João Ninguém da Silva e a sabedoria popular
Triste daquele cabra besta e malovido que se acha o dono da verdade. Só porque diz que um dia foi à lua imitando São Jorge e nunca mais foi capaz de tal façanha, duvida do conhecimento das parteiras, não acredita nas rezas das rezadeiras nem que o homem do campo sabe dizer se pelo tempo o inverno vai ser bom ou não. Se com um cordão medindo o antebraço e passando pela cabeça a mulher é moça ou desavergonhada e cortando o coração da galinha descobre se o filho da prenha é macho ou fêmea. Duvida, duvida porque é cabra besta e malovido; mequetrefe e atrevido.
Esse filho da ignorância com o mau agouro chega a pensar que a sabedoria popular é somente coisa inventada por gente desocupada que não tem o que fazer, negando assim a ciência dos grandes mestre, doutores, do saber popular. Quem não dá fé de que existe sim resultado verdadeiro nas coisas feitas pelo conhecimento de vida de certas pessoas, ou é filho de moita e revoltado com a sua condição de bastado quer aparecer ou foi feito em pé numa rede em noite de lua cheia, a mãe menstruada e o pai de ressaca para nascer com o juízo atravessado e duvidar de coisas como essas.
Conhecimentos como esses são adquiridos pela experiência passada de uma geração a outra, de pai para filho, de mãe para filho ou visse verso como préstimos às lições que não se aprendem na escola, mas da vivência do cotidiano, na troca das experiências, dos afazeres diários.
Você, despacho, trate logo de provar o que diz, porque tudo que o homem sabe hoje, sabe porque sempre existiu sim esse conhecimento primeiro.Conhecimento que dá ciência a todos e não somente a um pequeno grupo de senhores de gravata que se acham donos das verdades.
Eu, com esses olhos que a terra há de comer, já vi muita coisa acontecer nesse imenso mundo de meu Deus. Pense que já vi. Pode acreditar que tenho palavra de macho. Não preciso viver de embromação, de enganar, dizer coisas que não tenho ciência. Tudo que digo é prego batido e ponta virada e se você que me escuta agora achar que não, chamo pra um desafio.
Eu, seu moço, que vos falo neste momento sou João Ninguém da Silva, o contador de história... Nas minhas andanças pelo mundo aí a fora, já vi coisa a fole acontecer, história pra dar e vender... Já vi remédio caseiro curar dor de barriga, sabe como é, caganeira, diarréia, aquelas que você tem a sensação que tá se vazando, de xiringada, mijando pelo fiofó, ralo, ralo que só caldo de arroz? Já passou por isso já? O bichinho fica tão judiado, mas tão judiado que você pra sentar necessita de uma almofada se não senta de lado. Aqueles desarranjos no estômago depois que você bebe leite misturado com farinha, come batata doce com café, depois tira o gosto comendo uma banda de melancia, tá duvidando? E ainda ter que ouvir de um magote de filho de uma égua, piadinhas de mau gosto, tipo: Hum, tá vazando pelo pito, heim!!! Ou então: Cuidado, cuidado pra não perder a elasticidade das pregas, se não a coisa fica complicada. Já pensou você nesses dias ter de fazer o tal exame da próstata? Quero nem pensar visse... Essas mandingas que remédio de médico nenhum dá jeito, o cabra fica verde, sentado no trono o dia inteiro, as pernas bambas e o juízo segurado se não desce também abaixo e o chazinho feito ali, oia, do olho da goiabeira, curar o condenado dando a ele cor, vigor e vontade de continuar vivinho da silva. É um tiro e uma queda, duvida?
E dor de dente, caxumba, febre alta?
Certa vez, um vizinho da esquerda da casa do meu bisavô paterno, pai do pai de meu pai chegou a endoidar de dor de dente, perder o miolo, rasgar dinheiro e... O condenado inventou de comer banana de noite depois de ter jantado fígado e chupar uma macaúba, pode uma desavença dessas!!! Não deu outra. Começou sentindo um empachamento, um calor seguido de suor frio. Rodava de um lado para o outro deitado em uma esteira no alpendre da casa depois de sem querer mastigar o coco da macaúba em cima do único dente que era verdadeiro na sua boca, porque o resto era tudo chapa. O tinhoso tinha a boca toda chapada. Sem demora, os olhos começaram a chorar, a pariceira do veio trouxe logo uma lã de algodão ensopada de álcool e sapecou em cima, o homem começou a ficar sem fala e apertar o queixo parecendo que queria deslocar o danado de local de origem.
Mandaram chamar o médico do posto de saúde, ir num pé e voltar no outro, o caso era de urgência. Cuspiro no chão e a ordem era trazer o tal doutor antes que o cuspe secasse. Quando menos que não, lá se vinha aquele macho todo de branco parecendo alma penada, tirou de uma bolsa de cor escura uma série de ferramentas esquisitas, uma lanterna na testa e mandou o convalescente abrir a boca, respirar, dizer trinta e três tantas vezes que da última vez, só agüentou dizer trinta porque na hora do três, veio de uma vez os três:o fígado, a banana e os restos da macaúba, tudo de uma vez boca a fora.Deu de comer a Jouli até não querer mais. Neste mesmo instante, minha bisavó paterna que também era mulher de muito conhecimento trouxe um chá de boldo com algumas gotinhas de limão, que o vizinho logo, logo começou a arrotar e liberar algumas flatulências, em cima do dente doido, sapecou um pedaço de fumo tabaco mascado e meia hora depois o danado já estava contando a história de como havia ido do outro lado da vida e tinha voltado, salvo pelo santo chá feito pelas mãos da minha bisavó paterna e do fumo mascado. No outro dia, minha vó amarrou uma linha nylon e botou fora o danado do inquilino indesejado.
Nesta mesma noite, parece que as almas do purgatório estavam soltas porque meu avô que nesta época morava na casa dos pais acordou altas horas ardendo em febre. Uma febre que causou nele delírios, ranger de dentes e uma mijadeira que só vendo para crer. Minha bisavó que sempre tinha água serena em casa, colocou em uma bacia misturando a água com álcool e preparou um chá de quebra-pedra porque pelo conhecimento dela, aquela febre seguida de falta de movimento do corpo, dentes trincados, o ser emudecido e mijando descontrolado, só podia ser uma crise de pedra nos rins. Começou a esfriar o corpo do meu avô com um pano ensopado de água serenada com álcool, colocou duas lãs de algodão com álcool por baixo dos braços de meu avô e por toda noite pegue chá de quebra-pedra. Mais menino, pela manhã, antes do sol nascer, não precisou nem o galo cantar. Acordamos com os gritos do meu avô mijando a tal pedra que causava dor nos seus rins e febre o seu corpo. Pelo tamanho da danada, acho que meu avô ficou com receio durante muitos dias de mijar com medo de vir uma irmã, ou parenta qualquer...
Lembro-me como se fosse hoje as vezes que tive bucho inchado e minha mãe me levava a casa da véia rezadeira, dona Generosa e com um galhinho do seu pé de pinhão roxo fazer aquelas rezas e eu ficar curado. E para verme, o chá serenado da pepaconha, o lambedor da folha da malva pra despregar o catarro pregado no peito. Era tomar o lambedor e as prastadas do bicho sair verdinho, verdinho e quente. E olhe que eram remédios que a gente tomava e não tinha essa de curar essa doença e causar outro mau não. Isso quem faz são esses remédios de cientistas. Fica bom aqui mas em compensação, desembesta uma outra doença ali.
As escovas feitas da bucha do coco ou do rabo do cavalo, hoje são oral a, oral b, oral c e o condenado acaba perdendo os dentes como sempre. Para alvejar os dentes, era só passar a rapinha da casca do juar; as mulheres, quando tavam naqueles dias, era só pegar uma tira de pano, enrolar direitinho e colocar lá, depois dos dias de quarentena, lavavam os panos, escondidos e guardavam para as regras do outro mês. Nada de pular, chupar manga, limão ou ficar de perna aberta, sentar mostrando o fundo da calça. Tudo muito na compostura, para alguns, a mulher tava doente. Era tudo tão mais fácil.
Quando paria, tinha que ter a tal da água inglesa, pra sarar logo, botar as coisas podres para fora. O resguardo era pra quase quarenta dias, e o coitado do marido só contado as luas, e o ponteiro do relógio, só ali, marcado a hora feito relógio parado, meio dia, meio dia, mas tarde, quando escurecia, era ouvido de longe o berro das ovelhas ou o relinchar das jumentas... Tinha que prestar atenção para quando o umbigo do menino caísse, tinha que ser enterrado no curral das vacas e dos bois, lembrando assim o lugar santo do nascimento do menino Jesus, aquela era a certeza de fortuna, de prosperidade e fartura. Os primeiros dentes de leite tinham que serem jogados em cima da casa. Aquele ditado, sabe, nasceu sem eira nem beira.
Para ter sustância e saúde, todos eram obrigados a tomar mastruz com leite e almoçar sopa de verdura. Num corte, para estancar o sangue, uma colher de café ou um bife de carne e quando caia e crescia um galo na cabeça ou na testa, era queimado um algodão e colocado em cima, ou então uma faca era imprensando o galo que não cantava, mas o menino chorava que era uma beleza, o rasgueiro de boca era escutado em léguas e léguas de distância. O certo era que essas coisas eram feitas e o resultado realmente acontecia.
Quem quiser que der fé, eu é que não vou ficar aqui querendo mudar pensamento de cabra grande, besta e ignorante.