O urubu malandro
Em uma manhã de verão encontraram-se em um descampado, próximo a um riacho de águas calmas e cristalinas, o Compadre Urubu e o compadre Gavião. Uma doce brisa vinda do norte resvalava no rosto de ambos acariciando suas plumagens.
O Compadre Urubu, revestido como sempre da mais nobre humildade, baixou a cabeça formalmente e cumprimentou o Compadre Gavião. Este, porém, prepotente e arrogante como sempre, manteve-se de cabeça erguida e, olhando apenas com o canto dos olhos, respondeu ao cumprimento com um tremendo pouco caso. Permaneceram em silêncio por alguns minutos até que o Compadre Urubu resolveu tomar a iniciativa e puxou um dedinho de prosa.
----Há dias que não chove e por isso, para muitos animais, a vida está se tornando cada vez mais difícil. --Argumentou o Compadre Urubu.
----Oras, para quem vive da desgraça alheia como você, isso tudo com certeza deve estar parecendo um paraíso! --Respondeu o Compadre Gavião.
----Não entendi Compadre? O que o senhor está querendo insinuar com isso? --Indagou o Compadre Urubu.
----Oras bolas! O senhor sabe muito bem do que estou falando!
----Não, não sei não! Gostaria que o Compadre Gavião se explicasse melhor!
----Pois vou clarear sua mente então! –Vociferou prepotentimente o Compadre Gavião- Se a vida ficar difícil por aqui é evidente que muitos animais morrerão, e como o senhor não passa de um animal imundo que se farta de carniça fedorenta, toda essa desgraça será para você um verdadeiro paraíso!
----Aí é que o senhor se engana! Se pensa que eu acho isso tudo maravilhoso está completamente equivocado! Não acho graça nenhuma em ver nossos irmãozinhos morrerem a míngua.
Quanto a comer seus restos mortais eu apenas cumpro a minha missão. É uma tarefa que Deus me incumbiu e eu a cumpro com dignidade e sem nunca reclamar. Além do mais você também se alimenta de outros animais, por isso não vejo razão alguma para criticar-me.
----Só que eu não como carne fedorenta, eu só como carne fresquinha! Respondeu o Compadre Gavião com ares de superioridade.
----Olha Compadre Gavião, eu não estou a fim de discutir com o senhor! É melhor a gente parar por aqui e continuarmos amigo como sempre fomos, pois na realidade precisamos nos ajudar mutuamente.
----Ajuda sua? Cruz credo! Tomaras que eu nunca precise da ajuda de um sujeito porco como você que se farta de comida podre! --Respondeu o Compadre Gavião com seu sorriso debochante.
O Compadre Urubu preferiu ficar quieto a seu canto a ter que aturar a língua afiada do Compadre Gavião.
Passados alguns minutos o Compadre Gavião, que não perdia um só movimento ao seu redor, avistou uma indefesa e desavisada pomba cruzar mansamente o céu não muito longe dali. Posicionou-se rapidamente e saiu em perseguição ao pobre animal. A pomba, ao perceber que estava sendo atacada, desceu em vôo rasante e se enfiou pelo meio de um espinheiro com o Compadre Gavião em seus calcanhares. A pomba por ser bem menor conseguiu sair do outro lado, ao contrário do gavião que se enroscou todo no espinheiro e ficou preso por um galho que lhe atravessou o corpo quase na altura do peito. O pobre gavião, que até a poucos minutos atrás se mostrara tão prepotente e tão dono de si, clamava agora por socorro.
O urubu ao ouvir os gritos voou rapidamente e aproximou-se do espinheiro onde o pobre gavião havia ficado preso. Assim que o gavião o avistou começou a implorar por ajuda.
----Socorro! Socorro! Por favor, Compadre Urubu, me tire daqui!
O Compadre Urubu olhou com indiferença nos olhos do Compadre Gavião, deu um sorrisinho malandro com o canto da boca, sentou-se calmamente a sombra de uma frondosa árvore e respondeu mansamente:
----Calma Compadre Gavião... não se afobe não! Eu vou tirar o senhor daí sim viu! Eu não tenho pressa nenhuma. Assim que o senhor começar a feder... eu vos tiro daí, tá bom!
E enquanto o pobre gavião, completamente inerte e de cabeça baixa, acalentava o agonizante sono da morte, o urubu indiferente a tudo aquilo olhou-o com o canto dos olhos, se ajeitou sobre a relva seca e cantarolou, em tom de deboche, um samba cadenciado de Noel:
--Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do céu que palpite infeliz!