C E C Í L I A
De nome poético, sem familiares próximos no mundo, um olho esbranquiçado, banguela, um labirinto de fundas rugas no rosto e portadora de mais de mil janeiros de existência. Porém solteira e, segundo a fama do lugar, donzela, virgem juramentada. Aí está o perfil, vendido em grosso, daquela Cecília serrana, macróbia sempre serena, sem caducar, bem boazinha.
Nome lírico, o de Cecília, lembrando até o da linda Ceci, heroína do romance “O guarani”, de José de Alencar. Sem porém algum, uma graça poética, a dela. E garanto que a própria nunca se deu conta disto. Quem sabe, o pífio romantismo da cabroeira de matutos jamais lhe fez a justa cortesia.
Gosto de verdade das graças femininas, cunhadas em palavras paroxítonas, mais ditongos à frente, desde que a antroponímia recaia em pérolas como Ismênia, Márcia, Nívea, Gláucia... Ah, com longa vida, sustança nos nervos, boa cama de ferro e muito fôlego, eu quisera, nesta vida, ter tido mulher parideira para botar no eito do mundo uma récua de nomes sonoros como o de Cecília!
Cecília rezadeira não esmolava, propriamente. Ela só recebia agrados e mimos do povo daquelas lonjuras da serra, município de Redenção, lá no topo do Maciço de Baturité, Ceará.
Essa dita mulherzinha de anos sem fim, uns quase cem de vida, aqui posta como nossa personagem, vivia amoitada, anos a fio, ninguém contava nunca, na casa de aderentes seus, moradores da parentalha de minha mãe, afins de Cecília, talvez, lá pela marca da centésima geração. Gente simples e pobre, trabalhadores do eito, mas gente nobre, pessoas hospitaleiras que não se apoquentavam em dividir um bocado de comer com aquela velhinha sem dentes.
De algum modo, a reza de Cecília servia para alentar a renda 'per capita' dos viventes que a protegiam, dando-lhe, à noite, um fianguinho puído para dormir e uma nesga de teto, onde ela descansasse seu baú de ossos. É que, ao longo dos dias, o pé de Cecília viajava, andarilho, por todas aquelas redondezas, subindo ladeiras ou descendo escarpas, indo do sítio Catarina, onde se arranchava, até o povoado de Guassi. Apesar de muito velha, com um olho prateado cego e o outro já de serventia em ares de se extinguir, ela virava por todos os rincões de sítios do lugar.
Menino caviloso, cheio de arrumação, era Cecília botar presença no Camará e lá se me ia eu – com a devida licença do Machado – com as mesmas invenções, a resmungar para minha mãe, assim: “– Dei uma topada, meu dedão ‘tá inchado.” Ou então: “– Mamãe, no caminho da escola eu pisei em falso, meu pé ‘tá ruim.” Aí minha mãe já sabia. Mesmo desconfiando de que tudo era peta do seu garoto, tinha que, por ser mãe cordata, convocar a velha de olho branco para o servicinho de reza.
As bordas do terreiro da casa-grande do Camará eram sempre cheias de vassourinha, uma planta a que se lhe atribuem poderes de cura em coisas de carne trilhada, inchaço por meio de pancada, dores no peito, mau-olhado, espinhela caída, dor-d’olhos, torcicolos e até curaria erisipela. Mas não era só a vassourinha, tirada do pé. Tinha que, para fazer efeito, ou cura de milagre, ser manipulada por mão competente, de uma rezadeira de escol. E isto Cecília sempre foi, pelo menos para a crença geral da região.
Cecília ia, lá, ao terreiro, pegava um molho de vassourinha e caía nas funções de benzedura do meu pé, benzia tudo direitinho, que fazia gosto. Mexia com os beiços, mexia. Apenas mexia com a boca chocha, fazendo o sinal-da-cruz, porém, no final, olhava os ramos já murchos, quase metendo o feixe na cara e dizia solene: “– ‘Tá muxo... Vai-te pra rampa!” Dito isto, ela jogava longe o remédio miraculoso. Era tiro e queda. No dia seguinte o menino de dona Beatriz nem falava mais da cura acontecida.
Devidamente gratificada, em geral com uma porção de arroz ou feijão – às vezes a paga era uma peça de roupa – e de barriguinha cheia, Cecília rezadeira metia o nariz no rumo da estrada, para daqui a poucos dias depois estar de volta.
Para mim, até hoje, siá Cecília foi uma das figuras marcantes da minha meninice. Por causa da sua maciez. Não, por causa de sua graça tão lírica. Não e não; por causa do seu poder de curar, rezando na gente, massageando as partes afetadas do corpo com ramos verdes. Mentira! A velha me foi marcante e cativante por conta de jamais haver desmascarado minhas cabeludas potocas de menino levado.
Fort., 28/02/2009.