O homem que morreu duas vezes

A única coisa que vingava ali era o sol. Ele vingava todos os dias daquele pobre povo, esturrado, esquelético, miserável. Ele queimava, ele maltratava, ele matava.

O Zé Gamela, apesar de não ter estudo nenhum, gostava muito de declamar poesias. Ele decorava só de ouvir. As pessoas liam e o desgramado parecia ter a memória fotográfica, gravava na hora. Era sempre solicitado a declamar quando havia festas em homenagem a algum santo do lugar, que por sinal era a única coisa que alegrava os pobres desgraçados daqueles confins do Judas. Ainda me lembro bem de uma  poesia que ele declamava e que por sua preciosidade emotiva tenho ela na lembrança até hoje. Ela tinha por título "Almas secas", e era mais ou menos assim:

Meu nome é Severino

Minha idade eu não conheço bem

Aqui não tem nenhum papel escrito

que prove a existência de alguém

Aqui a gente sofre viu seu moço!

O sofrimento aqui é coisa séria

Aqui a gente sofre de abandono,

sofre de sede, sofre de miséria

A única coisa que vinga aqui é o sol

Ele vinga da gente todo santo dia

Ele faz da nossa vida um inferno

Ele queima, ele maltrata, ele judia

A vida aqui é igualzinho ao pó

O vento vem carrega de sopetão,

Daqui a pouco vira coisa que passou

Depois ninguém mais presta atenção

Com a gente também é a mesma coisa

O cabra morre sem conhecer a paz,

È enterrado como se fosse um bicho,

Daqui a pouco ninguém se "alembra" mais

Também se "alembrar" do que?

O nada nunca teve existência

E o que nunca existiu, seu moço,

nunca haverá de ter consciência!

A minha vida aqui é só isso

Uma vida de martírio eterno

Uma vida vivida só de sofrimento

Longe do céu... perto do inferno.

Sempre que ele terminava de declamar era aplaudido em pé. E lógicamente que ele ficava numa felicidade sem tamanho. E apesar de tanto sofrimento com aquele sol maldito que torrava até a alma, eles ainda encontravam forças para ir tocando a vida mesmo que aos trancos e barrancos.

Porém chegou um momento que não dava mais. A meses que não caia uma gota de água por aquelas bandas. O gado começou a morrer, junto com tudo que também tinha vida por ali, e o povo, então, como única alternativa começou a abandonar as terras, deixando para trás uma vida toda de penúria, miséria e sofrimento. Amontoavam-se nos paus de araras e se mandavam para lugares mais promissores. E foi  numa dessas aventuras desesperadas  a procura de uma vida mais digna que ocorreu aquele acidente terrível. O caminhão vinha pela estrada em alta velocidade quando um dos pneus estourou. Não teve jeito, o motorista perdeu o controle do veículo e rolou barranco abaixo esparramando corpos prá tudo quanto era lado. Foi terrível. Poucos conseguiram sobreviver.

A notícia chegou voando até uma cidadezinha próxima ao acidente. Não demorou muito e se apinhou de gente querendo prestar ajuda aos sobreviventes.

O Doutor Nonô chegou junto com a única ambulância que havia na cidade. Já foi descendo e examinando um por um e como não havia condição de levar todo mundo naquela velha ambulância, ele requisitou quatro daquelas pessoas que ali estavam e ordenou:

----Vamos fazer o seguinte; quem estiver vivo a gente joga prá dentro da ambulância, e quem estiver morto a gente joga prá dentro do rio.

Naquela época as pessoas eram enterradas em qualquer pedaço de terra que desse para cavar um buraco. Não havia o menor controle. O cabra nascia e morria sem ter documento algum que provasse a sua existência. Sendo assim tanto fazia enterrar como jogar para dentro do rio, era tudo uma coisa só. E foi exatamente isso que começaram a fazer. O Doutor ia examinando um por um para ver quem estava vivo e quem estava morto.

---Esse está morto!... esse também!... esse outro aqui também!... Esse aqui está vivo!... Esse está morto!

Aqueles que tiveram a sorte de escapar vivo do acidente eram jogados para dentro da ambulância. Os de menos sorte eram jogados para dentro do rio. Teve um porém que o Doutor Nonô ficou numa duvida tremenda se estava morto ou se estava vivo.

----Deixa eu ver... deixa eu ver...hummm! --E depois de um  exame mais minucioso ele assinou o estado de óbito do infeliz.-- Tá morto sim podem jogar prá dentro do rio!

Um cabra pegou pelas pernas e outro pelos braços e já iam atirá-lo ao rio quando o suposto defunto, a muito custo, abriu um olho e num esforço tremendo conseguiu murmurar:

----Eu tô vivo! Eu tô vivo!

Os dois cabras que estavam ajudando o Doutor Nonô  entreolharam-se surpresos, titubearam por um momento sem saber o que fazer até que um deles se pronunciou:

----Sê tá vivo o caralho!!! Sê qué saber mais que o médico?!!!

Balançaram o corpo prá lá e prá cá e o atiraram para dentro do rio.

                                      FIM

"Peço desculpas aos meus leitores por algum erro de ortografia, pois não sou escritor, sou apenas um humilde criador de histórias. Caso encontrarem algum erro peço a gentileza de me avisarem  para que eu possa fazer as correções necessárias. Muito obrigado."