A costureira de ilusões
----Olha Dona Justina, se a senhora acha que não vai dar pra ficar pronto até sexta, me avisa que eu arrumo outra costureira!
----Eu já disse que até sexta-feira eu entrego as fantasias!
Jorjão vagou os olhos pelo barraco de dois cômodos onde Dona Justina morava com os quatro filhos. Dava-se a impressão de que a miséria havia se instalado por ali. A mesa, em um dos cômodos que servia de cozinha, faltava uma das pernas e estava amparada por um cabo de vassoura amarrado com arame. Três caixotes de tosca madeira eram usados como armários para se guardar o quase nada de mantimentos daquela pobre família. As paredes de madeira e o telhado de Brasilite encontravam-se em estado deplorável, cheios de buracos e remendos por todos os lados. O marido, coitado, morrera de tanta cachaça, deixando como herança para Dona Justina, aquele barraco caindo aos pedaços, quatro filhos catarrentos e uma pequena dívida no barzinho do Zé Lagoa. Jorjão franziu a testa, esticou o beiço e olhando toda aquela bagunça esparramada pelo barraco, pareceu não acreditar muito em dona Justina.
—Sei não... a coisa ta muito crua. Hoje já é quinta feira e se as fantasias da ala infantil não ficarem prontas a escola perde ponto.
—Vocês são gozados! Até agora ninguém quitou o restante da dívida do ano passado e ainda por cima ficam nessa encheção de saco trazendo o serviço as vésperas do carnaval. Aí vira essa correria doida.
—Já falei pra senhora que na sexta-feira nós vamos acertar tudo o que a gente deve.
—Essa conversa eu ouço todos os anos. Não sei como ainda tenho paciência pra tolerar esse tipo de coisa.
—Não esquenta a cabeça Dona Justina. Tem um deputado dando uma força pra nós, e seu assessor pediu pra gente passar em sua casa na sexta pela manhã que ele vai liberar uma verba pra escola.
Dona Justina olhou por debaixo dos óculos como se estivesse pressentindo que mais uma vez seria enrolada.
—Quer dizer... se não sair à verba eu fico a ver navios? É sempre a mesma merda. Depois eu acerto. E assim vocês vão me embromando. -Lastimou-se Dona Justina.
—O cara é firmeza. Ele não vai dar mancada. A gente precisa dele, e ele precisa da gente. É ano de eleição e ele sabe que se pisar na bola a rapaziada arruma outro candidato.
--Só quero ver! -Resmungou Dona Justina
—Sexta à tarde eu passo pra pegar as fantasias e já trago o dinheiro.
—É bom trazer mesmo. To sem nada aqui em casa. E pra acabar de danar, essa bendita tosse que não me deixa dormir. Não tenho dinheiro nem mesmo pra comprar um xarope. -Respondeu Dona Justina
Jorjão se despediu prometendo trazer o dinheiro o mais rápido possível. Lá fora ainda viu as crianças brincando na viela de chão batido. Dava dó de ver aquilo. Pareciam quatro ratinhos abandonados ao relento. Minguados, sujos e esqueléticos. Passou a mão sobre a cabeça do mais novo e saiu ziguezagueando pelos labirintos da favela.
Nos dias seguintes, Dona Justina, trabalhou sem parar. Precisava daquele dinheiro. Já não tinha quase mais nada pra dar de comer às crianças e agora a tosse havia piorado. Parecia que o peito ia estourar. Sentia um arrepio danado pelo corpo. Vez ou outra as vistas escureciam dando-lhe a impressão que iria desmaiar.
Na sexta logo depois do almoço o Jorjão passou pra pegar as fantasias. Dona Justina estava largada na cama ardendo em febre. Dona Nena, a vizinha do lado, foi quem o atendeu.
—Você trouxe o dinheiro da Justina? A mulher ta morrendo aqui na cama e não tem dinheiro nem pra comprar uma Cibalena.
—Hoje à tarde eu volto e trago o dinheiro. O puto do deputado ta numa reunião lá na zona norte e só vai voltar depois das quatro.
Dona Justina começou a chorar.
—Pelo amor de Deus Jorjão. Eu quase me mato pra deixar tudo pronto e você aparece aqui de mãos vazias.
—Dona Justina, eu juro por tudo o quanto é Sagrado que antes das seis eu pego o dinheiro lá com o homem e venho acertar o que lhe devo.
A pobre mulher suspirou fundo, fechou os olhos e continuou seu choro em silêncio. Parecia adivinhar que mais uma vez iria tomar calote.
—Quer saber de uma coisa, Jorjão, pega essa merda dessas fantasias e some da minha frente.
Jorjão foi até a porta e chamou os dois rapazes que vieram lhe ajudar. Recolheram as fantasias e saíram rapidinho.
No fim da tarde Dona Justina piorou.
Dona Nena chamou o Zé Lagoa e pediu para ele se dava pra levar a infeliz pro hospital.
—Pneumonia. O estado dela é grave. Vai ter que ficar internada.
Foi isso que o médico disse pra Dona Nena, após examinar Dona Justina.
Isso foi tudo o que aconteceu na sexta-feira à noite. Nos dias que se passaram o seu estado de saúde piorou.
Na quarta-feira, logo pela manhã, o telefone tocou na casa do Zé Lagoa. Era do hospital. Ligaram avisando que Dona Justina havia falecido.
Na quinta-feira, uma garoa fina e um vento gelado, castigavam, ali no cemitério de Vila Alpina, aquela meia dúzia de pessoas que acompanhavam o sepultamento.
Os quatro pirralhos, agarrados à saia de Dona Nena, observavam a tudo aquilo sem entenderem direito o que estava acontecendo.
Na quadra da Escola, a bateria arrepiava o samba enredo da agremiação comemorando o primeiro lugar no desfile do segundo grupo. Rojões pipocavam por todos os lados. O deputado que eles estavam apoiando bancou dez barris de Chopes. A festa estava linda, bebida e churrasco à vontade. Os carros buzinavam do lado de fora da quadra, numa animação só vista em copa do mundo. Afinal eles haviam sido campeões. O resto... bom o resto não importa, assim como também muita coisa não importa nesse paizinho , onde a maioria das pessoas só querem saber de puxar a sardinha pro seu lado do braseiro.