A PROCISSÃO

Esta história aconteceu onde hoje corre a Avenida Água Funda, ligando a Via Imigrantes ao Ipiranga. As noites nela são claras como os dias. Bem diferentes daquelas.

Ah, como eram escuras as noites! Terrivelmente escuras para um garoto medroso como eu. Felizmente mamãe sempre lia na sala, à esperar que papai chegasse do serviço. E havia uma fresta de luz, muito amiga minha, que expremia-se pelo vão da porta do quarto e me fazia companhia até que eu adormecesse. Ao chegar, papai sempre me encontrava dormindo.

Papai era motorneiro. Os bondes na época chegavam até a primeira-sessão na Avenida Jabaquara. O restante do caminho ele fazia à pé, chegando à Praça da Árvore e descendo pela então deserta Avenida Bosque da Saúde, rumo à nossa casa.

Morávamos na Avenida Botuqüara. De um lado havia umas poucas casas. no outro eucalíptos em fila,eqüidistantes separavam a rua e o campo cheio de brejos.Mas em frente, recém construído, estava o Grupo Escolar Princesa Izabel, onde eu faria os meus primeiros estudos.

O campo e o prédio escolar eram entrecortados pelo córrego Ibirarema. Quem o visse pequeno, humilde em suas águas barrentas jamais poderia supô-lo importante e famoso. Cantado em verso e prosa. Cantado até na letra do Hino Nacional Brasileiro; Mais em frente recebe o nome de Riacho do Ipiranga.

Era uma noite como tantas. Mamãe lia na sala. Papai estava pra chegar. No quarto eu e meu irmão quase dormíamos, embalados pela acalantadora cantoria de sapos e de grilos no brejo.

Fomos surpriendidos por um som lamuriante, a princípio baixo longiqüo mas que foi aumentando paulatinamente, aproximando-se. Era um coro lúgubre de palavras indefinidas enchendo de tristeza a noite. Misturando-se ao canto dos sapos e dos grilos. Mesmo alarmado com aquele estranho som adormeci. Encorajado pela luz acesa na sala e pela presença de mamãe acordada logo ali.

Fui despertado por um estrépito; alguém em desembestada carreira na rua. O portão de casa foi aberto bruscamente e o tropel seguiu escada acima em direção à nossa porta. Era papai batendo forte, desordenadamente, pedindo que mamãe a abrisse. Parecia haver alguém em seu encalço.

Mal entrou, fechando a porta atrás de si , sentou, deixando-se cair sobre o sofá e explicando:

-Esse coro, essas vozes... estão ouvindo? É...é uma procissão. todos de vestes brancas, velas acesas nas mãos. Vocês podem não acreditar, mas eu os vi seguirem em direção ao riacho e atravessarem-no em linha reta, levitando, como se não houvesse o riacho, ou como se tivesse uma ponte invisível sobre ele.

Mamãe, notando a curiosa presença minha e de meu irmão, atônitos entreabindo a porta, chispou-nos um severo olhar mandando-nos de volta à cama. Logo, do quarto, ouvíamos papai lá na cozinha contando em voz baixa detalhes do acontecido.

Meu irmão correu à janela e pelas frestas da veneziana tentava veslumbrar algo do "espetáculo." Desistiu reclamando:

-Droga!...Já se foram.

Logo as luzes estavam todas apagadas. Desesperado pedi:

-Posso dormir com você?

-Não me encha o saco, maricas!

-Então deixa eu encostar minha cama na sua?

- Dorme e me deixa dormir. Seu molenga, cagão!

Demorei a dormir, vencido pelo sono.