A bailarina

_ Apenas meninas ricas fazem aulas de dança.

Pouca idade, pouca altura, muitos quilos.

_ Bailarinas são magras.

Cabelos negros, lisos, longos, lindos.

_ Sim, as roupas são bonitas e caras, incalculáveis para essa casa.

Voz grave, olhos de águia, dedos de pianista, pés de bailarina.

_ Uma sapatilha por mês? Você não vai dançar, e BASTA.

A melhor amiga consegue convencer os pais, e em pouco tempo é a melhor aluna da turma.

_ Posso te ensinar a dançar. Mesmo sem ir às aulas, você poderá dançar como eu.

Os olhos de águia duvidam.

_ Olha, é assim que se faz – e dança ali pelo quarto, com roupas de ensaio.

Ainda com longos cabelos, as mãos de pianistas fazem carinho em si, um auto-cafuné.

_ Essa é a roupa da primeira apresentação que usarei. Ai, se você pudesse fazer.

De olhos encolhidos, observou cada pedaço daquele tecido rosa cafona.

_ Vou pedir para minha mãe falar com a sua, quem sabe você entra na próxima turma.

_ Já conversamos, ela não entrará no ballet.

_ Conseguimos uma bolsa para ela.

_ MENTIRA. Sei que vocês pretendem pagar isso, não aceito, ela tem que viver a realidade da família que tem.

De camiseta numerada e com siglas PS qualquer coisa, a pequena dorme aos soluços. Sem som, apenas vento saindo da garganta e lágrimas dos olhos.

Oito meninas de vestido rosa brega, sapatilhas e meias brancas ocupam todo o palco do cine-teatro, muitos aplausos e um jantar entre amigos.

_ Gostou? Fiquei tão feliz em vê-la na platéia, fiquei até mais segura. Espero que não tenha desistido de dançar, um dia chegará sua vez. Ai, mas que pena, quando você estiver nas primeiras aulas já vou estar tão adiantada.

Raiva de toda aquela história, chega em casa para matar os pés. Coloca para ferver um pequeno caldeirão, pega quando a água borbulha e ali mesmo na cozinha, derrama tudo sobre os próprios pés.

Abre os olhos no hospital, ao lado, a melhor amiga.

_ Ai, que bom – sorriu – Pensei que ainda iria dormir muito. Sente dores nos pés?

Fecha os olhos, pede para morrer. Morre um bocadinho.

Aos dezoito anos, deixa a cidade. Na mala, três pares de tênis de cano longo, uma bota preta de cadarço, cinco meias, duas faixas; no pé, uma meia muito grossa e uma melissinha.

Vai pelo mundo, a passos curtos e rápidos, talvez para gastar a pele enrugada de cada dedo do pé. Pela primeira vez grita.

_ AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

Quase um estado depois de sair da casa encontra o que procura. Vazio.

Entre São Paulo e Minas, um vazio, o silêncio absoluto, um gramado.

Rodopia por horas, dorme no sereno, acorda lavada.

Dia trinta e um de julho de 1995, uma segunda-feira, na hora marcada, a música começa a soar no cine-teatro da cidade onde nasceu.

Aos cinquenta e três anos, ela entra rodopiando, sorri lindamente, não reconhece nenhuma pessoa na platéia, a não ser os próprios netos.

Para eles, dança por quase uma hora. No último movimento, corre como criança por todo o palco, dá um salto e se lança ao chão. As pernas em uma abertura completa, a cabeça sobre o joelho direito.

Aplausos de uma platéia encantada, ao ver pela primeira vez na cidade, a maior dançarina da história do país.

Os aplausos terminam. As pessoas sorriem umas para as outras, os netos se olham, recebem cumprimentos.

_ Sua avó e eu fomos melhores amigas na infância – fala uma mulher negra de lindos cachos.

_ É mesmo? E você também é bailarina?

_ Não.

Ela, ainda no palco, na mesma posição. Os netos se olham. A produção se aproxima.

Morreu a bailarina.