O solteirão

Eles pareciam adivinhar. Era só beirar cinco da tarde e pronto, começavam a se apinhar pelos telhados dos velhos casarões que rodeavam a praça, e também na torre da velha igreja, que fora construída ainda no começo do século XX.

Não demorava muito e lá vinha o velho Mané com um saco de milho debaixo do braço. De longe eles já o avistavam e virava um salseiro danado. O velho Mané, ou Mané Pombinho, como era conhecido por quase todo mundo ali no bairro, plantava-se ao pé da escadaria  da igreja e os pombos o rodeavam a espera da refeição costumeira.

Ele enchia uma das mãos e esparramava o milho pelo calçadão da praça que chegava a quase sumir sob o mar de pombos que desciam para comer. Eram tantos pombos que alguns pousavam sobre a cabeça do outro numa ferrenha disputa pelo milho esparramado sobre o piso de tijolão assentado no chão da praça.

As vezes ele enchia uma das mãos e ficava com os braços  estendidos, parecendo São Francisco de Assis alimentando os pássaros. Os pombos já estavam tão acostumados com ele que vinham comer em suas mãos.

A vida do Mané Pombinho era só isso. Era toda ela feita de uma mesmice que chegava a enfadar qualquer cristão.

Solteirão, cinquenta e poucos anos e, com jeitão de abestaiado, estava mesmo, com certeza,  fadado a morrer sem nunca ter visto uma perereca.

Vez ou outra parava ali no seu Antônio barbeiro para conversar sobre política . Janista fanático, se quisessem arrumar briga com ele era só falar mal do homem.  Gostava também de conversar  sobre futebol. Ele era santista, e até arregalava os olhos,  cobertos por uma espessa sobrancelha de lobisomem,  ao narrar as tabelinha feitas por Pelé e Coutinho. Quando o Santos perdia ele ficava um bom tempo sem aparecer por ali, só para não ter que aguentar as gozações de palmeirenses e corinthianos.

Aos domingos de manhã participava com certa assiduidade na missa das sete. Era integrante do grupo de oração ali  da  comunidade

Aposentado do funcionalismo público, morava com a Izaura, sua irmã, que enviuvara a alguns anos sem ter concebido nenhum herdeiro. Ela recebia a pensão do marido que havia sido gerente de uma metalúrgica ali no  grande ABC.

Com certeza viviam uma vida de regalias. Não se importavam muito com o luxo, todavia sempre tiveram fartura à mesa.

Alguns até que admiravam o Mané Pombinho por sua bondade com os bichinhos. Outros, porém, o chamavam de tonto. Era só aparecer um pombo morto ali pelas ruas, e pronto, as más línguas já diziam que o  Mané o havia estuprado.

E assim, pacatamente, ia vivendo o Mané Pombinho, até que um certo dia mudou-se ali para o bairro um tal de Gaspar. E o Mané que não era de muita conversa, não se sabe por que cargas d'água, acabou fazendo amizade com esse fulano. Só sei que todos os dias eles sentavam ali na escadaria da igreja e ficavam conversando até a noitinha, e só quando o ajudante de sacristia fechava as enormes portas de madeira maciça da velha igreja e apagava as luzes, deixando as escura parte da praça, é que eles iam embora.

O Gaspar, percebia-se, era desses caras meio vividão. Dava para notar que ele não era nada trouxa . E o Mané coitado, homem de poucas amizades, acabou se tornando amigão dele.

Conversa vem, conversa vai, e o Gaspar começou a insistir com o Mané para  irem até o Piratininga, ali na Rua da Moóca, onde funcionava uma gafieira de domingo a tarde.

----Vamos lá Mané! Eu te apresento umas minas da hora! È só levar pro hotel e afogar o ganso!

----Eu não gosto de baile! -Respondia ele.

----Pô Mané! Tu tá parecendo um Mané mesmo, heim! Tu tá querendo morrer solteirão!

----Antes só que mal acompanhado! -Retrucava o pobre Mané.

----Que nada meu, todo mundo fica velho e se não tiver alguém prá te acudir nessa hora tu tá ferrado!

----Eu tenho a minha irmã! -Argumentava ele.

----Tudo bem! Eu sei que você tem sua irmão! Só que ela é bem mais velha que você, e Deus me livre guarde se de repente ela bater as botas, você vai ficar na saudade.

Não tinha jeito. Na verdade o Mané sentia mesmo era um cagaço tremendo de conversar com uma mulher. Ele morria de vergonha, coitado. Até que  tinha vontade de ir, só que  faltava-lhe coragem.

Porém tem um ditado que diz o seguinte: "Àgua mole em pedra dura, tanto bate até que fura". E não é que de tanto o Gaspar insistir, um dia, o Mané resolveu ir lá sacudir o esqueleto.

Vestiu-se com a sua melhor roupa, perfumou-se todo, e na hora marcada lá estava ele no ponto de ônibus conforme havia combinado com o amigo. Tomaram o Praça do Correio e foram embora.

O Gaspar já havia reservado uma mesa para quatro pessoas, e assim que chegaram, não demorou muito,  já arrastou duas jovens senhoras para ficarem com eles.

Pediu uma cerveja e um rabo de galo para ele, um refrigerante para o Mané e dois martínis doces para elas.

Célia a mais nova, de quarenta e seis anos, namorava com o Gaspar a quase dois anos. Alta, magra, morena, até que não era de se jogar fora não. A outra de aproximadamente uns cinquenta anos, era um pouco mais baixa, magra também, e se chamava Joana.

O Mané Pombinho, todo retraido, não sabia onde por a cara. Pegava o copo, largava o copo, tornava a pegar o copo, e não saia disso. Limitava-se apenas a expressar-se, a todo instante, através de um sorrizinho amarelo abestaiado, e quando falava alguma coisa ninguém entendia nada. Parecia mais um grunhido que uma fala.

A orquestra começou a tocar uma seleção de músicas românticas e o Gaspar saiu dançando com a Célia, deixando o Mané e a Joana ali sozinhos olhando um para a cara do outro feito dois tontos.

O pobre do Mané olhava pro teto, olhava pro chão, olhava para as paredes, olhava para os copos, já não sabia mais para onde olhar. O coitado morria de vergonha quando ficava perto de uma mulher. Foi ela quem acabou tomando a inciativa.

----Vamos dançar?

----Eu não sei dançar não! È a primeira vez que eu venho aqui. Pra dizer a verdade é a primeira vez que venho a um baile! -Respondeu o Mané.

----Eu te ensino! -Insistiu a Joana.

Ela puxou-o pelas mãos e o arrastou na marra para o meio do salão. O Mané sentiu um bruta frio na barriga quando a Joana pegou os seus braços e o fez envolvê-la. Era a primeira vez que  ele sentia o calor de uma fêmea junto ao seu corpo. Aos poucos foi se soltando e acabou deixando se levar pela docilidade mágica da melodia que envolvia os casais sobre a  pista de dança, como se fosse um balsamo suavizador. E ao término da seleção voltaram para a mesa.

----Para quem dançou pela primeira vez até que você se saiu bem. -Brincou com ele a Joana.

----Você só está querendo ser gentil comigo! Eu pisei no seus pés umas duzentas vezes! -Respondeu.

----Nem tanto! Não seja exagerado!

O Gaspar e a Célia também voltaram para a mesa.

----Ai Mané, você já está virando um verdadeiro pé de valsa. Tá dançando melhor que eu!

----Vocês estão é querendo  gozar com a minha cara. Eu estava era parecendo um tonto ali no meio do salão.

----Mané, mais umas duas vezes que você vier aqui  já coloca todo mundo no bolso! -Brincou com ele o Gaspar.

Quem diria! Não é que o Mané Pombinho tomou gosto pela coisa e passou a bater cartão, todos os domingos a tarde, ali no Piratininga. E sem contar que nos outros dias da semana  ele pegava a Joana, que agora namorava com ele, e se embandeiravam ali pelos lados do Som de Cristal  próximo ao Minhocão, Paulistano da Glória no bairro do Glicério, Líllas na Praça Clóvis Bevilacqua, Casa de Portugal no bairro da Liberdade, Casa do Sargento no cambuci, Carinhoso no bairro do Ipiranga,  Garitão na Barra-funda, Cartola na Brigadeiro e mais um monte de lugares que o Gaspar conhecia.

O Gaspar adorava tudo aquilo, pois o Mané, que na verdade não passava de um tontão, era quem pagava toda as despesas. Até o taxi era ele quem pagava sozinho. O coitado estava tão entusiasmado com tudo aquilo, que de maneira alguma aceitava pegar ônibus para irem curtir aquela farraiada toda.

E acreditem se quiser, não é que um dia ele resolveu juntar os trapos e ir morar com a Joana.

A sua irmã quando ficou sabendo quase teve um piri-paque.

----Você tá ficando doido homem de Deus. Você vai largar a sua casa para ir morar com uma piranha, que eu já cheguei  a ouvir, em fofocas de vizinhos, que você não é o único na vida dela. Abre teu olho Manoel! Essa mulher anda te colocando um chifre maior que essa casa, e só você que não consegue enxergar!

----Você não tem o direito de falar assim dela não! Você nem conhece a Joana  direito pra falar dessa maneira!

----E preciso  conhecer? Pra mim... mulher que frequenta gafieira é tudo puta! -Gritou com ele a Izaura.

O Mané ficou com uma raiva tão grande da sua irmã que acabou virando a cara para ela. Daquele dia em diante não se conversaram mais. Vivia dizendo para Joana que estava de mal da Izaura.

Ele alugou uma casa não muito longe dali. Na verdade um casarão de seis cômodos. Mobiliou tudo com móveis de primeira. Televisão, geladeira, máquina de lavar roupa, lava louça, os móveis do quarto,  os móveis de cozinha, os móveis da sala de jantar e da sala de estar. Coisa de gente rica. Gastou uma verdadeira fortuna. Torrou todo  o dinheiro que havia economizado durante os anos em que morou com a sua irmã.

Ele agora se sentia a pessoa mais feliz do mundo. Nem lembrava mais dos pombos.

Tudo corria as mil maravilhas, se amavam todas as noites. O Mané Pombinho queria, agora,  tirar o atraso de todos esses anos em que só fizera sexo com ajuda das próprias mãos.

A sua irmã Izaura ficou com uma raiva tão grande, que não queria nem ouvir falar o nome dos dois. Até que numa manhã, depois de mais ou menos um mês de tudo aquilo, a Dona Maria espanhola, passando  pela casa do Mané Pombinho,  viu uma carreta parada em frente a casa carregando uma mudança. Na hora não deu muita importância, mas na volta passou pela casa da Izaura e comentou com ela . A Izaura, bocuda como sempre, respondeu que não sabia de nada, não queria saber de nada, e tinha raiva de quem soubesse de  alguma coisa. Só que a tardezinha, depois de passar o dia todo se remoendo de raiva, resolveu ir até lá para ver o que estava acontecendo. O portão estava entreaberto e ela resolveu entrar. Como a porta da frente estava trancada ela foi até o fim do corredor, beirando o muro, para ver se via alguma coisa lá nos fundos. A porta dos fundos estava aberta e ela entrou. Verificou que  a casa estava completamente vazia e deduziu que eles, realmente,  haviam se mudado.

----Desgraçado! Cuidei dele a vida toda, e agora como paga ele se mudou e nem me avisou! Deixa ele, a caganeira não dá uma vez só não!

Já ia indo embora quando ouviu algo parecido com um gemido vindo lá de dentro. Entrou novamente e, pé ante pé, foi olhando todos os cômodos da casa para  certificar se realmente tinha ouvido um gemido ou se fora apenas um engano. Abriu mansamente a porta de um dos quartos e quase caiu de costas. Lá estava o pobre do Mané Pombinho, todo amarrado, amordaçado e jogado ao chão com um tremendo galo na cabeça.

Minha Nossa Senhora! O que é isso? -Gritou ela.

Saiu correndo para o meio da rua berrando feito uma doida. Juntou de gente para ver o que estava acontecendo. Foi uma confusão danada. Uns horrorizados ao verem o Mané ali caído, com um baita galo na cabeça, e outros, aqueles que adoram ver a desgraça alheia, morrendo de rir ao verem o coitado com os olhos arregalados suplicando por socorro.

Refeito do susto, depois de muita àgua com açúcar e gelo na testa, ele explicou aos policiais, que vieram fazer a ocorrência, que pela manhã apareceram dois caras que, a princípio, a Joana os apresentou como sendo seus primos. Só que de repente um deles sacou um revolver e desferiu uma coronhada em sua cabeça deixando ele meio grogue, aí, então, eles o amarraram, carregaram tudo que tinha ali dentro e foram embora. Antes, explicou ele, a safada da Joana ainda lhe deu um pontapé no meio da bunda, e saiu dando risada.

Pelo jeito já estava tudo planejado. Tanto é que uma semana antes o Gaspar, alegando que um parente seu, que morava no Rio, estava muito doente, teria que passar uns dias lá para ajudar a cuidar dele. Com certeza nunca mais  o veriam.

Na verdade, o Mané, ainda teve sorte de não o terem matado. E teve mais sorte, ainda, por sua irmão o ter perdoado, e apesar de toda a raiva que ela passou, ficou com pena dele e  deixou que ele voltasse a morar com ela.

Eles parecem adivinhar. È só beirar cinco da tarde e pronto, começam a se apinhar pelos telhados dos velhos casarões que rodeiam a praça, e também na torre da velha igreja que fora construída ainda no começo do século XX. Não demora muito e lá vem o velho Mané com um saco de milho debaixo do braço. De longe eles já o avistam e vira um salseiro danado. O velho Mané, ou Mané Pombinho, como é conhecido por quase todo mundo ali no bairro, planta-se ao pé da escadaria  da igreja e os pombos o rodeiam a espera da refeição costumeira. Ainda bem que os pombos também o perdoaram.

                                   FIM

"Peço desculpas aos meus leitores por algum erro de ortografia, pois não sou escritor, sou apenas um humilde criador de histórias. Caso encontrarem algum erro peço a gentileza de me avisarem  para que eu possa fazer as correções necessárias. Muito obrigado."