ajudando assim o seu time a vencer o seu arquiinimigo, o rival Morro Azedo por 4X3. A alegria era geral entre todos os torcedores, principalmente os da Torcida Uniformizada Feminina do Ipanema Futebol Clube. Ao longe Marcos visualizou, todo soberbo o ‘Seu’ troféu – Seus olhos brilhavam no além com pensamentos desordenados. A galera toda gritava o seu nome, principalmente as tietes.

Na solenidade e entrega do troféu ao time campeão, todos os jogadores queriam carregar a taça, beijá-la, recompensa do esforço feito em campo. Logo depois, todos os atletas saíram em carreata em um caminhão aberto para exibir o troféu conseguido com arrojo; e conseqüentemente a salvação da aposta de Marcos. O troféu ia passando de mãos em mãos no palanque improvisado em cima do caminhão.

Enquanto isso lá na casa de Marcos, a Rose com toda a sua devoção pegou e acendeu a última vela do pacote no altar à sua frente... Apertou o seu rosário entre as mãos e continuou com suas orações...

Lá em cima do caminhão em movimento e no auge da euforia, Luizinho ponta direita do Ipanema Futebol Clube – rapaz com o corpanzil minguado, mas ágil dentro de campo – já meio grogue por algumas latas de cervejas que por ali rolava; todo feliz e banzeiro... O Luizinho quase todo dono de si, com a língua enrolada pela sua situação aparente, gritou aos companheiros:

– Me deixa levantar o troféu, que eu também mereço! Fiz dois passes lindos para o Marcos fazer os gols!

Luizinho tentou todo estabanado segurar e erguer o troféu cabeça acima, aquele grandioso que era quase duas vezes maior que o seu tamanho. Não agüentou com o peso do troféu e também prejudicado pelo balanço do caminhão em movimento, cambaleou pra cá, cambaleou prá lá, e... plaft! Os amigos ainda tentaram sem sucesso evitar o desastre... O pior... Mas tudo em vão... Caíram os dois diretos ao solo lá de cima do palanque do caminhão. O troféu todo estraçalhado em vários pedaços no asfalto, e Luizinho todo assustado, gemendo com várias escoriações pelo corpo ao lado do pneu. Um dos jogadores do Ipanema, no ímpeto da queda do troféu, ainda conseguiu agarrar um pedaço que bateu na ponta da carroceria antes de cair todo ele no chão – um caco, uma imitação do que era uma estrela sendo erguida por um boneco em suas mãos. Foi o que sobrou do magnífico troféu, que até minutos antes era a honra de Marcos e de todos os jogadores.

Todos olharam para Marcos quase que ao mesmo tempo. Com certeza todos eles com o mesmo pensamento:

– “Ficariam sem o seu artilheiro e ídolo do Ipanema Futebol Clube, por muito tempo fora dos gramados”.

Marcos pensou em Rose totalmente desolado:

– “Adeus gramados! Adeus Ipanema! Adeus liberdade!”.

E o pior de tudo é que o Marcos detestava a macarronada da sogra, e teria que visitar e suportar a bruaca por longos e longos péssimos meses.

Marcos Antony
Enviado por Marcos Antony em 01/04/2009
Reeditado em 06/04/2009
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