E assim descobriu-se a catalepsia
O Agenor não agüentava mais, já estava cansado. Tinha que colocar um fim naquela situação. Sobe o rio remando, desce o rio remando. E se ao menos a canoa estivesse vazia tudo bem, mas o corpo daquela velha parece que pesava toneladas. Lembrava-se da primeira vez que isso acontecera, não fazia muito tempo...
Lá no vilarejo Ribeirinho onde morava, havia uma senhora de nome Maricota, uma anciã avançada na idade e no peso também. Até então ela gozava de boa saúde. Certo fim de semana estava todo o arrabalde reunido no salão da pequena capela para mais uma quermesse. No melhor da festa apareceu o Ananias correndo todo afobado.
– Sua benção seu Vigário. Mandaram avisar pro senhor que a Dona Maricota faleceu.
A notícia pegou todos que ali estavam de surpresa, pois a dona Maricota até então não aparentava doença alguma, foi tudo tão de repente. Naquele momento foi um alarido geral. Com a notícia macabra o pároco da capela resolveu parar com o jogo de bingo e a cantoria de música sertaneja que animava a quermesse.
Algumas pessoas que ali estavam se divertindo ficaram tristes com a trágica notícia, outras reclamaram que não precisava cessar a quermesse pelo acontecido. O João Cana Brava, encostado ao balcão improvisado de madeira, levando um copo de aguardente à boca, reclamou:
– Pra que terminar o baile? Aquela velha gorda já tava fazendo hora extra mesmo!
O rapaz que vendia bebida atrás do balcão o repreendeu.
– Não fala isso não, João! Porque do jeito que você está bebendo, qualquer hora quem vai ficar de barriga pra cima no pano branco é você!
– Vira essa boca pra lá, home!
As vizinhanças e os parentes aos poucos foram chegando à casa da dona Maricota. O Vigário tentou confortar o viúvo, seu Felício, que se encontrava em prantos, pois não havia mais nada a fazer. Pela maneira que falaram que ela morreu, a coitada tinha sofrido um ataque cardíaco. O negócio agora era velar o corpo por ali mesmo e levar para ser enterrado na cidade mais próxima. E, é aí que a coisa se complicava. O vilarejo Ribeirinho onde moravam ficava há léguas de distância do cemitério mais próximo, não havia estrada de rodagem até lá, e a única via de transporte que se chegava por ali era a fluvial, em canoas. Subiam remando transportando os defuntos rio acima, para enterrar os moradores que ali faleciam.
A noite correu quase que tranqüila no velório da finada Maricota, a não ser pelo choro de uns e de outros. Umas lágrimas verdadeiras e falsas aqui, outras derramadas acolá por uns na comoção de ver o outro do lado chorando.
E lá vem o João Cana Brava cambaleando entrando no guardamento. Pára. Olha pra defunta ali vestida com um vestido de chita florido e com as mãos cruzadas sobre o peito em cima da mesa de madeira. Benze-se. Achega-se para o viúvo e fala com a língua toda mole e enrolada:
– Seu Felício, essa mulher era muito boa, igual a ela o senhor não encontra nunca mais... Olha! Por acaso o senhor não tem por aí um vinho pra gente passar a noite?
– Por favor, Cana Brava! Vê se respeita a finada! Pra você só vai ser servido café amargo, pra ver se você sara! – Repreendeu um dos familiares da finada.
Estava amanhecendo o dia e era hora de alguém se prontificar em levar o corpo para ser enterrado. Procura um aqui, procura outro ali, e todos davam uma desculpa. –‘Eu tenho que fazer isso’. –‘Pra mim não vai dar’. E como de costume sobrou pro Agenor e seu compadre Dorival. Eram eles que quase sempre baldeavam os corpos rio acima em suas canoas. O Vigário da capela depositava confiança total nos dois, pois além de serem caboclos fiéis da comunidade, eram homens viris e fortes fisicamente.
Embarcaram o corpo da finada Maricota na canoa enrolando-a apenas por um lençol branco. O Agenor ia remando na proa e o Dorival na popa.
Visualizava-se lá em cima da barranca os últimos acenos feitos em homenagens póstumas a dona Maricota e as tantas pétalas de flores jogadas nas águas caudalosa do rio.
Os dois compadres saíram com o sol raiar, já que a viagem seria cansativa. O Agenor evitava olhar para o corpo enrolado no lençol, pois tinha certo receio de defuntos. O sol do meio dia estava a pino e os dois estavam cansados de tanto remar, quando finalmente faltavam poucas curvas de rio pra chegar à cidade destino. De repente o susto! O lençol que estava ali no meio da canoa começou a se mexer, e o corpo da finada Maricota aos poucos foi se desfazendo daquele embrulho e sentou-se no meio da canoa. O Agenor parou de remar, entrou em pânico e quase se jogou n’água. A defunta dona Maricota, que até tão pouco tempo estava morta, balbuciou:
– O que estou fazendo aqui enrolada nesse pano branco no meio do rio?
O Dorival que era o de mais idade e sereno, ainda pasmo respondeu.
– Dona Maricota, a senhora estava morta desde ontem. Íamos enterrar a senhora, mas ainda bem quem está viva. Glória, glória!
– Eu morta! Que brincadeira é essa! Vejam estou me mexendo, estou vivinha da silva!
– É mesmo a senhora está mais viva do que nunca! – falou o Agenor.
– Foi por pouco que não enterramos a senhora... Faltavam só poucas curvas! Mas tudo bem, vamos voltar pra vila, que daqui até lá é bem longe e estamos cansados de tanto remar, foram muitas cachoeiras pra chegar até aqui. Vamos voltar compadre Dorival!
E lá vão os três retornando rio abaixo sob aquele sol escaldante; e a dona Maricota ali, toda viva cantarolando sentada no meio da canoa.
Chegando ao vilarejo o alvoroço foi imediato. Não estavam acreditando no que estavam vendo, a dona Maricota ali de pé toda inteira e saudável. De longe o João Cana Brava com um litro de pinga debaixo do sovaco falou pro colega.
– Essas cachaças estragadas que estou tomando estão me fazendo mal... Estou vendo assombração... Eu juro que tomei café no velório dela! Eu tenho que parar de beber!
E logo a notícia se espalhou pela vila. O seu Felício todo contente agradeceu ao Agenor e ao Dorival por todo o sacrifício feito. Mandou avisar para todos que para comemorar a ressurreição da esposa, iria fazer uma grande festa em sua casa.
No sábado estavam todos dançando, comendo e bebendo alegres na casa da dona Maricota. O Pároco comentou com ela e outras devotas que aquilo era um milagre divino. Lá pelas tantas da noite a dona Maricota grita lá da cozinha e cablum! pro chão. Caiu duro de barriga pra cima e com os olhos semicerrados. Foi mais um desespero. Pelo jeito a dona Maricota tinha sofrido outro enfarto fulminante. Tentaram reanimá-la, mas nada de retornar à vida. Ela estava morta.
Providenciaram e fizeram o velório da Dona Maricota o mais rápido possível pra não haver tanto constrangimento entre os familiares. E de lá mesmo já começaram a escolher quem iria levar o corpo da defunta para ser enterrado na cidade; e como d’antes, devido a viagem ser bem longa e cansativa todos se esquivaram e foram saindo de fininho. Coube ao Pároco da Capela com toda a sua sutileza e paciência, conseguir convencer mais uma vez o Agenor e o Dorival a fazer mais essa boa ação.
– Meus filhos! Quem faz um favor desses, está ajuntando tesouros no céu! Vocês são muitos bondosos e só tem a ganhar com essa grande caridade. Deus que abençoe vocês!
Logo de manhã cedo embarcaram o defunto da dona Maricota enrolado num lençol branco sobre uma tábua no meio da canoa e começaram a viagem fúnebre rio acima. Agora estava consumado! Finalmente iriam enterrar a dona Maricota e a sua alma iria descansar em paz.
– Essa velha deveria ter muitos pecados... Até pra morrer foi difícil! Tá pesada pra caramba! – Comentou o Agenor.
– Não é não. É que ela é gorda mesmo! – Disse o Dorival.
A cada corredeira que transpassavam a canoa parece que ficava mais e mais pesada. As varas dos remos chegavam a envergar com a força do impulso exercido sobre elas nas águas.
– Mais uma viagem dessas e nós não agüentamos. Não pode morrer mais ninguém lá na vila por um bom tempo, senão quem vai morrer de cansado serão nós dois compadre!
– O senhor tem toda a razão compadre. Sempre sobra pra nós!
Faltando um pequeno trecho para chegar à cidade e enfim enterrar a finada, ouviram um gemido vindo do lençol ali enrolado em cima da tábua. Eles não estavam acreditando. A defunta estava se mexendo e tossia com certa dificuldade. Ela começou a retirar a bandagem que a prendia do lençol e com nítida deficiência começou a querer se levantar.
– Compadre do céu! Eu não acredito! Essa velha ainda está viva? – Disse o Dorival.
O Agenor exausto, suado de tanto remar falou para o Dorival.
– Dessa vez a gente não vai voltar com ela mais não! É muito longe pra voltar com essa velha tão pesada!
Um olhou pro outro como que pedindo consentimento para tomar tal decisão. Quando a ex-defunta Maricota tentava se equilibrar para ficar sentada, apoiando as mãos na beira da canoa, o Agenor pegou a vara de remo e desfechou um só golpe na cabeça da dona Maricota que estava ressuscitando. Foi uma pancada certeira no crânio da velhinha que ela desfaleceu na hora. – O Agenor sorrindo sarcástico ainda disse.
– Se ela não morreu do coração, agora sim ela morreu de cacetada na cabeça! Agora ela está morta de verdade... Essa não nos dá mais trabalho. Podemos enterrar ela com toda a segurança e sem problema algum.
Seguiram viagem e enterraram a dona Maricota no cemitério da cidade e voltaram rio abaixo com a satisfação de missão cumprida.