O ARAUTO

A folha pequena, colhida em uma das muitas árvores que margeavam as ruas da cidade, era cuidadosamente enrolada com uma técnica própria, levada aos lábios numa posição que, combinando os movimentos da língua e o gesto de assoprar (os músicos da modalidade sabem do que estou falando), produzia um som característico, como uma flauta, ou um assovio, bastante pitoresco.

As melodias, invariavelmente reproduziam os cânticos e hinos religiosos cantados nas igrejas católicas (...”O meu coração é só de Jesus, a minha alegria é a Santa Cruz”...).

A cesta confeccionada em bambú, de formato comprido, grande, sustentada pelos braços dobrados na altura dos cotovelos, transportava verduras e legumes, consignados de hortas domésticas que ele vendia à população.

As vestes, quase sempre em frangalhos, combinavam pobremente com calçados desprovidos dos solados necessários para as caminhadas diárias.

Estes trajes sofriam alterações quando ocorria algum falecimento na cidade, no lugar deles surgia um velho paletó, já sem o colorido original, calças um pouco melhores que as de sempre, um longo trapo tentando imitar uma gravata amarrado ao pescoço, os sapatos eram os mesmos, um pouco mais limpos talvez.

Todo e qualquer velório merecia tal atenção, e ele não se fazia ausente à nenhum , desde que tomasse conhecimento do mesmo;

Na verdade sabia de todos, como se contasse com uma poderosa e especializada rede de informações funestas.

Conta-se, que um dia, após a notícia de que havia morrido uma pessoa muito conhecida na cidade, o nosso personagem, após envergar o traje próprio para tais ocasiões, dirigiu-se ao local do velório, como sempre fazia , afim de pernoitar alí até o amanhecer.

Os procedimentos seguiam normais até a madrugada, com pessoas choramingando, outras se empenhando em distribuir os cafézinhos e biscoitos aos presentes , e ele procurando aqueles que serviam as “cachacinhas” nos cômodos periféricos à sala principal, onde jazia o corpo dentro da urna, coberto de flores.

Lá pelas tantas, de repente, eis que o “defunto” suspira, se levanta assentando-se no caixão, um ramo de flores pendendo agarrado em uma de suas orelhas, um chumaço de algodão fechando-lhe uma das narinas e o olhar estupefato, intrigado, sem entender nada do que estava acontecendo, girando atordoado, observando o ambiente... (descobriu-se no dia seguinte que o “pretenso defunto” sofria de um mal, que nas crises, provocava uma reação, com todos os sintomas aparentes de uma morte verdadeira, embora passageiros).

Uma descontrolada balbúrdia e caos se instalaram, com gritos, correrias, castiçais ao chão, velas pisoteadas, e o nosso piedoso “arauto” lançado pela janela , estatelando-se sobre um jardim em frente à casa, bem no meio de um canteiro de plantas popularmente chamadas de “Coroas de Cristo”, cujas folhas vermelhas decorativas têm como companhia centenas de espinhos, longos e ponteagudos, providos de seiva esbranquiçada, tóxica e altamente urticante, que provocam sérias lesões ao ferir alguém, o que o levou a ser internado, no hospital da cidade, para os devidos cuidados médicos, durante um longo período.

Tempos depois o cidadão “ex-defunto” faleceu de verdade, morte verdadeiramente "morrida" e comprovada pelos médicos, já experimentados com os acontecimentos passados.

Alguém, vendo o nosso “verdureiro papa-defuntos”, tranquilamente trabalhando nas ruas, e sem os trajes especiais para aqueles eventos, curiosamente perguntou-o se ele não iria participar daquele velório.

A resposta dele, firme e decidida deixou tudo muito bem explicadinho:

- “Da última vez que esse homem morreu, eu fui jogado pela janela, ao cair gritei meu ‘Jesus Cristo’, e ‘Ele’, prá me ajudar, forrou o chão com suas coroas... e eu me lasquei todo!!!

Enterro desse “defunto mentiroso”... nunca mais...cruz credo!!!

Um grande abraço a todos e até a próxima,