ZÉ DA BURRA
ZÉ DA BURRA
Na corrutela do garimpo do Cuiú-Cuiú, a poucos minutos de vôo da corrutela do Creporí, garimpo de ouro da região de Itaituba no sul do Pará, um certo garimpeiro, bastante esperto, resolveu deixar a arriscada profissão de faiscador e inovou, criando uma nova condição para melhorar de vida. A corrutela ficava no alto de um elevado morro, sendo bastante penosa a chegada a essa vilazinha, encravada no meio da selva amazônica. Em razão da grande altura, a pista de pouso que era também a única rua do lugar, ficou relativamente fácil de operar, pelos aviões monomotores que faziam as rotas de Santarém e Itaituba – centros abastecedores de gêneros alimentícios e equipamentos para garimpagem na região.
No pé do morro, um igarapé de água cristalina e abundante, servia de diversão aos domingos, para os que não se importavam com a grande caminhada para se banhar e se refrescar. A penosa subida obrigava aos habitantes da corrutela a um asseio limitado pela escassa água dos poucos que se habilitavam a leva-la em latas, nas costas, pela falta de eletricidade, ou outro meio de condução menos extenuante, e por esse motivo ela era disputada a preço de ouro. Zé – como era conhecido até então esse franzino cearense – depois de várias malárias, sem muita saúde para se aventurar na difícil vida da garimpagem, em uma ida a Santarém, comprou uma mula de um carroceiro, dando-lhe 100 gramas de ouro pelo animal – uma pequena fortuna – e levou-o pela estrada até Itaituba de caminhão.
Eu me encontrava em minha sala na Fundação de Assistência ao Garimpeiro – órgão do Governo Federal ligado ao Ministério do Trabalho – e, como administrador da mesma tinha como incumbência , além do abastecimento dos armazéns instalados nas corrutelas, cuidar dos interesses dos garimpeiros, apoiando-os, dando-lhes toda assistência social possível e também cuidando da segurança e policiamento nos garimpos.
Manoel Maranhão, que cuidava de todos os meus interesses, me assessorava como se fosse meu secretário e inclusive, cuidava de minha segurança, entrou repentinamente em minha sala. Era um mulato baixinho, muito reservado, que estava albergado em minha casa, tendo sido preso depois de caçar e matar três bandidos que, passando-se por garimpeiros, estupraram e mataram sua mulher, filho e duas filhas na corrutela do garimpo do Pacu.
Ainda que falando pouco, era muito carismático e suas expressões e sutilezas faziam dele uma pessoa muito especial.
- Chefe, tem um “cara” aí fora querendo falar com o senhor. Diz ele que é urgente. É o ´Zé´, aquele “cabeça chata” lá do Cuiú – lembra?
Quando nós tivemos lá na última vez,o senhor, na boate “Porta do Céu” - parecendo mais um candidato a governador - “tava” dizendo a todo mundo, inclusive pras putas, que: - “olha, agora com a cooperativa, vamos poder ajudar e resolver o problema de todo mundo!...´tá lembrado? Agora ele “taí, oh!” - disse apontando com o indicador em direção a porta - e com uma colega dele. Quero “vê” o senhor “resolvê” o problema dele agora.
Sentou-se em uma cadeira à minha frente, como se exausto por falar tanto, com o cenho arqueado... e um sorrisinho maroto nos lábios.
- Como é que é Manoel? Não estou entendendo nada do que você está falando, respondi.
- Chega o nariz aí na porta que o senhor vai entender num instante!
Cheguei à janela e vi então, do lado de fora do prédio o tal Zé, de pé, segurando pelo cabresto uma burra.
- E aí Manoel, qual o problema? Manda o moço entrar. Vamos ver o que podemos fazer para ajuda-lo.
- Tá bom chefe... o senhor manda!
- O Zé entrou e assentou-se na cadeira ao lado onde estava o Manoel.
- “Seu” Sérgio, bom dia – falou meio arrastado em seu sotaque nordestino – “oh xente", que calor, não é? (continuou de maneira meio desconfortável) - como o senhor havia dito lá no “Porta do Céu” (referindo-se à boate) – estou aqui pra lhe pedir ajuda.
Evitei olhar para o lado de Manoel - continuando, ele disse:
- Preciso levar a Maria para o Cuiú-Cuiú, até amanhã. Tenho que estar lá até segunda-feira e como hoje é sexta, só tem vôo da cooperativa amanhã não é mesmo?
- Claro Zé, mas para isso não precisava vir falar comigo. É só pedir à Chiquita aí fora – disse, referindo-me à nossa secretária – para marcar o vôo. Sua mulher está só ou tem alguma criança com ela?
- Chefe, aparteou Manoel Maranhão, meio debruçado na mesa – Maria não é a mulher do Zé não... é a burra que “tá” aí fora, entendeu agora. O “probleminha” dele é simples de resolver. Ele quer levar esse bicho de avião, pro Cuiú-Cuiú, percebeu?
- Manoel se jogou de novo na cadeira.
Passei por situações realmente difíceis em Itaituba, correndo risco de morte por diversas vezes e devo muito ao Manoel por estar vivo. Vivi situações extremamente complicadas e muito pitorescas, mas aquela ali, realmente, me fez quase perder a paciência, além do fato de não imaginar, sequer, uma saída para resolver aquele caso.
- Sr. Zé – disse-lhe, acho que não entendi direito ou estou sonhando. O senhor falou querer que eu autorize colocar esse animal em um monomotor, um aviãozinho desses, para leva-lo para o garimpo – referindo-me à fragilidade dos aviões monomotores que são usados em Itaituba e pousam em pistas improvisadas no meio da selva, de chão batido – é isso mesmo? Perguntei, mas me recusando a acreditar na resposta que ouviria.
- È isso mesmo “seu Sérgio”, não tem outro jeito né? – se tivesse estrada... (falou com um movimento de ombros) eu mesmo levava.
- É meu caro – retruquei – mas quando eu lhes disse no Cuiú que faríamos tudo a nosso alcance para resolver o problema de vocês, em nenhuma hora estávamos nos referindo a colocar a vida de alguém em risco para fazê-lo. Como é que vai fazer para embarcar o animal? Já pensou? E se o avião cai? Não, esquece, sinto muito!
- O “Zé” saiu de minha sala bastante triste e eu, confesso, sentindo-me mal em não poder ajuda-lo.
Terminamos de almoçar eu e Manoel Maranhão e estávamos conversando, assentados, ainda no restaurante, quando entrou o Zé acompanhado de um piloto chamado Mair, que possuía um Cessna – monomotor de asas altas, muito utilizado na região. Vinham conversando alegremente e pelo tom descontraído dava para adivinhar qual o assunto que estavam tratando.
- Sérgio, boa tarde! Boa tarde Manoel, complementou Mair – já terminaram de almoçar? Podemos conversar?
Claro, disse-lhe eu. Sentem-se, falei meio a contragosto, olhando para ambos.
Mair era um dos pilotos mais antigos da região, com quem tinha um excelente relacionamento. Devia ter uns 42 anos e era muito experiente. Caiu mais de 12 vezes com aviões na região e sempre brincava dizendo que, pela sua experiência em quedas, raramente se machucava. Quando acontecia algum problema com o motor, levantava o bico do avião e caia de calda, amortecendo a queda. Quem estivesse na parte traseira do avião é que se dava mal, imagino.
- Diga Mair, disse-lhe – o que você manda?
- Sérgio, o Zé aqui me procurou. Acho que você já sabe do que se trata, não é mesmo?
-Sei Mair e confesso, não gostei nenhum pouco dessa história. Pela Fundação ou pela Cooperativa é impossível, pelo risco que representa, até porque como operamos com Bonanzas – de portas pequenas – essa burra não passaria pelas portas. Agora, no seu avião, você é quem manda, mas se acontecer alguma coisa, não esqueça de cair de traseira...”tá” bem? – falei, brincando, me referindo às histórias sobre as muitas quedas de avião que tinha sofrido.
Como todos os pilotos que voam para garimpos são meio malucos, tinha a certeza de que Mair estava levando a conversa muito a sério. Além do desafio, o valor do transporte, extremamente caro, era um bom motivo.
- Sergio, disse Mair, dá para levar a burra mas teremos que anestesia-la compreende? Queria lhe pedir para conversar com o Dr. Durval, para que ele informasse qual o anestésico que deveríamos usar e qual a dose ideal, o que você acha?
-Acho que vocês estão totalmente malucos, piraram de vez! Imaginem a situação: vocês terão que dopar o bicho antes de colocar no avião, o que fará com que o peso dele torne isso quase impossível; depois, se esse animal acordar durante a viagem, quem vai ter que ir procurar o resto de vocês no meio da selva sou eu, porque ele vai derrubar o avião, portanto, não contem comigo. Se quiserem falar com o Dr. Durval podem faze-lo, mas não contem comigo para nada!
- Mas Sérgio, e se a gente amarrar bem ele?
- Não dava para argumentar com esses malucos, portanto, disse-lhes: - Vou acompanha-los até o hospital para falar com o Durval por pura curiosidade, mas não que aprove ou vá participar do que estão pretendendo. Vamos lá.
Dr. Durval – um negro de aproximadamente 1,90 metros de altura era baiano e já estava a três anos em Itaituba à frente do pequeno Hospital da Fundação. Clinico geral, fazia de tudo, desde cirurgias para extração de balas em razão dos muitos feridos em tiroteios nas corrutelas e mesmo na cidade, a cirurgias reparadoras tendo replantado até um dedo de um garimpeiro ferido com golpe de terçado. Muito calmo, ouviu com toda a atenção a conversa do Zé e do Mair.
Sabem o peso da burra? perguntou ao final.
- Durval, você não está pensando em ajudar esses dois não, está? Disse muito sério olhando para ele.
Deixa eles meu rei, disse Durval com um sorriso nos lábios e que, já de caneta na mão, fazia suas contas, com base nas informações que lhe eram passadas pelo Zé e por Mair.
No outro dia, as 7 horas assistimos, eu e mais uma multidão, ao ritual de anestesia, embarque, imobilização e decolagem do vôo que levaria a burra à corrutela do Cuiú-Cuiú.
Monitorei pelo radio com o armazém da corrutela a chegada do vôo. Uma hora depois, recebi, pelo mesmo rádio, com gritos eufóricos dos dois malucos, a informação que haviam chegado bem. A burra acordou no meio da viagem e Zé deu-lhe uma garrafa inteira de cachaça para controla-la evitando que ela tentasse se levantar e acabasse derrubando o pequeno avião.
Seis meses depois, o Zé da burra era figura famosa e conhecida em toda região. Comprou vários camburões, montou na corrutela um banheiro coletivo com seis chuveiros; descia diariamente ao igarapé e carregava, no lombo da burra o liquido precioso que o fez enriquecer.
Quatro anos depois, em uma noite, na mesma boate “Porta do Céu”, por causa de uma prostituta, deu um tapa na cara de um garimpeiro.
No dia seguinte, ao subir com sua burra, no meio do caminho, foi vítima de vários tiros disparados pelo desafeto em quem dera o tapa, no dia anterior.
Ao seu lado, no chão, ferida e agonizante, a burra esperava também a morte chegar.