CHIFRE É COISA INVENTADA
CHIFRE É COISA INVENTADA
Quando eu digo que sei uma coisa é porque abro dos peitos e digo: eu sei mesmo, de verdade, dou fé e tenho ciência diante de minha santa ignorância do que estou afirmando, fazendo rebolo garganta a fora, tá me entendendo?
Agora, quando eu digo que não sei, pode até nascer cabelo em ovo, a terra se desmanchar em água como no dilúvio, cobra criar asa, nascer dente em boca banguela, brilhar estrela em céu da boca de um cachorro, é porque não sei mesmo e pronto, sem rodeio, sem querer passar por sabe tudo, o dono da verdade.
Não, não sou homem de meias palavras, sou homem de palavras inteiras, tá dando pra estender, esse menino? Mas poderia está entendendo sem tá dando qualquer coisa, não poderia? Tenho ódio de macho metido a engraçado que não sabe honrar o que carrega entre as pernas, que quer levar um outro cabra sério que nem eu a pagode. Um mequetrefe da silva que nasce com o rabo de quina pra lua e se acha só porque aprendeu a se beneficiar de três ou quatro caroços de palavras bonitas ouvidas entre uma prosa e outra entre dois ou três desocupados de ternos que se dizem homens das letras porque escreveram meias palavras em um março de papel de embrulho.
O sangue me ferve todo, fica borbulhando em fúria, a pele toda empolada, o rosto rubro em brotoejas. Logo o sangue me sobe pra cabeça e esquenta tanto, mas que esquenta tanto que fica fumaçando feito chaleira e logo sinto a catinga no ar, uma catinga catingada de, é bem, como ia dizendo, nessas horas até as palavras faltam, a língua enrola e não sabemos ao certo como dizer, uma catinga, sabe, como é mesmo? Cê já sabe né bichinho, com essa cara de assustado, coçando a testa a confirmar os pensamentos, de virar os olhos com medo de ser encarado ou de encarar a realidade... No mínimo deve ter passado por algo parecido num foi? Foi ou não foi, seja homem e assuma.
Eu, pelo menos, até que se prove ao contrário, tou falando da catinga de suor escorrendo rosto abaixo. Aquele suor de raiva, de desespero fedorento. Suor que fede, mais fede mais que qualquer outro suor escorrido. É dessa catinga que faço continência.
Tá rindo de que desgraça, cor de bufa de burro de cigano fugido? Cabeça de fósforo queimado? Já pensou outra coisa né não? Aposto que você pensou que eu pensei e ao pensar ia dizer chifre, nera? Eu sabia, eu sabia. Falou em cabeça fervendo, a carapuça logo cai como uma luva na cabeça de quem tem, de quem deve ao mercado dos cornos convencidos, assumidos ou embutidos, aqueles que sabem, mas não tem coragem de sair do armário. Se mostra meu, deixa aflorar o corno existente em você. Até porque, para alguns, chifre nem existe, é simplesmente coisa botada na cabeça dos outro como enfeite, mais nada. Pode uma desgraça dessa?
Mas oia só a testa do condenado. Esse menino, numa testa dessa, cabe chifre a dois contos e quinhentos. Ocê nem chega a sentir, dá pra nascer como milho brotando em terra no inverno; e você malovido, rindo da desgraça alheia, tá recordando é de sua própria má sorte, mau agouro. Tá pensando que todo homem tem a sua sorte é?Com esse jeito de pentear os cabelos a custa de barris e barris de óleo de coco, você parece com um corno chiclete que conheci outro dia no balcão do bar de seu Primo, bebendo feito a gota, sabe como é? O corno chiclete é aquele que quanto mais é chifrado mais gruda na mulher, mas tem veneração por ela, compra presentes e para ele, a mulher nunca tem culpa. Pensa que todos os machos tem o seu mesmo destino? E você mascarado? Olhas os olhos do condenado, chega choram. Iguais as olhos do corno batizado como sendo corno bezerro desmamado, conhece? É o corno que vive choramingando pelos cantos quando sabe que levou galha. Achaque o mundo acabou, que aquela mulher que lhe traiu é a única mulher do mundo e sem outra saída corre pra debaixo da saia da mãe. E você bicho da orelha de abano, acho que na sua cabeça os chifres já são enraizados por isso que cresceram para os lados, pensa que todo homem é membro da Irmandade de São Cornélio? Tem o seu mesmo costume? Esses que se escondem por trás dos outros são os cornos duvidosos ou corno cururu, vive enxotado de casa pela mulher que furnica com o vizinho e volta, dá uma de cuscuz, sabe de tudo e abafa o caso.
Heim, o que gosta de aconselhar é o corno tagarela, fala, fala da mulher dos outros e se esquece da sua que costura para fora. E haja agulha, e haja furada de couro. E aqui, o que mais vejo é o corno manso, é só a mulher gritar que vai embora que logo, logo se cala, fica amoado feito cachorro que acabou de levar peia.
Tá pensando o que aí desconfiado, com seus botões? Você ai mesmo escondido, de pescoço enterrado, é o peso é? Pensando que todo homem nasceu pra abacaxi? Só porque você tirou a sorte grande de receber uma coroa pontuda e por onde passa o povo grita: lá vai, lá vem o rei da Irmandade, o corno pedreiro, se acaba na mão enquanto a mulher prepara a massa com o servente. Mais parece ser da família Machado, não pode ver uma estaca em pé que quer logo derrubar...
O quê? o que foi que você disse? Fale alto se for homem, fale em pé porque daqui só vejo os chifres. Tá pensando que minha cabeça é a sua? Tá duvidando da honestidade de minha senhora? Pois fique o senhor sabendo que minha senhora é distinta e honesta, uma santa mulher que só vive pras obras sociais da igreja, de fazer caridade pros pobres.
Nós nos conhecemos a quatro décadas atrás, depois de eu ter andado pra mais de duas léguas em cima do lombo de um jumento coxo, vestido todo de marrom, nas veste de São Francisco o padroeiro dos pobres, no pingo do meio dia. Isso mesmo. Eu no lombo do jumento coxo pra mais de palmo e meio de língua para fora de tanta sede e o coro pregado nas costelas dava pra contar quantos ossos ainda lhe restavam.
E ela ali, um anjo de candura na minha frente, atracada no pau das latas. Vinha do açude, tinha ido buscar água de beber, quando viu a cena, logo teve a iniciativa de dá de beber ao pobre do animal que ali mesmo ficou. Morreu com eu em cima dele, montado, atracado nas rédias. Não teve nem força pra rinchar, dizer alguma coisa, o que tava sentindo. Só sei que era ele arriando, eu arriando, escanchado também e só me lembro da cena do rebolo ali estatelados no chão. Aquele Jumento ossudo morto e eu em cima dele, escangotado. E nem deu tempo do coitado provar da água daquela que dali por diante seria minha distinta senhora.
Isso mesmo. Depois daquela cena triste, um vento que passava inventou de arribar a saia daquela flor de mucambe que ali estava para me aliviar as dores, só deu tempo de eu ver seus joelhos, escutar seu grito e logo, logo um amontoado de rifles apontados em minha direção. A ordem era: "Padre safado de uma figa, ou casa ou morre. Não vou deixar minha única filha virar mula sem cabeça".
Pois não é que tirei a sorte grande. Acertei na milhar sem nunca ter feito aposta em bicho nenhum. Paguei a promessa, encontrei o amor de minha vida, tivemos 15 filhos, oito Marias, dois Josés, dois Antônios, dois Franciscos e um João, a saber: Maria da Guia - a guidinha, Maria da Consolação - Chamada zinha, Maria dos Milagres - apelidada nenen, Maria dos Aflitos - a nossa Maricota, Maria do Perpétuo Socorro - a menina corrinha, Maria Aparecida - tida como a Popô, Maria Nazaré - a nazinha, Maria José - conhecida como Mazé, José Maria- o Dedé, José Antônio - Tonho, Antônio José - Toinho, Antônio Francisco - O nosso Chico, Francisco Antônio - o Tom, Francisco de Assis- sizinho e João Ninguém da Silva Filho - o Joãozinho da Silva perpetuando a imagem do pai. Tantas Marias mãe de outra tantas e outros tantos por aí a fora... Isso é assunto para outra história.
Mas, vamos deixar de acender vela a Deus e outra ao diabo e vamos ao que interessa. Se sei digo que sei, se não sei, digo que não sei, não vi, nunca escutei. Não fico com história de pescador, de lenhador ou comadre. Pego meu bacamarte e dou tiro certeiro. Quem quiser que duvide, mas não fiquei por derradeiro, tirando sorte na lua,reparando a vida alheia. Neste intervalo pode estar lá em sua casa o filho do açougueiro com uma lapa de couro querendo fazer bom negócio com sua mulher, beradeiro. Se encontrar porta aberta, vai entrando sem cerimônia, jogando boa lábia, mostrando carne com nervo. Se a porta tiver fechada, força a maçaneta até ela se abrir e quando for sua vez de chegar e enfiar sua chave, vai tá com defeito, aí só quando vier o chaveiro consertar é que poderá fazer uso novamente do buraco da fechadura que estrangulou o filho do açougueiro.
Eita que o prosa tá boa, mas o sol já vestiu pijama e a lua com seu brilho enfeita o céu. Neste momento eu já me vou preparar o pavio, botar o querosene na lamparina, porque mais tarde quando a noite esfriar é só tocar fogo e deixar acesa a labareda por toda noite até que se acabe o querosene.
É por isso que digo se sei...