Dona Eva

A talha está seca, tão seca quanto minha boca e minha garganta. Cadê o moleque imprestável? Moleeeeque! Merda. Preciso levantar, já é dia alto, as donas de casa estão na feira, os maridos estão nas conduções e os amantes esperam; o cretino do entregador de gás já passou buzinando umas quinze vezes. Luuucas! Ah! Taí, criatura inútil? Enche a talha, faz favor. Sem cuspir, animal, nem mijar, que porcaria de gente eu conheço o cheiro a um quilômetro de distância.

Água gelada?! Oh! deus! Não sei se mereço tanta deferência – onde arranjou, traste? Ah, o Vasco arrumou a geladeira? Hoje de manhã? Como assim, já é de tarde??? E tu traste, comeu o quê??? Na Dona Zefa... Ah, vá. A velha me deve um século de aluguel, mesmo – eu é que sou coração mole e não consigo despejar uma anciã. Setenta é? Pensei que fosse menos. Quem te falou? Ela era mãe do Zafir, coisa nenhuma – e tu sabe disso, para de chamar ela de vó – ela era amante dele isso sim, por isso falo que ela não tem setenta anos, deve ter quase sessenta e olhe lá. Faça as contas, seu pai tinha cinqüenta bem marcados quando morreu e largou essa coisa sonsa aí no quintal.

Ah, se me lembro, se me lembro. Já contei essa história umas mil vezes e tu querendo ouvir de novo. Sobrou alguma coisa do almoço que a velha te mandou? Vá buscar e tome assento. Vamos do começo, já que não tenho que te alimentar, tô com a tarde livre. Há quanto tempo não conto isso? Tá na hora mesmo, vai que tu esquece e tu é o único que tem interesse de lembrar.

Quando cheguei de mala e cuia do interior, eu conheci teu pai na rodoviária e ele logo quis ser meu cafetão – eu era moça, veja você, nem conhecia a coisa. Vim para ser doméstica, igual todo mundo, sonhando um futuro dourado, cheio de estrelinha. Mandei seu pai pastar e fui lamber sabão nas casas de família. Acabei dando mesmo para os patrõezinhos, até para fazer raiva às madame... embuxei umas duas vezes, tirei, me desiludi, caí na vida. E quem eu encontrei na primeira noite de castelo? O Zafir, todo entonado, parecendo um rei. As outras sabiam, não deram conversa; eu novinha, caí no bico dele e fiz a noite, pensando no de comer do dia seguinte, pagar o senhorio, comprar uns trapos limpos, botar ordem na minha vida. Que recebi? Só proposta indecente. Ah! cachorro! Mandei pastar de novo. Mas a noite é dura e os bons já tem dona, depois de apanhar muito me rendi às graças do Zafir e fiz patrão de novo – ele conhecia os becos e eu me fazia de menina-moça.

Então veio o Aderbal. Se fez de amigo, botou cachaça na boca do teu pai e trouxe a Zefa no cangote. Zefa já era bem rodada, mas tinha uma lataria atraente, ignorando os defeitos, já que de noite os gatos são pardos. E seu Zafir achou que era hora de entrar na Zefinha, com o consentimento do Aderbal, claro, que na mesma semana botou minhoca na cabeça do Zafir e alugaram um casarão para servir de bordel, coisa chique de boyzinho, até botaram eu mais a velha Zefa de faxineiras, que nós era feia e eles só queriam pitel.. E tome dor de cabeça: além do de comer e de vestir, agora tinha que ter o do aluguel, o das putas, o da polícia e o escambau. De vez em quando um saía sem pagamento e por duas vezes esse alguém foi o delegado.

Pois bem, o inferno começou – toda noite tinha pemba, os clientes foram se irritando, as putas sumindo. E tinha um rapazote devendo uma grana – assim meio que tu, abestado, mas feliz – que pegou um berro da mão do Aderbal com destino certo no peito do delegado. Acertaram as armações, eu seria a desculpa do guri e a velha Zefa testemunha, teu pai e o Aderbal iam passar a noite bem à vista nos salões. Pois foi que o rapazote foi morto antes de sair de casa com a mesma arma que ia passar o delegado; a polícia veio, lacrou tudo e mandou prender a gente. O Aderbal ficou numa cela sozinho e nós todos na outra junto com um monte de escória. Aí teu pai finalmente entendeu que o tal só queria ver era o malfeito e era protegido de alguém ali dentro, até por que toda vez que faltou molhar a mão do guarda, a opinião de não pagar sempre foi do Aderbal. E o Aderbal nunca tinha comido a velha Zefa. Aí seu pai empurrou a velha na parede e ela confessou que morava nos morros e nunca tinha visto aquele homem, que ele tinha prometido dar um castelo pronto para ela depois do golpe – mas que não sabia qual era o golpe. Seu pai mais os outros presos fugiram – esfacelando o delegado e o Aderbal, por acaso, na saída. Não deixaram nem a sopa dos dois, deve ter sido difícil para as famílias separarem dois caixões.

Eu mais a Zefa fomos nos esconder no interior, numa casa de parente dela – um povo feio e sujo, todo mundo duro e ferrado. Penei lá uns meses até ter notícias do Zafir, um moleque disse que tinha uma rural esperando por mim na estrada. Não contei dois e fui embora, com a roupa do corpo, por que era só isso o que eu tinha. Quando cheguei, tava o Zafir sozinho e todo estropiado. Que é de rural, Zafir? Nada, tinham roubado e fugido.

Dormimos ali na beira da rodovia e quando o sol saiu saímos também, caminhando e pedindo carona. Ficamos quase um mês na rua, sem destino certo, até parar num boteco copo sujo onde o dono deu trabalho pra nós dois: eu limpava a cozinha e teu pai limpava o povo nas mesas de truco apostado. Essa robalheira virou uma rinha de galo, que acabou mesmo dando muito dinheiro para o dono do boteco e cachaça na boca do Zafir, claro.

Eu cansei de limpar latrina e ganhei o mundo de novo, sozinha. Fiz a vida até onde deu, que os anos passaram e me pegaram de jeito... Os clientes rarearam, fiquei dura de novo. Tentei botar castelo, mas nunca tive tino para o comercio, só levei no rabo. Aí, numa bela noite sem freguês, eis que aparece o Zafir, todo sonsinho, amor, querida, demorei, mas te achei. Eu achei que era verdade, achei que ia ter um companheiro, fiz planos, botei tinta nova nos sonhos, passamos um ano e pouco na felicidade, o castelo tava indo bem e o Zafir ali, presente, amigo e o cacete.

Foi quando ele me apresentou tua mãe: uma mulher linda, loira, alta, filé mesmo. Ele disse que ela ia ser o chamariz do castelo, e ela podia mesmo, nunca tinha visto nenhuma puta daquela categoria na minha vida. Ela era calada, séria e tinha problema de estômago, por que vomitava muito e não comia nada. Ah! Ah! Ah! Estômago nada, traste… Ela tava era prenha de ti. E de puta não tinha nada, nunca pegou ninguém, logo o buxo apareceu e tu foi uma embuxada dolorida, queria ir embora todo dia, todo dia sangrava e todo dia teu pai rezava pra tu ficar. Tive muito ciúme, trastezinho de merda. Ciúme de nunca ter embuxado do Zafir, ciúme do amor que ele devotava pra tu e pra tua mãe.

Tentei me matar, fiquei doente, fui para o hospital... Mas vaso ruim custa a quebrar e o Zafir me queria viva, só hoje eu sei por quê. Tua mãe não resistiu no parto e tu era um ratinho que só ia viver se tivesse mãe e eu tinha sido eleita pelo Zafir pra esse maldido cargo. Eita! Cuidar de ti foi difícil demais, tu é a cara da tua mãe, toda hora eu lembrava dela e invejava o amor que ela teve... Invejava a beleza dela e até o filho lindo que ela teve – que eu criava, mas nunca seria meu. Invejava até o amor que ela teria por ti e eu nunca fui capaz de ter.

Fechei o castelo e comprei essa casa, teu pai sumiu de novo. Era só eu e tu aqui, eu larguei de vez o negócio da noite e lavo roupa pra fora até hoje. Tu já tinha uns cinco anos e o Zafir voltou com a Zefa a tiracolo, construiu aí esse barracão pra ela morar, adoeceu dos peitos e morreu tísico.

E o resto, tu já sabe de cor.

Eita... Falei tanto que já tá é de noite.

Bóra, traste. Bóra ver a novela. Quê? Vão matar a Lola? Quem falou? Ah! Tu leu na revista. E tu sabe ler, traste? Ora, essa é boa! Tu quer agora é me ensinar... Cachorro velho não aprende truque novo, pra que é que eu quero ler, nessa altura da vida? Ah! Pra ler contigo as revistas de novela... É. Pode ser. Como assim, tu vai ser doutor? E eu, traste? Que vou fazer sem ti? Tu me leva junto? Nunca entendi por que é que tu gosta de mim, eu nem sei mais teu nome de tanto te tratar por traste. Lucas, tá, tá. É mesmo. Doutor Lucas, bora ver a Lola morrer, bóra. Pode, pode ir chamar a velha Zefa... Manda ela trazer pipocas…

Jane de Paula Carvalho Santos
Enviado por Jane de Paula Carvalho Santos em 03/04/2006
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