O vilarejo Gamela Nova

1.

Ao cair da noite, indubitavelmente, tudo se fechava mediante ao pânico que assolou nas pessoas moradoras daquele lugar. Uma pequena comunidade de famílias humildes e distintas, onde todos se conheciam. Gente que foram criadas sem muita ambição migratória e não desvencilhavam de seus laços familiares por buscas de aventuras e sucessos.

Como já havia dito um pequeno povoado cercado em meio à natureza e os prazeres rurais, estava vivendo um tormento eloqüente. Os singelos habitantes, entediados de pavor e desconfianças, não mais saiam de suas casas à noite. Quando as primeiras horas mortas noturnas ganhavam formas, o que se ouvia eram os rangidos das portas se fechando, luzes que outrora ficavam acesas na espera de longas conversas e risadas perdidas, agora se encontravam apagadas, contrastando com o suspiro do silêncio que roubava a cena.

As ruas, antes tomadas de jovens que caminhavam rumando aos estudos, não mais condiziam com a euforia da juventude, ao qual ecoavam seus gritos e malícias aos arvoredos que os contemplavam. Agora, apenas o isolamento ditava a música.

No empório do Sr. Jubilino as compras passaram a ser feitas de dia, os famosos pãezinhos do Sr. Eliseu não ganhavam mais o forno ao entardecer, e sim, no segundo quarto de hora do dia, exatamente ao meio-dia. Dna Dadá não queria mais pegar encomenda de roupa pra costurar, temendo que alguém viesse experimentar, justamente no horário da aulivuzia noturna.

Gamela Nova não era mais a mesma. O medo crescera em todos, até a tradicional igreja evangélica tinha encerrado com os cultos e vigilhas noturnas, nem mesmo o seu sino badalavam mais, badaladas essa que anunciavam a transição do dia para a noite.

Tudo deserto, as praças principais, os casais em clima romântico, desapareceram. As meninas da vida que ali também “trabalhavam”, foram embora com o primeiro caminhoneiro que passou por lá e propôs levá-las para bem longe.

A situação chegara a um ponto insustentável e alguém tinha que tomar alguma providência. Uma reunião aconteceu na casa do Rev. Colaça, durante o dia é lógico!

-Dr. Carizinho, precisamos acabar com essa agonia logo! O que o Sr. sugere?

-Olha Reverendo, as coisas não são tão simples como se apresenta; o fato é que precisamos de um caba brabo, valente, arretado, que saiba encarar essa lida!

-Ouvi dizer que o sobrinho na mulher do Sr. Paraíba tá vindo aí pra quebrar o encanto dessa butija maldita e...!

- E se não for uma butija? E se for à caipóra? A aulivozia da mata?!

-Deixe de ser besta Valuá, ainda acho que é um ladrãozinho escumungado, tentando roubar nossas coisas!

-Não me chame de besta não Valdeci! Porque Torrói viu ontonte a luz e até agora tá lá sem poder dar uma só palavra, e além do mais, Torrói nunca foi homem de mentira!

-Será que se trata de disco voador, esses bichos cabeçudos, de olho grande, feio que só o cabrunco, querendo nossa terra?!

-Até o Sr. Professor Manelito?

O que era pra ser uma reunião pra solucionar o problema do vilarejo virou discussão e opiniões desencontradas.

-CHEGAA! Eu os chamei em minha casa para discutirmos um assunto muito sério e vocês ficam aí de disse me disse..!. Pois bem, eu como Reverendo, lider comunitário e responsável por essa comunidade decidi reunir todos para anunciar-lhes o nome do nosso defensor. Pode entrar Dr. Ney, e explique-nos o que teremos que fazer pra destruir essa força do mal que pestiou o seio de nossa gente!

- Boa noite a todos! Fui contratado para esclarecer-lhes duma vez por todos, esses fenômenos sobrenaturais que aqui, nessa terra da paz, se encontram. Especialista nesse assunto asseguro-lhes como para-psicólogo e ufólogo, que descobrirei e trarei para vocês o desfecho desse caso mal assombrado.

Essa é minha equipe, Índio Rildo, o batedor; Lorencinho, o visionário; Elba Cristina, minha filha e fotográfa e o Sargento Dorão, especialista em armas e tijolos. Vamos passar algumas semanas em vossas terras, esperamos não atrapalharmos e nem tão pouco assustá-los.

Levantaram acampamento no meio do mato, muitos aparelhos, antenas, armadilhas o diabo a quatro. Nas três primeiras noites nada de anormal aconteceu. Alguns moradores mais corajosos esboçaram uma saidinha, noturna confiante nos homens da capital que estavam sempre posicionados.

2.

-Não! Não pode ser! Naaaaaaaõ!!

-Meu Deus! O coisa ruim tornou-se a surgir novamente.

-Foi por alí, vamos!

Dr. Carizinho caído ao chão, estava em choque, pasmo, quase desfalecido, apenas balbuciava algo ao qual ninguém sabia explicar, mais entendia que fora o susto de ter visto aquilo...aquilo que todos temiam há tempos e acreditavam cegamente sem nunca tê-los visto nada. Diziam sentir a presença, mas não sabiam do que eram; um pandemônio!

Os especialistas estavam desorientados, desolados, sentiam impotentes mediante todo aquele ocorrido, não aceitavam a possibilidade de estarem tão próximo e ao mesmo tempo tão distante do óbvio.

O Sargento Dorão não sabia se sorria ou se chorava, o medo ainda mais continuava, a fama de Gamela Nova se espalhava, saiu uma reportagem numa revista escandinava...

-Na Europa??

-Isso mesmo reverendo, pode apostar que vai encher de gringo por essas banda: Disse o Prof. Manelito!

-Mode que ficaram assim, sabendo?

-O que diz por aí, é que a filha do Dr. Ney, Elba Cristina, teve um rolo com um jornalista da Europa, conheceram se num festival de rock na América, viajaram juntos para um retiro espiritual no oriente, diz até falam em se casar e morar na Oceania. Como se correspondem freqüentemente, quem sabe não foi ela que contou sobre Gamela Nova!

Não demorou muito, toda a comunidade já estava sabendo de mais uma aparição da dita cuja.

- Ué, por que dita cuja? Quem é o arretado que descobriu que era fêmea?

O Dr.Carizinho, ha dias que só repete uma coisa a mesma coisa; “ Oh eu com medo dela”, só pode uma muié!

-Pode ser uma criatura, uma assombração, uma coisa horripilante, alma penada...!

-Ainda acho que é muié, e das feias. Deus que me perdoe, mas só de pensar fico até arrepiado!

3.

A imprensa chegou até o vilarejo, eram câmeras, agentes de rádio e televisão se agrupinhando com os curiosos. A equipe do Dr. Ney não conseguia dar um passo sequer, que logo, surgia meia dúzia de reportes, horas perguntado, horas criticando, uma loucura!

Numa humilde casa de campo, um pouco retirado do centro “nelvoso”, quero dizer: nervoso, mora a Dona Adélia. Uma famosa rendeira, parteira, cozinheira, conselheira, e tantos eiras mais... Uma senhora simples, do lar, de uma criatividade incrivel. Há tempos, com outras senhoras, procuravam soluções para esse fuzuê desacerbado. Pôs-se a juntar seu quebra-cabeça de informações. Algumas peças ainda eram incógnitas, mais as demais já valeria de astúcia para o desenrolar dessa tragicomédia apresentada em Gamela Nova.

E foi numa manhã de sol, como todas as demais manhãs, reuniram-se todas as mulheres da ASGN ( Associação das Senhoras de Gamela Nova )na quadra o colégio municipal para ouvir o que a Dna Adélia tinha a dizer. Havia também alguns repórteres nacionais e estrangeiros e toda cúpula do conselho deliberativo da igreja.

Dna Adélia estava pomposa, num vestido colorido rodado, um coque no cabelo e um sapatinho de pano, estava ansiosa. Queria logo falar. Sabia que sua conclusão seria de vital importância para o desenlace desses enigmas. Então, começou a responder as perguntas soltas dos repórteres:

- Por que os ataques ocorriam sempre à noite e não durante a claridade do dia?

Disse Dna Adélia: Alguma coisa que tem hábitos noturnos, censo de mistério, gosto pelo escuro!

- Por que o ocorrido só foi em Gamela Nova?

É óbvio, num lugar pequeno, rural, com pessoas de baixas escolaridades, longe de tudo e todos, quase nenhuma novidade e muita credulidade, tudo passa a ser folclórico, certo?!

- Será mesmo uma mulher? E por que nunca molesta suas vítimas que são sempre do sexo masculino?

-Mulher sim! Pelas pegadas com movimentos femininos na porta do cemitério identificadas pelo índio Rildo, O batedor. Quanto suas aparições aos homens que atuam como líderes comunitários, é uma forma de cobrá-los perante todos, deixando-os inertes e sem reação!

- Segundo as fontes que levam ao ser feminino, ela não fala, não intimida, apenas balbucia, por quê?

Supõe-se que ela seja muda, ou talvez, louca!

O Sargento Dorão presenciou inúmeros focos de cinzas nos locais os quais ela tinha passado... Seria algum ritual satânico? Ou algum tipo de experiência com explosivos usados para uma suposta destruição em massa?

-Bobagem! Nada mais é do que uma fumante crônica e compulsiva!

- Fica um forte odor no ar onde ela passa. Dizem que o mau cheiro lembra enxofre, GLP, algo muito forte mesmo. Acredita-se ser o causador dos desmaios, será?

-Esse cheiro não identificado é por maus tratos higiênicos, o odor parte daí... Só me faltava essa viu!

- Há quanto tempo vem ocorrendo esse descalabro por aqui?

-Quase um ano. Por isso acho que estou perto de desvendar esse humor negro, tenho lá minhas desconfianças!

-O Dr Ney, ufólogo, diz que acredita em seres de outro planeta, contrariando parte da sua equipe, no caso Locencinho, o visionário, que tem certeza que se trata de um espírito atormentado que veio resgatar dívidas com algum malfeitor do passado. Concorda?

-amais! Até porque, Ets não fumam e espírito não exala cheiro!

- O povo daqui, acredita veemente em botija, um tipo de panelinha voadora que indica o lugar onde está enterrado riquezas. Até que ponto isso é verdadeiro?

- Que existe botija, é verdade sim! o meu jenro, Filozinho até já achou uma, vinha gente de todo lugar pra ver a botija. O abestalhado trocou por uma bicicleta velha. Continua pobre, Besta! Agora, achar que essa aulivuzia toda é botija, é mais bestaje ainda!

- E por último: O que levou as tais descobertas? E se for verídicas essas informações, num seria uma navalha na carne dessa turma que se diz espertas e estão acima do bem e do mal ?

-Nosso interesse não é competir, muito menos escandalizar ou ridicularizar ninguém, queremos ter nossas vidas, nossa paz, nosso ritmo de vida pacata e tranqüila de antes e que foram nos tirada duma forma pejorativa e estúpida com essa estória de assombração.

A reunião foi tomada de silêncio. A expectativa da revelação, o desfecho final, a timidez das autoridades, a curiosidade da imprensa e a desconfiança dos senhores... Tudo notório aos olhos das mulheres, que pela primeira vez, podiam deliciar-se com gosto da vingança. O reconhecimento por fim chegou. E vivas as mulheres!

4.

Após alguns minutos de tensão, Irene, filha de Dna Adélia, levanta-se, postura erétil, brava, firme, consciente e diz;

Que todos aqui prometam em não fazê-la mal, cuidá-la com carinho e não castigá-la por seus atos. Que entendam seus comportamentos e não a julgue, não a despreze, apenas ajude-a, dêem conforto e amor e carinho. Se prometerem cumprir com todos esses gestos de solidariedade e humanismo, prometemo-lhes falar, caso contrário, calaremo-nos para sempre.

Eu, Reverendo Colaça, líder religioso dessa comunidade, asseguro que nada de anormal virá acontecer, quem, como, e o quer que seja, dou minha palavra de fidelidade!

Eu, Professor Manelito, Faço de suas palavras as minhas reverendo, dou minha palavra e minha garantia!

A assim seguiu todos concordando os demais presentes.

Esperem um pouco, volto já! Já!

5.

Após duas horas agonizantes de espera, surge Dna Adélia com uma moça enrolada num cobertor sujo, velho e rasgado, Estava descalça maltrapilha, assustada e agitada.

Todos se assustaram com o estado de flagelo a qual se encontrava a pobre moça.

- O que significa isso Dna Adélia?

Essa pobre moça se chama Fifia, uma jovem, como muitas outras jovens, que fora roubada sua inocência, sua ingenuidade, sua infância e sua mocidade.

Continuava o discurso:

-Essa moça, quando criança, fora abandonada nas ruas, percebe-se que ela é deficiente mental.Quando mais nova, sofreu de inúmeros abusos, apanhou, sempre sofreu os piores preconceitos e humilhações....Há aproximadamente três anos, Sr Feliz, homem de bom coração, gente da terra, trouxe essa pobre criatura para cuidar. Ela encontrava-se muito doente, e ele, junto com Dna Coló, ampararam-na. Trataram de suas enfermidades, deram abrigo, carinho e atenção. Acontece que os dois bons velhinhos há um ano partiram para melhor. Eram tão apegados um ao outro que, até pra morrer foram juntos. Fifia mais uma vez, ficou só. Chora dia e noite de saudades. E sem ter quem a olhe passou a perambular por aí; como se estivesse procurando seus pais adotivos. A dor da saudade é tão forte que ela não suporta ficar sozinha a noite em casa. Cismou em vestir o velho vestido de casamento da Dna Coló, o jaquetão e o chapéu coco do Sr Feliz, um par de meia encardido e sai por aí, fumando charutos nacionais, acreditamos que tenha sido Pedrinho de Julia que deve tê-la dado, em troca de alguns momentos de perversidade e desumanidade. Coitada! Por fim, todas as pistas levam a ela: Sai toda noite a procura de seus pais adotivos, e não os encontra. Em seu pouco juízo, o cemitério de Gamela Nova é o lugar onde eles estão escondidos, a pobre assistiu o enterro e pensa que eles a qualquer hora irão aparecer. É uma pobre criança no corpo de uma mulher... Triste, faminta e desesperada, que acha que todos os homens pode ser Sr Feliz. Então, faz aquela algazarra toda, até descobrir que não é seu velho pai. Enquanto isso, os marmanjos se cagam de medo, alguns até desmaiam! As mazelas da vida traumatizaram-na profundamente, passou a fumar compulsivamente, por isso as cinzas encontradas são os charutos que a acalmam, amenizam sua dor! O cheiro é falta de banho de cuidados especiais que não mais a tem. Esse descalabro vem acontecendo por volta de um ano atrás. Não se trata de Ets, espíritos e muito menos de botija.

Como vocês, ilustres senhoras Nova Gamelense, descobriram tudo isso?

Todas as senhoras riram ao mesmo tempo; Dona Adélia concluiu:

Pela labuta do povo do campos meu amigo! Pela labuta! Dna Necreta estava com uma tremenda dor de barriga. Como não temos banheiro em casa, Ela foi ao mato lá perto do cemitério, quando de repente viu aquela imagem lhe olhando. Tomou um susto danado! Tentou correr, mais como? Naquela situação! Foi quando a Fifia chegou mais perto e, também fez sua necessidade fisiológica, imitando-a e sorrindo. Esse fato nos foi relatado pela própria dona Necreta, que imediatamente, juntamos as peças do quebra-cabeça... E a lógica nos levou ao finalizar esse processo. Fomos ao seu encontro. Estava colhendo flores... Logo se escondeu! Tinha medo de gente! Passamos quase que diariamente a levar comida. Tratamos de suas feridas de bichos de pé, cortamos seus cabelos que estavam infestados de piolhos... Ganhamos sua confiança e podemos dizer que tudo isso que vocês imaginaram ser, não passou de uma grande confusão danada que será contada e recontada por muito tempo nesse cômico vilarejo.

Sérgio Russolini
Enviado por Sérgio Russolini em 14/01/2009
Reeditado em 17/08/2022
Código do texto: T1384201
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