Sacrofobia
O senhor veja. Nes's trinti e tantos anos, a gente pensa que já viu de tudo, sabe de tudo. Mas quando vejo, percebo a imensão deste Sertão do nossos olhos. Jibêra floreia no'ltono e jacutinga pia quando choca. Compadre meu dizia – 'se relampeja prus norte, daí vem o vento seco, num si sabe pr'onde tormenta si vais'.
Pois veja o senhor. Dizia sempre que não se come carne na sexta-feira do Nosso Senhor. Salve-me Nossa Senhora, que seria d'eu descumprir santa ordem. Mãezinha devota, guarda dias santo, ensinou coisas santas pr'os manos e pra mim. 'Nunca si descuide dos Sacramentos, guarde as reza, e Mãezinha guardarás vós.' Sou eu lá loco? Nem, nem. Perco tudo, mas num perco a Graça, salve-me Deus!
Apareceu por aqui uma família que dizia vir d'Alto Ribeira. Família grande, criançada. Pais, filho moço, filho pequeninho, do colo, tinha até um variado, boca pingando as bábas. Todos pretinhos, micuim festando nos olhos dos menorzinhos. Mas não iam em missa, nem na procissão da Nossa Senhora. Padre Francisco veio de visita da casa deles, disse estarem cometidos de bexiga. Mãezinha benzeu-se, disse ser castigo do Pai. Vai-se lá? Quem sô eu p/ descreditar dos mistérios das coisas.
Deu-se num dia Santo, pai deles deles caçaram dois tatus, um deles com cria ainda. Mãezinha avisou: 'Não se caça nem si come que caçou no Dia do Nosso Senhor. Vem-se justiça'. 'Ara! Com'és quis...nem num!'
respondeu o velho pai deles. Não ligaram, não s'importaram. A velha acendeu o tacho, pelou os dois tatus, comeram com farofa e depois deitaram.
Dito e feito. No dia seguinte deu-se vômito e diarréia neles todos. Mamãe foi buscar erva-de-santa maria para chá e Dona Conceição assistia os pobres no ranchinho deles. Foi luta, veja o senhor. Nada sarava eles, nem lingota-de-soropé, nem casca de Jabarandaia. Dias passou. Nada comiam, mas engordavam da bicha.
Chamaram a Inhana Parteira com seus benzimentos. Benzia e aspergia Água-de-São Jorge neles. Na casa de Dona Conceição se rezava terço. Fizeram até defumação de sete dias na casa deles. Fumaceirão que subia feito queima de roça – mas era bosta de vaca.
Foi que num dia de Corpus-Christi, mamãe mais Dona Conceição em suas beatagens. Eles estavam tão cheio de bicha que os olhos veiosos esbugalhavam para fora da cara. Gemedeira se ouvia. Deu-se que, perto do meio-dia, o menorzinho já não gemia – gritava. Gritava e se contorcia como se mata porco. Tanto e tanto que a barriga explodiu. Explodiu, voando as bichas com as tripas. Uma água escura e fedida, mas sem sangue. Fez- se um ôco no ventre do moleque. Deu-se. Depois do menorzinho, outro menorzinho e mais outro. Grito por toda parte, chão banhado de bichas se debatendo e tripas de não se sabe de quem eram. Dizia que quando morria, barriga explodia, se cagava e boca botava espuma esbranquiçada para fora. E foi se assim até chegar ao velho pai deles que ficou com os olhos surucados donde só se via o valo.
Se lamentou a morte deles, mas não se ouviu choro. Mitos e mitos surgiram. Uns estranhavam a secura de sangue, outros falavam da blasfêmia. Botaram fogo no ranchino e Padre Francisco rezou missa. Aconteceu.