MAMULENGO
Todo mundo foi ver o mamulengo. O preto Benedito fez o maior sucesso. Chamou todo mundo de cafuçú, cabra da peste, o diabo. A boneca Florzinha, loura, vestido vermelho cheio de fitas era a deusa do mamulengo. O galã era o boneco Alfredo a quem o boneco Benedito, vestido com paletó verde brilhante, chamava de bicha toda vez que se referia a ele. A trama sugeria um triângulo amoroso entre Florzinha, Alfredo e outro boneco vestido de caçador e o preto Benedito queria a todo custo tirar uma casquinha na boneca. Mas Florzinha não queria nada com ele e por conta disso, Benedito escrachava com tudo e com todos. Por causa dos palavrões e da história, considerada pornográfica pelo delegado, a banca do mamulengo teve que ser desmontada da praça da igreja. Mas o pessoal não podia ficar sem trabalhar e armaram tudo de novo no fim da rua já perto do rio, depois das casas suspeitas. Naquele antro de perdição, palavras do delegado, se podia fazer qualquer coisa.
Foi mudada a roupa do satanás para transformá-lo em delegado e a história modificada para que o delegado fosse marido de Florzinha que tinha um caso com Alfredo, para que o delegado fosse o corno. No segundo dia de função, a tropa de quatro meganhas, levou o mamulengueiro Eusébio para a cadeia para que ele explicasse ao delegado, com dê maiúsculo, essa história dele ser corno.
- Mas seu doutor, esse delegado do mamulengo não tem nada a ver com o senhor não...
- Eu não quero essa fábrica de indecência espalhando maus costumes na minha cidade.
- Mas seu doutor, mamulengo é cultura...
- Cultura coisa nenhuma, cabra sem vergonha. Vocês estão precisando levar uma boa surra para acabar com essa sem-vergonhice.
- Doutor, olhe, pergunte ao padre. Ele assistiu...
- Cale a boca seu moleque, se não quiser sair daqui carregado de tanto apanhar.
- Senhor Delegado, data vênia, vim requerer a soltura do meu constituinte...
- Dr. Antonio, esse cabra não tem dinheiro para lhe pagar, deixe disso...
- A justiça deve estar acima das causas pecuniárias, meu caro Dr. Eduardo. Trata-se de um disseminador de cultura e como tal, não deve ter seu caminho tolhido por interpretações errôneas do que seja folclore, do que seja cultura popular.
- Ainda mais essa! Além de ser chamado de corno por um camumbembe sem vergonha, ainda tenho que agüentar esse palavrório.
- Meu caro, o que o senhor chama de palavrório é em verdade a maneira correta de se falar a uma autoridade da qual se espera aquiescência para o pleito.
- Está bem. Vou mandar soltá-lo. Mas você, seu cabra, não se faça de besta. Vou ficar de olho e ouvido bem abertos, se mijar fora do caco vai se ver comigo. Não sou homem de fazer ameaças, mas os que experimentaram minha raiva têm muito que contar.
- Dr. Antonio meu padrinho, vou fazer agora mesmo uma função para o senhor, sua família e todas as pessoas de bem desta cidade.
Dizendo isso o mamulengueiro espichou o lábio inferior em direção ao delegado que de costas, não percebeu a brincadeira. Quando estavam na rua, o Dr. Antonio, como todo morador de Porteira Velha, gostava de tomar cachaça e falar da vida alheia. Foram para a barraca que ficava do outro lado da praça em frente ao chafariz.
- Um quartinho e um prato de passarinha para nós. Pediu o mamulengueiro Eusébio.
O dono da barraca abriu lentamente a garrafa e serviu um copo americano cheio até a borda.
Era o ponta pé inicial de mais uma cachaçada homérica ao fim das quais o Dr. Antonio era levado para casa pelos companheiros que ainda, de alguma forma, conseguiam ficar de pé. E haja rodadas e mais rodadas de aguardente de rótulos diferentes que eram enaltecidas como obras primas da destilação com técnicas passadas de geração em geração desde datas remotas. Dr. Antonio que se dizia enólogo e profundo conhecedor de sabores e técnicas as quais discorria com palavreado rebuscado para a platéia extasiada, as maravilhas dos engenhos das regiões produtoras dos Estados nordestinos onde as condições geográficas e meteorológicas era fator preponderante na qualidade da matéria prima daquele néctar dos deuses, a ambrosia genuinamente brasileira, nascida dos canaviais de Dom Duarte Coelho Pereira. Por causa da bebedeira, nessa noite não houve função. Eusébio foi levado de carro de mão para a tenda do mamulengo, mas na noite do dia seguinte a função começou logo depois que escureceu. Entusiasmado pela proteção que lhe davam o advogado e o padre, o mamulengueiro carregou nas tintas dos impropérios contra o delegado imaginário (que todos sabiam ser o de carne e osso), fazendo com que ele levasse uma surra do negro Benedito, do galã além do par de chifres colocado por Florzinha. O espetáculo culminava com o monólogo do boneco Benedito que além de dizer muitos desaforos com os presentes, chamou várias vezes, o delegado de corno. Isso foi motivo mais que bastante para Eusébio receber voz de prisão e de ser levado algemado e apanhando de cassetete desde a ponta da rua até a delegacia. Ninguém sabe dizer como foi que aconteceu, mas nessa mesma noite a barraca do mamulengo pegou fogo e queimaram-se todos os bonecos.