Sinuca no bar do Dedé
Sinuca no bar do Dedé
A noite realmente era curta quando se tratava de bar do Dedé. Cerveja, sinuca e uma porção de mentiras salpicadas entre uma tacada e outra. Toda quinta-feira religiosamente íamos para lá, cada um com o tanto que juntou do bico que fez no final de semana. Dia desses encontrei com o Dedé pelas quebradas da vida com uma mulata num sovaco e um jornal no outro. Ele não queria me ver, agora ele tem raiva de mim, fiquei até chateado, mas eu conto-lhes o motivo. Meu amigo Felipe, andarilho e mecânico embromador era o meu rival da sinuca. Bebia bastante mas não agüentava misturar cerveja com destilado, achava que podia virar veneno na boca do estômago; dizia inclusive que conheceu um cara que já morreu disso, o cara ficou com a cabeça inchada e vermelha, os olhos saltaram a uns dois metros do corpo. Eu sabia que ele tinha medo de disputar gargalo comigo, mas como ele sempre contava essa história tratei de acreditar. Ele completava: -É verdade Chico! Não acredita em mim não? Poxa cara, pra que eu mentiria pra você? era sempre a mesma ladainha que enchia as nossas quintas-feiras. Música, muita conversa e o delicioso barulho da bola certeira que estampe na caçapa. Tinham também os copos que suavam sobre um caixote de madeira, melhor mesa do mundo.
O bar do Dedé mais parecia uma casa do norte, com uma gaiola ao lado da porta de entrada que guardava zelosamente um Azulão. Pássaro Azulão que cantava pouco, mas brilhava como relógio novo e só não cantava tão bonito quanto o Assum Preto que ficava ao lado do balcão, esse sim o Dedé amava. Eu dizia pro Felipe em tom de brincadeira:
- Felipe, o negão só canta bonito assim porque o viado do dono furou os olhos do bichinho. perdi a conta das vezes que tinham que acalmar o Dedé para não me dar uma surra. Eram bons tempos. Tinha também um passarinho alegre que pulava de um poleiro pro outro, afoito, de corpo branco e cabeça cor de caçari vermelho, um Galinho de Campina que ficava rente à porta do banheiro. Porta essa de madeira que nunca viu uma trinca ou algo parecido, banheiro escuro e mal-cheiroso, mas também era como o Felipe dizia: -A gente não vai lá pra rezar, só pra fazer merda mesmo! Digo que parecia uma casa do norte porque lá tinha de tudo pendurado pelas paredes e no teto, jangada de madeira com farinha de tapioca até a boca, chapéu nordestino de couro na parede, manteiga de garrafa e ralador de inhame em madeira com uma chapa de ferro furada no prego. Sempre sobravam umas coxas ou sobrecoxas de frango para a gente lambuzar os dedos e espalhar farinha pelo chão. Quando a gente tinha dinheiro, pedia costela com polenta, cervejinha gelada e o jogo corria noite adentro.
Era perto de um fim de ano, umas três semanas pro natal, e haveria um torneio de bilhar. Bilhar é quando se joga com inimigo, para você parecer estudado, com amigo era sinuca mesmo. Tinham dois caras grandes, com costas de estivador e braços que arregaçavam a manga da camisa. Ainda bem que era sinuca e não luta livre. Eles desde o princípio nos olhavam de canto de olho, pois sabiam que nós jogávamos, modéstia à parte, bem demais. Pedimos como de costume uma Maria-mole pra começar e viramos de uma golada só. Aí pegamos os nossos tacos e sentamos no balcão. O bar era pequeno, só cabia a mesa de sinuca e uns doze caboclos de lateral. Pedimos uma cerveja e fizemos o nosso brinde costumeiro. Os dois negões não paravam de olhar pra gente. O Dedé jogou a moeda pra cima e sorteou o primeiro grupo, não era a gente. Continuamos a tomar a cerveja que já sumia da garrafa. Classificou a primeira dupla. Pessoal fraco. Depois os negrões foram jogar. Batiam na bola com raiva, até tiravam lasca. Eu nem me preocupava, só queria saber de beber e me concentrar, para quando chegar a nossa vez, não dar nem cheiro pros adversários. Os negões ganharam, também foram classificados. Agora sim era a nossa vez. Pedimos mais uma cervejinha e colocamos sobre o caixote de madeira, com a ficha na mão o Felipe deu a volta da vitória ao redor da mesa. Pegamos uns adversários simpáticos, afinal, era uma honra para eles jogarem conosco. Distribuímos as vermelhas para um lado e as amarelas para o outro. Deixamos eles escolherem a cor. Ficamos com a vermelha. Par ou ímpar e era a nossa vez de sair. O meu parceiro soltou uma tacada de tinir as janelas do lugar, pos o jogo na mesa, espalhou tudo pro jogo. –Calma rapaz... Ta com raiva, é? disse o adversário. –Que nada, é que o meu amigo gosta de ganhar rápido, isso sim. respondi amigavelmente. Vez de eles jogarem, nada de mais, uma bola nossa que rabeava na caçapa e a deles que ficou na mira. Minha vez de jogar, mirei pouco e pus o cigarro na boca. Caçapei. Demos da nossa cerveja para eles e, depois de um gole dei mais uma tacada. O adversário jogou, enfiou logo duas no buraco. Fomos obrigados a assumir que os caras não eram tão ruins assim. Faltavam três nossas e quatro deles. Mas eles não defendiam bem. Jogavam na sorte. Caçapavam uma nossa e abriam as deles. O Felipe tava bem concentrado, nem parecia sinuca, tava mais para bilhar... Ou Snooker! Caçapou duas deles. Pedi mais uma garrafa pro Dedé e dividi por nós quatro. Três para nós e duas para eles. Jogo tava bom de jogar, tinha respeito e espírito esportivo. Jogo tranqüilo. E eu orgulhosamente embrulhei a última bola dos rapazes. Até mesmo bola deles a gente deixou apoiar na caçapa, sem matar, só para eles ficarem no sufoco. Quando a partida acabou, os dois pediram uma cervejinha para nós, nos cumprimentaram e foram embora. Não queriam ver o resultado. –Chicão, topa comer uma costelinha enquanto a gente espera? –Ôpa! Ótima idéia, pede aí pro Dedé que eu vou ao banheiro. a costelinha era feita na panela de pressão, mas ficava tão macia que não dava nem para matar a gula. Passei pelo galinho de campina, dizem que ele quando canta muda de cor. Coisa essa nunca vi, mas seria lindo se visse. Dei uns tapinhas na gaiola e tratei de me aliviar.
Quando eu saí o pessoal tava jogando e comemorando. O Felipe sentado no balcão colocava uma pimentinha na costela e jogava uma farinha que era para endurecer a polenta um pouquinho. Sentei do lado dele e dei parabéns pela vitória. Mais uma garrafinha de cerveja e costelinha que empapuçava. Melava os dedos de lamber até cansar. Comíamos de fazer colher parecer pequena. O meu amigo até o osso chupava, batia com o osso no balcão que era pra sair o tutano. Eu não gostava disso não, mas ele é ele, e eu sou eu.
Acabou a costela antes do canto do Assum-Preto terminar. Cada um pegou uma coxinha de frango e mandamos pra dentro também. Os negões tinham ganhado mais uma. Grande coisa. Nem bebendo os caras estavam. Fomos nós jogar novamente. Dessa vez era um gordo e um baixinho. Comecei estourando uma pra dentro. Os caras nem disseram nada. Dei uma tacada pra telefonar de rabeira... Não pegou, queimei uma nossa. O gordo jogou com força, a bola deles pulou pra fora da mesa e foi rolando em direção a rua. Nem me mexi. Nem o Felipe. O Baixinho correu pra calçada e pegou a bola, e ao pegar, veja só que ousadia, colocou-a de volta no jogo! –Que é isso cara? Você ta louco? perguntei. –Como assim? A minha bola não queimou! disse o gordo. Fiquei puto da vida. Discutimos. –Deixa pra lá Francisco! Relaxa que a gente ganha deles. o Felipe disse. –Se é esmola a gente não quer! disse o baixinho. –Por que vocês não enfiam a bola? respondeu meu parceiro. E ao perceber que ia azedar o pé do frango tratei logo de me adiantar e dar a minha tacada. Deus me livre de acabar uma partida sem ganhar! Caçapei outra deles e assim fomos. O jogo foi mais difícil, mas nem tanto. Ganhamos de novo. Dois a zero. Desconfiava que a gente ia jogar com os negrões hora dessas, mas nem me preocupava. Como dizia a minha sogra: - Nós não estamos nem tchum pra eles! (não sei o significado dessa frase, porém, acredito que foi a ideal no momento).
Acendi mais um cigarro na emoção de perceber que faltavam apenas mais dois jogos para o cobiçado troféu. Eu, Francisco Alves de Aquino e funcionário dos correios, nada tinha em comum com todo o pessoal que estava no boteco, com exceção do meu amigo Felipe, cuja nossa amizade era freqüentemente cerzida pelo brilho das bolas sobre o poliéster verde sujo de giz. Tudo bem que o troféu era leve igual patuá de nego feio, desses que ninguém roga praga, por achar que ela já foi jogada. O troféu brilhava de um plástico dourado, e em sua base o escrito: Campeão torneio sinuca 2008. Quando a gente o chacoalhava dava para ouvir a areia lá dentro, a areia tava lá que era pro vento não levar embora, sabe como é, troféu leve...
Hora de apostar! O Dedé pega um sino de coleira de vaca e chacoalha; todo mundo corre pro balcão. Se você acerta o ganhador, ganha o dobro do que ganhou. Tinham quatro duplas na final, eu e Felipe, o preto e o negrão, um com cara de cavalo e outro de pernas compridas, e a última dupla eu conhecia, era o Tonho e o cantador. Eles foram da última final que nós ganhamos. Todo mundo de braço estendido no balcão com notas pequenas entre os dedos, o Dedé quase chorando de alegria. Todo mundo botava fé na gente, menos os amigos dos crioulos que lá estavam. O bar tava de gente que não dava nem pra andar, tinha gente na calçada forçando a entrada e encoxando tudo o que via. A gente podia escolher com qual dupla jogar na semifinal. O Felipe escolheu os negões, mas eles disseram que deixariam a vitória deles pro final, a melhor parte. Coitados... Jogamos então com o Tonho e o Cantador. O Cantador, quando caçapava, cantarolava o único refrão do Asa Branca. E o Tonho era por causa de Antônio. Um cachaceiro bravo que adorava se gabar, mas não agüentava uma noite de copos com a gente.
Lá fomos nós. Moeda dedão acima e a dupla deles começaria. Nós fomos de amarela. O Cantador dá uma sapecada sem sucesso. Estava com vontade de mijar, esperei pela minha vez. Quando eu joguei, joguei de qualquer jeito para correr para o banheiro. O Felipe quase me bateu, afinal, era arriscado até mesmo perder uma jogada. Quando eu encosto a porta do banheiro ouço aplausos e o cantarolar do Asa Branca. Morri de medo, já sabia o que acontecera. Saí do banheiro e lá estava o Felipe com cara de Santa de altar olhando para a mesa. Quando volto o rosto para a mesa, tinham cinco bolas deles e só duas nossas. Era hora de reagir. –Minha vez? perguntei. Todos responderam positivamente com a cabeça. Tranqüilo ajustei a calça, bati a brasa do cigarro e olhei a mesa toda. Dei a tacada e mandei uma certeira pro buraco. Faltavam quatro. Na próxima tacada eu abri o jogo pro meu parceiro e defendi a nossa. O Tonho deu a dele e não mudou nada. O Felipe passava giz toda hora no couro do taco, na vez dele cumpriu o gasto de tanto giz. Caçapou duas. Hora do cantador, caçapou uma nossa. Faltavam duas deles e apenas uma nossa. Acendi outro cigarro na brasa do antigo e passei giz no meu taco. Jogo Mata-mata é assim mesmo, muitas possibilidades de jogo, mas quando sobra uma é bem difícil de jogar. Mas de qualquer modo é melhor tentar do que sonhar. Era um jogo difícil, eu não podia deixar bola dando sopa senão eles ganhavam. Era muita responsabilidade, sem dizer que os apostadores não iam gostar nada se a gente perdesse. Dei a tacada, nada. O Tonho jogou, também nada. Vez do Felipe. Mandou outra pra caçapa. Uma contra uma. O cantador deu uma tacada que quase morri do coração. Entravou a minha bola na caçapa, sem defesa, não tinha como acertar na bola dele. Mirei na minha bola, fechei os olhos e dei com uma força de mãe salvando filho, seja o que deus quiser. Minha bola dançou atordoada pela mesa até tocar na bola deles, alívio. Na vez do Tonho ele não podia acertar. Toda a atenção na tacada dele. Podia ser a última. Quando ele bateu as bolas caminharam juntinhas, todo mundo começou a gritar: -Olha o carretão! Coisa feia! Ladrão! carretão é quando o jogador ajuda a batida empurrando com o taco a bola dele, jogada proibida. Eu abracei o Felipe, ganhamos por muito pouco. O Cantador jogou o taco no chão assumindo a derrota. Fomos para a final.
Fomos para o balcão após cumprimentar os perdedores, tomamos uma cerveja de goles miudinhos. Sorriso era o que não faltava naquela hora, felicidade então dava até pra vender de tanto que a gente tinha. Os negões foram jogar com o cara de cavalo e o de pernas compridas. Preferimos não assistir, o que ganhasse ia perder pra gente mesmo...
O Dedé colocou alto uma sanfona no toca Cd’s, Luiz Gonzaga. Aí é que eu me alegrei, Forrózão pé-de-serra, cervejinha e um troféu que logo seria nosso. Eu e o Felipe conversávamos gritando, e de vez em quando dávamos um rabo de olho no jogo deles. Os negões estavam ganhando. Jogavam agressivos e não comemoravam nem uma caçapada, parecia que eles faziam isso há tempo. Jogo terminado, os negões se cumprimentam e os adversários saem cabisbaixos. Já vi quem ganhou. –Chicão, se prepara que agora é que o bicho pega. disse o meu parceiro meio ressabiado. Matei o resto de cerveja que havia no copo, ajustei a calça e acendi mais um cigarro. Peguei a moeda na mão e perguntei pros negões se era cara ou coroa. –Podem começar. o negão falou. Que raiva que me deu, negão metido. Dito e feito, comecei o jogo enfiando logo uma bola deles na alcova. Comemorei. Dei outra pra abrir o jogo. Um negão jogou e entravou a nossa bola. Mas o Felipe saiu numa boa. O outro negão deu aquela tacada forte e caçapou uma nossa e uma deles. Me deu vontade de rir. Quatro a três, estávamos ganhando. Minha vez de jogar, respirei fundo, e quando meu taco ia bater na bola o taco resvalou. O couro tinha escapado e a nossa bola queimou. Fiquei puto da vida. Reclamei pro Dedé que me mandou ficar quieto, o outro negão já tinha emburacado aquela bola e continuado com o jogo. Aí não podia, me enfezei, ganhar aquele jogo era questão de honra. Fiquei vermelho igual o Galinho de campina. O negão caçapou outra nossa, eu não parava de resmungar. –Fica quieto aí e joga! disse o eclipse. quase bati nele. Três a dois e nós estávamos perdendo. Caçapei com ódio uma deles e empatei o jogo. O outro negão jogou meio atordoado e novamente as bolas caminharam juntinhas, o cara fez um baita carretão, mas ninguém reclamou pelo tamanho dos caras. Chamei o Dedé que por sua vez fingiu que não viu a jogada. O Felipe pôs as duas bolas deles na porta da alegria, fiquei feliz demais. O outro negão tirou uma, mas a outra eu caçapei. Dois a um para a gente, na frente novamente. Quando o negão foi bater a bola dele, veja só se pode, o taco dele escorregou. –Ôpa, desculpa! disse o safado e deu mais uma tacada. O Felipe pegou a bola dele com a mão e virou pro Dedé, que era o dono da mesa e juiz do torneio. –Eu não vi nada! disse o Dedé. O negão tentou tirar a bola da mão do Felipe, eu já estava puto da vida, ergui o meu taco e desci na cabeça dele. Começou uma correia dos infernos, uma gritaria que nem lhe conto. O outro negão me enforcou com o taco dele e algum santo, acho que foi o Felipe, deu-lhe com a caixa de madeira que servia de mesa no bar. O pau tava feito, eu só queria o troféu de plástico com areia dentro. Saí chutando e socando todo mundo que estava na minha frente, assim como o Felipe. Gaiola caindo, assim como os outros enfeites do lugar. A mesa de sinuca dançava no meio da confusão. A briga foi parar na rua, paramos a rua no meio de pancadas e rasteiras. Levei um chute forte na bunda, me virei e era o negão mal educado. Dei-lhe uma cabeçada daí senti a cabeça molhada, tinha levado uma garrafada. Quando o chão me amparou, olhei para o alto e vi o Felipe correndo com o troféu debaixo do braço, o Dedé enrubescido com as mãos pressionando a cabeça. Sirenes, luzes de viatura de polícia e o escambau. Estava com um sono danado. Adormeci.
Acordei numa ressaca danada dentro da delegacia. Tinha sido preso com mais um monte de gente, passaria a noite lá. Procuro pelo Felipe e nada, o filho da mãe havia escapado da cana, bom pra ele. Espero que tenha guardado o nosso troféu de campeão de sinuca e vale tudo. Deitei novamente e cochilei.
Quando o sol me espremeu os olhos com os polegares em brasa, levantei com dor de cabeça e um soldado abriu a grade para eu ir embora, só eu ainda estava lá, todos já tinham ido. Peguei a minha camiseta com manchas marrons sobre o balcão e saí. Soube que o Dedé abriu um boletim contra a gente e todo mundo foi autuado por vandalismo; mas o delegado, que não é bobo e nem nada, pediu as papeladas do boteco do Dedé, como ele não tinha, o boteco foi fechado.
O Felipe e eu ainda passamos pela porta abaixada de ferro, aonde era o boteco e hoje é uma mercearia. O troféu fica cada semana na casa de um, mas foram bons tempos, dois longos anos. A gente ainda joga, mas nunca mais aquele lugar gostoso. Aquela costelinha com polenta que ainda me dá água na boca, o Luiz Gonzaga que cantava incansável, o canto dos pássaros que já devem ter morrido. O Dedé não pode ficar bravo com a gente, afinal, a gente só queria o troféu de plástico com areia dentro.
“Dedicado ao meu amigo Felipe Prestes, companheiro de madrugadas e sinuca que nunca irá vencer”