O sineiro da Imaculada 
                                                       Prólogo
Conduzirás às portas da cidade o homem ou a mulher
 que cometeu adultério e os apedrejarás até que morram.” Dt. 12;24
                                                           
    Naquele tempo, no ano da graça de 1938, quando estas coisas aconteceram naquela cidadezinha colonizada em fins do Século XIX por imigrantes italianos, a festa em honra à padroeira durava oito dias. E o ponto alto era a novena em honra à Imaculada, seguida da tradicional quermesse na praça da igreja, onde aconteciam os festejo populares com cantos, danças folclóricas e comidas típicas que relembravam a pátria distante: – e tudo mais que permitia uma festa de cunho religioso.
     E o protagonista desta história foi o sineiro da matriz que, embora tivesse recebido no batismo o nome pomposo de Humberto Primo Rè D’Italia, era mais conhecido como Bertin Sineiro, apelido pelo qual os paroquianos carinhosamente o chamavam.
 
                                                <<<{:}>>>
 
     Contrariando o que dizem as escrituras que “no princípio era o verbo”, Bertin viera ao mundo há uns dezoito anos antes destes acontecimentos sem ter sido anunciado ou prenunciado, pois fora encontrado pela doméstica no jardim da Casa Canônica, numa cestinha à moda Moisés, em manhã agônica de agosto, embrulhado em muita lã para suportar o frio do inclemente inverno sulino. Sem outra identidade de origem o menino trazia como únicos documentos uma garganta potente e fortes pulmões, o que poderia pressagiar um futuro membro do coro da irmandade, ou talvez um brilhante pregador, um tribuno sacro, ou um clérigo famoso. Por isso o enjeitado foi recolhido com muito carinho pelo pároco. Porém as irmãs de caridade do Sagrado Coração, colégio fronteiro à Casa Canônica, exultaram com o achado e tiveram importante participação na criação do menino. Principalmente nos primeiros anos. E dessa forma ele sobreviveu, cresceu e fez-se moço entre o carinho das madres e a disciplina agostiniana dos padres.
    Entretanto, sua chegada, que no princípio parecia ser portadora de uma mensagem de boa nova e de paz entre os homens e mulheres de boa vontade, quase cria um cisma entre o pároco e as monjas. Foi para a escolha do nome. As irmãs do Sagrado Coração correram a consultar o almanaque para verificar qual seria o santo do dia, pois lhes parecera não haver nada mais justo do que batizar aquele “enviado dos céus” com o onomástico respectivo. Depois de alguma procura chegaram ao dia 3 de agosto de 1920 - Dia de São Godofredo.
 – Eis aqui o nome deste servo do Senhor. Ele se chamará Godofredo – propôs a Madre Superiora, com ares de quem tem autoridade para isso, devido à função que exercia na comunidade religiosa.
     Porém Pe. Ambrósio, o velho pároco da Imaculada, imigrante italiano, não gostou dos termos impositivos da madre. E argumentando que aquele nome lhe parecia muito nórdico, cheirando a protestante, vetou-o com um sonoro “No!”. E sem delongas, numa deslavada alusão ao soberano italiano que reinava na Itália quando ele, Padre Ambrósio, viera ao Brasil prestar assistência religiosa aos imigrantes, misturando algumas expressões de sua língua pátria com português carregado de sotaque, decretou:.
  – Ecco! Humberto Primo! – Cosi lui già diventa com nome e sobrenome: Humberto Primo Rè D’Itália. Pronto!
    As irmãs do Sagrado Coração, que já conheciam o significado daquele “pronto!” não discutiram com a autoridade máxima da paróquia. Roma loccuta, causa finita. Torceram os narizes por uns dias, mas depois, em respeito ao sagrado voto de obediência conformaram-se e, entoando hinos de louvor aos céus, assumiram atarefa um tanto trabalhosa de criar Humberto Primo. Ou simplesmente Bertin, como logo o apelidaram.
    Como já nas primeiras letras ele demonstrara poucos pendores aos estudos – caso contrário teria sido encaminhado ao seminário – foi ficando por ali gravitando ao redor da paróquia entre o colégio e a sacristia.
     Passado alguns anos, Don Ottone, outro padre italiano que viera substituir o velho Pe. Ambrósio, que fora honrado com título eclesiástico de monsenhor, e por isso removido para a sede da Diocese, encontrou Humberto Primo já rapazinho, com quinze anos, repetindo pela terceira vez o 2º livro. Sempre taciturno, de poucas palavras e de pouca ou nenhuma brincadeira típica da idade, não progredia nos estudos. As irmãs explicavam:
  – Ele pegou frio na moleira quando pequeno. Por isso não aprende. Ficou com o miolo duro.
    Vai então que devido às dificuldades de aprendizado as madres o encaminharam aos afazeres mais simples da paróquia. Tocar os sinos, por exemplo. O toque de finados, o Angellus ou de missas solenes. Quanto à função de coroinha, só em missas simples, pois nas solenes, ele era um solene fracasso. Distraía-se facilmente. E além do mais, naquele tempo as missas eram rezadas em latim. E como ele desconhecia completamente o idioma não raro trocava os textos. Quando tinha que responder: ora pro nobis, saía-se com um orate frater. E nunca acertava as ladainhas.
    Contudo a tarefa que ele desempenhava com a maior devoção era a de acompanhar Don Ottone na assistência aos moribundos. Seguindo a alguns passos atrás do padre, conduzindo o viático, a água benta e os santos óleos para a extrema unção, o fazia muito compenetrado com a certeza de que estava ajudando a livrar a alma do moribundo do fogo do inferno. Fogo que ele tanto temia. Pois tremia só em ouvir Don Ottone do alto do púlpito execrar as almas dos pecadores com seus anátemas destruidores, em seus sermões dominicais,
    Além destas funções, Bertin também aprendera a limpar a igreja após as missas, não deixar faltar água benta nas pias que ficavam à entrada do adro, tirar teias de aranha das imagens dos santos, limpar os castiçais recolhendo os excessos de cera para as irmãs confeccionarem novas velas, e tirar o pó dos confessionários.       
    Havia também os sinos... Ah! Os sinos!... Eram dois, cada um com uma nota distinta. Um grave e pesadão e o outro plangente e alegre. Abaixo de Deus e da Virgem Maria eram as maiores devoções do sineiro da Imaculada. Ninguém sabia tangê-los com tanta graça e harmonia. Conhecia o balanço de suas cordas. Diziam até que enquanto os tangia falava com eles e através das badaladas fazia-os falar.     Pelo menos aos paroquianos assim parecia. Havia o toque para missa solene. Outro para missa comum, noveneira,  e o toque dos finados. E neste último havia diferença entre toque de defunto rico e toque de defunto pobre.
    Mas deixa estar que certa feita por causa dos sinos, Bertin mantivera uma rusga com um frade franciscano – um missionário que de tempos em tempos vinha à cidade pregar as Santas Missões. Pois não é que o religioso tinha a mania, conforme apregoava em seus sermões, de “proteger as avezinhas do Senhor?” E foi daí que certa feita, ao surpreender o sineiro de funda em punho tentando matar a pedradas as corujas que moravam no campanário, o frei barbudo passou-lhe uma descompostura em regra, acompanhada de um sermão:
    – Não sabes que os pássaros são criaturinhas protegidas por Deus, pois fazem parte da obra da criação? Matar passarinhos é pecado mortal. O castigo é o fogo do inferno. Não façais mais isso – ameaçou, o franciscano.
 Betinho não se conteve. E sem fitar o interlocutor, retrucou:
   – Coruja não é passarinho.
   – Mas é a mesma coisa, filho. Coruja também é ave e merece nosso respeito. E que mal elas lhe fazem?
   O sineiro, desta vez fitando o frei com um olhar faiscante, respondeu:
   – Então mande eles não sujarem de bosta meus sinos.
    Felizmente a coisa parou por aí, pois o prelado entendera que o sineiro tinha certa dose de razão, pois outro dia tivera ocasião de presenciá-lo no alto da torre, de punho cerrado e erguido para fora das seteiras, esbravejando: – Eu te mato! Eu te mato! Estrupício! - contra os pássaros que voavam em círculos, gritando espavoridos. Então concluiu que subir todas as semanas a extensa escadaria em caracol com seus 82 degraus para limpar os sinos dos excrementos dos pássaros, era um sacrifício que o redimia qualquer tipo de pecado. Por isso absolveu-o. Enquanto isso, os transeuntes que passavam na rua, ao assistirem o sineiro esbravejando, de punho cerrado sobressaindo da torre cercada de seres esvoaçantes que gritavam estridentes, paravam, benziam-se e exclamavam:
  – Pobre Bertin. Está ficando doido de tanto tocar esses benditos sinos.
  – Isso é reza demais. – juramentava outro.
  – Não sei. Acho que isso começou depois que ele casou – fuxicava um terceiro.
     Porém, do alto da torre de alvenaria, limpando seus queridos sinos, Bertin não ouvia os impropérios e as invencionices do povo lá em baixo. Ali ele se sentia mais perto de Deus, pois considerava-se muito bem casado com Ninela Marenghi. 

                                              <<<{:}>>>
 
    Acontecera que o rapaz, que crescera circulando entre as colunatas do colégio, as ilibadas escadarias da igreja e a atmosfera incensada da sacristia, quando chegou à idade de casar e não demonstrando inclinação para isso o padre começou a ficar preocupado. Principalmente ao notar que ele gostava de andar escondido pelos cantos, ora na sacristia ou no alto da torre, ora no quarto de dormir, mesmo durante o dia, o bom padre achou que era hora de proporcionar os meios para o rapaz assumir a segunda vocação que Deus deu ao homem, além do sacerdócio: o casamento. No princípio Don Ottone custou a entender por que o rapaz demonstrava tanta aversão, sempre que ele tocava no assunto:
  – Casar pra que, Don Ottone. Tá bom assim – desconversava o sineiro.
  – Meu filho. Quem disse foi o Senhor, nosso Criador, quando fez o mundo: Crescei e multiplicai-vos. E esse “multiplicai-vos” significa casar, procriar. Já que tua vocação não é o sacerdócio, deves procurar uma boa moça para casar – insistia o padre, já percebendo as necessidades naturais de um rapaz saudável e bem nutrido. E entre as possíveis candidatas, Don Ottone destacou uma que lhe parecia preencher os requisitos: Ninela, filha de Beppi Marenghi, destacado fabriqueiro da Irmandade Santa Juliana,  moça que, além de virtuosa e prendada demonstrava através de lânguidos olhares que nutria simpatia pelo rapaz . Por isso, já convencido que fizera uma avaliação correta, Don Ottone foi à procura da moça para anunciar-lhe a boa nova e incentivá-la a procurar o rapaz. 
 
                                            <<<{:}>>>
 
     Naquele tempo disse Humberto Primo Rè D’Itália, pensando em voz alta, enquanto se dirigia à torre para tocar os sinos a fim de chamar os fiéis para a novena de Santo Antonio.
 – Essa Ninela, filha de Beppi Marenghi, anda meio esquisita. Parece que está sempre à espreita. Uma vez encontro-a altas horas da noite, se banhando na esguicho do jardim. Outro dia ela estava implorando à Madre Superiora, um pouco de óleo de mirra, dizendo que era para uma simpatia. Outra noite ela veio ao meu quarto erguer minhas cobertas, tentando se abrigar aos meus pés. Que diabo há com ela? – indavaga-se o sacristão, desconfiado, tentando entender onde ela queria chegar, quando de repente lembrou-se que já ouvira histórias semelhantes. Onde? Sim, sim. Foi nas aulas de História Sagrada da Irmã Rosalva. Nas histórias de Betsabé, a mulher de Urias, o hiteu, com o rei David. De Ruth e Booz e de Ester com e o rei Assuero. Então, após ligar as atitudes de Ninela com as histórias que ouvira no catecismo, principiou a entender.
     Porém o resultado de tudo isso foi que a partir daí, ele começou a notar que a Ninela não era só aquela imagem que rezava o terço, que cantava no coro, e que assistia às missas a seu lado. De repente descobriu que Ninela Marenghi, era moça, bonita e era enfim: mulher.
    Daí em diante os fatos se precipitaram céleres: o sacristão esqueceu seu lado ranzinza. Ficou mais lépido. A Madre Superiora já havia recomendado às irmãs que cantassem uma novena em louvor a Santo Antônio, para pagar uma promessa. Don Ottone, com a consciência tranqüila do dever cumprido, oficiava a novena com uma devoção incomum. E logo a seguir, por sugestão da Madre Superiora, com o Nihil Obstat do pároco, foi escolhida a Festa da Epifania para a realização das bodas. A figura dos Três Reis Magos, com suas dádivas: ouro, incenso e mirra, ou a nobreza, a santidade e a submissão eram bons augúrios para um casamento feliz e duradouro. Após as cerimônias os jovens  forami morar num quartinho aos fundos da Canônica, preparado adredemente. Ninela passou a trabalhar como doméstica na própria casa. E Betinho Sineiro continuou sua vida, dedicado ao seu principal afazer: tanger os sinos da matriz.
    Após um casamento tão intensamente abençoado, parecia que a vida das pessoas que gravitavam ao redor da paróquia, entrara em estado de graça, num clima de paz canonizada. E que assim transcorreria para todo o sempre até o fim dos tempos.
    Depois de decorridos os dois primeiros anos, se Humberto Primo e Ninela Marenghi Primo não geraram, creditavam à vontade divina e tocavam o barco por sobre as ondas de uma vida mansa. Porém cada um remava num rumo diferente. Ninela procurando por todos os meios sair do gineceu e entrar no palácio do rei, porém, para seu desencanto, quase sempre encontrava a porta fechada.
 
                                           <<<{:}>>>

 
    Porém os tempos eram chegados. Um dia, o oitavo da novena da padroeira, lá pela meia-tarde, Bertin estava arrumando a igreja para a missa de encerramento, quando o desígnio irreverente preparou-lhe a peça fundamental de sua desdita.
Acontecera que após limpar o adro, as laterais da nave, os altares, os nichos das imagens, e por fim, ao tirar o pó do confessionário, cansado da labuta, deixou-se invadir por uma tentação de descansar um pouco ali dentro. E foi então que, recostado nas almofadas macias, embalado pela a atmosfera tépida e obscurecida que reinava naquele ambiente, sem se aperceber ele entregou sua mente ao anjo da guarda. E dormiu como sabem as almas inocentes. Fora um soninho só. Não muito longo, mas um sono dos justos, até começar a perceber um murmúrio, a princípio ininteligível para sua mente semi-desperta. Eram sussurros e cicios de alguém a se lamentar e implorar perdão e pedir a bênção: “Por que pequei... que pequei”. De repente... Deus meu!... ele se apercebia, agora mais desperto, que estava ouvindo as confissões dos paroquianos.
      Acontecera que, enquanto dormia, chegada a hora das confissões, e os fiéis crendo que a pessoa que estava ali dentro fosse o pároco, foram se achegando e descarregando confiantes, o peso de suas consciências.
– Padre, dai-me vossa bênção porque pequei – e ele, o pobre diabo, digo, o sacristão, sem saber o que fazer, pois àquelas alturas denunciar-se seria um escândalo maior, mesmo porque ele não sabia a quantas almas já ouvira, foi se deixando ficar.
     Um tanto perturbado com o inusitado da situação, a única coisa que atinou fazer foi fingir-se de confessor e ir resmungando a meia voz o que aprendera com Don Ottone: – Ego absolvo te - e deitar-lhes penitências. – Dois padre-nossos. Três ave-marias.
       E quanto mais ouvia o desfilar dos pecadores mais se escandalizava. “Mundo perdido! Pior que Sodoma e Gomorra. Que povo pecador! Quanto adultério!?”–pensava, enquanto observava através da janelinha telada, que lhe permitia ver quem estava lá fora, enquanto os fiéis pecadores não percebiam quem estava cá dentro –ele assistia o desfilar de personagens conhecidos.
     Da alma arrependida do prefeito, ouviu que aquela piedosa doação que ele fizera, entre pompas e glórias, para doar um o novo altar-mor e pagar a nova pintura da igreja para a celebração do jubileu da paróquia, fora subtraída das verbas da Liga de Assistência Mútua, que a prefeitura recebia todos os anos da Europa para prestar assistência às famílias carentes. Do incorruptível amanuense Borba – pessoa de conduta ilibada e muito piedoso – soube que a morte do leiteiro Natalício, ocorrida há poucos dias e cujo corpo fora encontrado em estado de decomposição no perau do Matacavalo – caso que a polícia já dera por encerrado como sendo um acidente –fora crime perpetrado por ele, amanuense Borba, em conluio com a própria esposa do morto, para ficar com viúva e suas vacas.
    Porém, neste longo desfilar de almas arrependidas o pecado que aparecia com mais freqüência era o de adultério. Insuspeitáveis damas, carolas convictas, intocadas esposas, castas noivinhas. Várias, sem distinção, estavam cometendo o pecado da concupiscência. E o causador era sempre o mesmo, dando-lhe a impressão que um demônio fornicador estava à solta na cidade. E este demônio tinha até nome e sobrenome. Chamava-se Aldemir Ventura “Hãã...hããm! Então é o tal Aldemir, o criminoso?” – pensou o improvisado confessor, mais escandalizado ainda. 
   Novato na cidade, Aldemir, boa-pinta, era um legítimo faz-tudo. Metido a ledor de sorte e conselheiro sentimental, alugara um quarto na Pensão Central para abrir uma banca onde – a preços módicos – invocando entidades tão secretas quanto poderosas, previa o futuro, consertava casamentos, abria caminhos e renovava paixões, realizava sessões secretas de “descarrego” e, principalmente, solapava as reservas morais do rebanho, tão ardorosamente defendido pelo esforçado pároco com sua eloqüência. 
    Como se isso não bastasse, o “diabo” tinha outra atividade: era tocador de violão e seresteiro. O que concorria para atrair e agradar as mulheres Não raro surpreendia uma família, oferecendo-lhes uma desinteressada serenata à luz da lua. Em outras ocasiões eram as próprias famílias que organizavam o sarau, onde o “diabinho” era o convidado de honra. E assim, fazendo a felicidade de suas consulentes e prometendo riqueza a seus consultandos o espertalhão constituía-se no maior sucesso dos últimos tempos. Daí que, em pouco tempo Aldemir Ventura tornou-se a figura mais popular e benquista da cidade.
    Porém, nestas alturas o improvisado confessor, que já ouvira tantas almas arrependidas que até perdera a conta, continuava ali a imaginar um jeito de sair daquela situação. Através da grade telada ele podia vislumbrar, no lusco-fusco da tarde, apenas um vulto que ainda aguardava vaga para descarregar suas penas. Estava ansioso, esperando a oportunidade para depois pular fora, antes que alguém viesse acender as luzes da nave principal. E jurava que nunca mais poria os pés dentro de um confessionário, benzendo-se e repetindo baixinho: – Nunca mais, nunca mais – até ver aproximar-se a última pessoa que esperava na fila quando, num lampejo lhe pareceu ser alguém familiar. Teve um choque: O que!? Seria? Não é possível! Sim. Sim. Isso mesmo!... Deus meu! Era a Ninela, sua própria mulher, que se havia aproximado, e do outro lado da grade, já ajoelhada, murmurava:
   - Padre, dai-me vossa bênção porque pequei.
    O confessor improvisado gelou. Sentiu como se a navalha do Don Ottone fazer a barba, corresse em suas costas abrindo-lhe uma brecha de alto a baixo na espinha. Resmungou qualquer coisa, sentiu uma vontade louca de sair gritando porta fora: “Não sou eu! O padre é outro. Vá embora daqui. Fora!” Mas faltou-lhe discernimento e, esmorecido, permaneceu ali para ouvir:
  – Padre, eu pequei contra meu marido. 
  – Hummm?!.. – rosnou
  – Eu fui só uma vez com Seu Aldemir. Fui lá porque eu queria saber por que meu Bertin deixou de me procurar. Então ele me disse que se eu fosse na pensão     depois das sete ele me ensinava fazer uma simpatia de descarrego. Mas eu fui uma vez só, sem Bertin saber. Estou arrependida, Don Ottone. Juro que fui enganada. Eu juro. Eu juro. Não faço mais. Quero pedir perdão a Deus.
     A espada flamejante do Arcanjo São Miguel caiu como um raio na cabeça do confessor improvisado e um turbilhão de idéias desencontradas turvaram-lhe o raciocínio. E como marido traído, sentiu-se o mais desgraçado dos mortais. No primeiro instante pensou em sair e ali mesmo esganá-la. Porém, movido por um sentimento de compaixão, fruto do arrependimento sincero que ela demonstrara perante o confessor e perante Deus, em vez de extravasar a raiva, encheu-se de dó. Queria buscar explicações, mas não as encontrava. Queria respostas, mas fugia-lhe o raciocínio: “Por quê? A Ninela? Logo tu, Ninela?! Por que não as outras? – pensava e ao mesmo tempo recapitulava. “Se encontrares um homem dormindo com uma mulher casada, todos os dois deverão morrer” – ecoou um versículo em sua mente conturbada. “Vais morrer, por causa da mulher que é casada” – bradava Don Ottone do alto do púlpito. – “Conduzirás às portas da cidade o homem ou a mulher que cometeu adultério e os apedrejarás até que morram.” – dizia a palavra do profeta. Então um rancor surdo, pesado e incontido começou a brotar no fundo daquela alma pacata, porém cada vez mais confusa. Não especificamente contra as almas inocentes e arrependidas, mas contra o diabo fornicador, o causador de todos os malefícios que estavam levando à perdição tantas almas inocentes. E com sede de vingança, o ódio se apossou por inteiro do sacristão, que começou, ali mesmo sob aquela atmosfera sacrossanta do confessionário, a arquitetar um plano para livrar o povo das influências maléficas do demônio da concupiscência.                              .                                                         
 -”Que morra! Que morra! - bradava-lhe, através de uma voz interior, seu anjo vingador.   
 
                                                Epílogo
 

     Só depois que o completo silêncio tomou conta da igreja, que nestas alturas já estava em semi-escuridão foi que Bertin animou-se a sair do confessionário. Estava em estado de choque, tantos eram os pensamentos que bombardeavam sua mente conturbada. Contudo havia uma idéia fixa que se sobrepunha às outras. Livrar os paroquianos das maldades daquele satanás que estava ali disfarçado na figura de Aldemir Ventura. Não havia outra saída. “Vade retro Satanás”
    Resolveu sair pela porta da sacristia que ficava aos fundos da nave principal, pois assim não seria percebido por ninguém. E ao passar ao lado do altar-mor, topou com uma imagem, em tela grande, pintada pela Irmã Rosamística, que havia sido colocada ali há poucos dias. Levou um choque. Pois a imagem retratava o arcanjo São Miguel expulsando Lúcifer do paraíso para o fundo dos infernos. Parou extasiado, respirando fundo. Ali estava o arcanjo pairando no ar, de lança em punho apontada para as fauces abertas do demônio que, caído de costas, com a mão em forma de garra, tentava livrar-se, expelindo fogo pelas ventas, enquanto que na outra garra segurava uma bola representando o globo terrestre. “Mata-o! Mata-o!” – ouvia sua voz interior bradar. Parou uns instantes a observar a cena retratada pela Irmã Rosamística. O arcanjo, com suas asas diáfanas, erguidas, basta cabeleira loira encaracolada, saiote e botas de guerreiro romano e um longo manto esvoaçante, azul celeste, contrastavam com semblante másculo de olhar fulminante. Enquanto que a figura de Lúcifer, que, tanto no rosto como na vestimenta, apresentava-se em tons violáceos, uma cabeça grande destacando-se na testa dois enormes chifres negros e pés em forma de casco de bode.   
    Observando a imagem como um todo, Bertin sentiu cheiro de pintura nova. Ou seria de enxofre? Não saberia definir. Sentiu um arrepio na espinha.

    Sucedeu que em meio a estes pensamentos vingativos Bertin lembrou-se que naquela mesma noite, na Praça da Matriz haveria a festa de encerramento das novenas. E certamente o “diabo” estaria lá, pois era figura popular que se intrometia em tudo. Uma ótima ocasião para pôr em prática seu plano de esconjurar o maléfico antes que “o Senhor determinasse ao seu anjo exterminador fazer como no campo de Senaquerib onde numa só noite feriu de morte 185.000 assírios.” E depois refletia – haveria local mais apropriado, em plena festa, no meio do povo, para um ato vingativo de tamanha importância? Betinho já se considerava consagrado como um herói que livrara o povo da desgraça maior: o fogo do inferno.
Após passar rapidamente na canônica, evitando encontrar-se com Ninela e Don Ottone, muniu-se de uma faca grande na cozinha e retornou, já sob o manto da noite, e foi abrigar-se no alto da torre esperando a hora do sacrifício. Estava muito tenso. Todavia, sentia que “estava prestes a soar a hora em que o império do mal seria destruído.”
   Da seteira do campanário onde estava Bertin dispunha de uma visão ampla da praça, que nestas alturas já fervilhava com uma gente alegre e barulhenta. Ouviu o som dos alto-falantes começarem a tocar. Crianças corriam fugindo das mães. As tendas, disposta ao redor da praça, onde eram servidas comidas típicas e bebidas e onde havia jogos de pescaria e tiro ao alvo com arminhas de pressão, estavam completamente tomadas por aquele povo simples, temente a Deus e feliz. Resolveu descer.
   Quando o perturbado sineiro, com a faca na cintura, escondida sob a jaqueta, adentrou a praça, o serviço de alto-falantes, tocava “La donna è mobille” da ópera de Verdi. E em seguida ouviu a voz do locutor anunciando que “esta foi uma homenagem do guru Aldemir Ventura a todas as famílias da cidade, com especial atenção à dona Juvelina Borba.” Bertin sentiu engulhos. “Safado” – pensou. “Não perdes por esperar.”
   Parou num canto da praça, sob um pé de cinamomo que deveria ter a mesma idade da cidade e ficou vasculhando o ambiente à procura do maléfico. Ao redor do monumento central, os rapazes, alguns com cravo na lapela, formavam um córculo como ponto de observação, enquanto as moças, bonitas, cheirosas, coquetes e vistosamente vestidas desfilavam espargindo olhares e sorrisos. Não raro um rapaz se destacava do grupo e após abordar uma destas moças, saiam a caminhar juntos, seguindo para a tenda Rancho Grande, a principal, onde eram servidos refrescos de uva, laranjada e doces variados de frutas da terra. Os alto-falantes desfilavam os maiores sucessos do momento, músicas românticas, valsas, tangos e boleros, geralmente acompanhados de uma dedicatória amorosa. 
   Bertin começou a ficar nervoso e sentir uma ponta de receio do que poderia acontecer se fracassasse. E o “demônio” não aparecia. Mas ele sabia que Aldemir estava no local, pois ouvira várias dedicatórias do safado. Até para algumas senhoras da alta sociedade, mulheres casadas e mocinhas. Pois se dera ao desplante de dedicar até para Don Ottone a música italiana “Ò solle mio.”
    Resolveu circular para procurar o desgraçado. Já não se importava mais com as conseqüências. Ele estava resolvido a matá-lo, fosse como fosse. Aproximar-se-ia, como quem não quer nada, preferentemente pelas costas e antes que sua presença fosse notada, num zaz!, empurraria a faca até o cabo entre as costelas do infame. E nem se importaria em fugir. Queria que todo mundo notasse que fora ele, Humberto Primo, vulgo Bertin, o autor da façanha. Depois explicaria: “Ele andava pondo a perder nossas mulheres. O safado. Eu soube disso através da confissão.” E... ficou extático como se um raio invisível e silencioso o houvesse transpassado. Num átimo lembrou-se que o segredo da confissão é inviolável. “Estou perdido. Se revelar o segredo do confessionário estarei condenado ao fogo eterno” – apavorou-se. . Neste exato momento ouviram-se três estampidos de arma de fogo. Gritos e correrias desencontradas. Mulheres desmaiavam, outras choravam. Alguém gritou: Chama um médico. Não! Chama a polícia! O que houve? Quem foi? Então Bertin ouviu uma voz desesperada berrar no meio da confusão:
– Mataram o Aldemir Ventura! Mataram o Aldemir Ventura! Desliga esta porcaria aí – dizia a mesma voz dirigindo-se ao encarregado dos alto-falantes.
Perdido entre a multidão, que já virara um pandemônio de desesperados, Bertin foi encontrado com a faca de cozinha na mão, sem saber que rumo tomar, em estado de choque,por sua mulher Ninela, que também em desespero procurava por ele.
  – Onde é que tu andavas, Bertin? Não te vi na missa. Não fostes nem jantar em casa? E onde é que tu vais com essa faca na mão, criatura? 
   – Ãããh... Uhnnn!... Não sei... tu viu? – quase nem pode falar. 
   – Não viste que crime bárbaro? O amanuense Borba disparou três tiros no seu Aldemir. Coitado. Tá morto. Ele disse que Aldemir andava metido com sua mulher. Não sei. Já pensou numa coisa destas? Que mundo perdido.
     – Hein? Que foi? Que é que tu disse?
     E após tirar-lhe a faca da mão, Ninela tomou-o carinhosamente pelo braço e conduzindo-o com doçura, consolou-o:
      – Vamos embora pra casa Bertin. A festa já terminou. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Vinícius Lena
Enviado por Vinícius Lena em 12/03/2009
Reeditado em 23/08/2009
Código do texto: T1482254