DESATINOS MENINOS *

- Quem for mais homem, cuspa aqui !

Havia sempre um voluntário para atiçar os ânimos dos desafetos. Interpunha uma mão entre os contendores e a retirava rápido a tempo de ambos cuspirem um na fuça do outro. Não havia jeito, cuspe na cara era pior que apanhar do inimigo, fugir nem pensar.

Sopapos dados e revidados. Dois pequenos, garninzés na rinha, atracados, engalfinhados, rolando pelo chão.

A cara manchada de sangue e terra vermelha lamacenta. Por que chovera naquela manhã ? A roupa um lixo só, barrenta. Como esconder os vestígios da façanha dos olhos vigilantes da mãe ? Entregava-me a cogitações deprimentes, não adianta, não atino. Dizem que sou caso perdido...

Não havia muito tempo estreara uma calça comprida,(era luxo pois o costume eram calças curtas para os meninos) restos de um tecido de uma roupa de meu pai, mas era quase nova, impecável capricho da costureira. No mesmo dia, adentrando uma moita a cata de uma pipa a rasguei toda em espinhos unhas-de-gato. Apanhei sentido pela desventura...

De outra, despenquei-me de um pé de mamonas sobre a metade de uma garrafa, rasgo profundo na sola dos pés, injeções doloridas anti-tetânica. O rapaz da farmácia chegava de bicicleta e eu fazia pose para demonstrar coragem, aquele risinho tímido de quem estava apavorado. Foi uma série de seis, pior que o estrago dos cacos de vidro enterrados no pé direito.

Ou ainda a estupenda queda, também de uma árvore em que coloquei a mão sobre uma taturana ouriçada, daquelas que largam fiapos e queimam as mãos que incharam bastante...

Meti-me debaixo da casa ( naquele tempo as casas eram de madeira e ficavam a uma certa altura do chão) para ver a minha cachorra dar cria, foi um espetáculo diferente onde sai carregado de pulgas...

Fato anedótico foi o meu ingresso no primeiro ano do antigo curso primário. Na divisão das turmas, um vizinho nosso, não querendo entrar em outra sala do segundo ano, permaneceu por alguns dias comigo no primeiro, sob minha ameaça de delatá-lo caso não fizesse as minhas lições, aquelas de fazer uma bolinha e uma perninha, lembrando a letra A. Como era mais velho, e já tinha passado por aquilo, as minhas tarefas eram genialmente apresentadas, levando minha mãe e irmã a me elogiarem bastante e ficarem animadas com o meu desempenho... Até que descobriram na escola o engodo e o meu caderno garrancho foi tido pelas duas como coisa de olho gordo de terceiros...

Quis por quis uma velha égua vesga, que mal andava e tinha o dorso rijo de magra, ali conheci os desprazeres de cavalgar ralando nádegas e virilhas que doíam no banho com sabonete, onde sofria calado temendo as represálias maternas.

Também era um desastre nos assuntos de futebol. Quem não entende disso fica de fora de qualquer grupo. Eu participava quando a bola era minha, ai não tinham como me deixar de fora... Mas até nisso andaram me embrulhando, deixando-me no banco de reserva, diziam que era para não desperdiçar o talento...

Resolvi montar um pombal, aquelas casinhas para pombos, imaginava uma criação próspera, como se isso desse alguma coisa de valor. Comprei de um garoto mais velho um pombo que se alojava nos vãos do telhado da casa dele, mas o bicho não se acostumava em outro lugar, cada vez que voltava para a antiga morada eu pagava uma grana para o antigo dono me devolver...Negócio realmente próspero, para ele.

Também resolvi investir em criação de coelhos da índia, ficava vendo eles comendo a grama dentro de um antigo reservado para galinhas desativado. Acontece que os buracos permitiam que eles saíssem e retornassem, até serem descobertos pelos cães perdigueiros do vizinho, não restou nenhum...

Tive uma gralha, que me fascinava pela sua beleza. Sua cor predominante era a azul, dependendo do sol ela parecia ter nuances coloridas nas asas, ficava namorando a minha nova aquisição, até resolver mudá-la de uma pequena gaiola para um espaço maior, e ela fugiu... Ficou por ali por momentos, talvez acostumada com a ração, um ovo de galinha para bicar, adorava essa refeição, e tinha uma certa elegância ao bebericar furando a casca com o seu bico e levantando a cabeça para engolir gema e clara.

As minhas tratativas com as coisas espirituais também foram desastrosas.

Fiz o catecismo. No interior, naquela época, era costume, quase obrigação, como ser batizado. Agüentei firme no banco da casa paroquial.

No dia da primeira comunhão engasguei-me no confessionário. O pároco, alemão austero, cabelo à escovinha, olhos argutos penetrantes, oculto por detrás da casinha de treliça. Aquele olhar parecia desconfiar de cada palavra balbuciada e trôpega. Afinal, por que deveria me confessar a um estranho ? Falar de minhas traquinagens ou escondê-las ? Entre uma decisão e outra encontrava os olhos claros de testa enrugada do padre parecendo uma interrogação,como a me inquirir em seu silêncio expressivo. Acima do confessionário a imagem de um anjo com uma enorme espada dominando um dragão, parecendo ameaçar-me caso mentisse... Suor nas têmporas, palavras engolidas e ditas com receio. Por que será que nos colocam desde criança o sentimento de culpa ?

Dezenas de orações por cada falta narrada, seriam, então, centenas...

Jamais tornei à experiência, trauma que me acompanha até os dias presentes. Com Deus falo eu, sem intermediários !

Aquele dia, o da primeira comunhão, ficou marcado por uma foto horrível. Após a cerimônia, dirigi-me a um fotógrafo e solicitei uma foto de lembrança, pedido de minha mãe. Não se conheciam máquinas fotográficas portáteis e nem tampouco se cogitava de celulares com câmera ( e nem mesmo sem elas) Ficava-se em frente a uma imensa geringonça, onde o profissional cobria a cabeça com um pano preto e saía um flash que me fez ver estrelas.

As pernas juntas, finas, de calças curtas. Camisa branca e fechada no colarinho, cabelo com o corte americano bodinho ( era um corte em que tiravam todo o cabelo e deixavam um chumaço estranho quase na testa). Acompanhava o cenário eu segurando uma vela comprida com um laço amarrado nela, azul. A única utilidade da recordação, a vela, era a de ser acesa, em dias de trovoadas e raios, ocasião em que minha mãe estremecia e rezava baixinho à Santa Bárbara, protetora das chuvas e trovões,demonstrando imenso pavor. A cidadezinha era ainda um descampado, os raios riscavam os céus provocando um espetáculo tétrico.

Desgostei-me com as missas matinais domingueiras, e de todas as demais. Tinha que lustrar os sapatos e aturar a falação inaudível e repetitiva. Fraseado, às vezes, em latim, repetia como uma gravação um desatento améem !!!

Não posso dizer que tudo era chateação, seria injusto. Ali vi coisas fantásticas, sobrenaturais... Angélicas figuras, verdadeiros Querubins e Serafins, de carne e osso ( quem disse que anjos são assexuados não prestou a devida atenção...), cabelos escorridos ou cacheados, sob tênues véus, mãos postas em divina adoração, eu me apaixonava com aquelas criaturas, louras, morenas, mestiças... lindas e ruborizadas na inocente troca de maliciosos e inconfessáveis olhares. Tempos depois soube que o nome disso é flerte, que bom era aquilo !

Desespero ! Certa feita, na procissão do padroeiro ( Santo Antonio), a cidade ficava em festa e saiam acompanhando a imagem em filas indianas, segurando velas nas mãos, pela única avenida principal da cidade. Ocorre que me distrai, como sempre, e não percebi a rápida parada e prossegui com a vela sobre o véu de uma beata que se achava em frente. Houve pânico e comentários maledicentes.

A culpa foi de uma Anja, verdadeira diva, paixão secreta, roubou-me a atenção e avancei no percurso desatento, quando o cortejo estava parado. Foram apenas três passos para me batizarem de Nero, o piro-maníaco.

Definitivamente abandonei a minha curta carreira de beato, sob os protestos injuriosos dos colegas carolas de catecismo. A eles revidava chamando-os de beija-mãos e cheira saco de padres.

O que me dava asco era a reverência de cumprimentar o sacerdote, metido como um urubu, numa batina preta, a mexer em sei-lá-o que (desconfio apenas) a agraciar-nos com os chamados santinhos, guardados nos bolsos largos, como oferendas de Deus, toda a vez que beijássemos suas suadas mãos. Ocorre que sob o sol escaldante daquelas tantas tardes de sol, a veste escura não reflete a luz, as partes íntimas do reverendo – tão humano como nós – deviam ficar sem ventilação, com todos os odores daí advindos... pobres penitentes, a minha vingança era di-vi-na !

II – A MORTE

Quando soou a corneta em fúnebre melodia, o toque de silêncio, arrepiando a pele, todos em fila aguardando a marcha fúnebre. Foi o meu primeiro contato com a morte. Toda a escola reunida para acompanhar o cortejo até o cemitério da cidade, pela avenida central.

Uma colega de sala, no fim de semana, entrara com outras amigas em um rio e caiu em um fosso, não conseguiram salvá-la.

Estranho alguém estar rindo, brincando feliz, e depois inerte, cheia de hematomas, morta.

O desespero do pai, aos prantos, chamando a filha ao descer do caixão na cova... A terra atirada sobre o ataúde, tão terrível impressão.

O serviço de alto-falante noticiava as notas fúnebres. Quando ouvíamos o prefixo temido, parávamos para prestar atenção... O sisudo locutor dava a notícia do falecimento de sicrano ou beltrano com rápidas considerações sobre o mesmo. Naqueles breves instantes parecia que a cidadela parava, só retornando após o anúncio malfazejo à sua modorrenta rotina.

Só mais tarde, bem mais, novamente a água trouxe-me nova amargura, desta vez do mar, onde um amigo foi levado, sem que o corpo jamais tenha sido localizado.

Com o passar dos anos, a morte visitou-me muitas vezes, carregando entes-queridos de saudosas lembranças...

Cidade pequena, uma avenida central de extremos opostos, não apenas geograficamente falando.

Em um pólo a igreja matriz sacrossanta e no outro oposto o prostíbulo, na zona rural, com suas cortesãs de maquiagens carregadas e roupas diferentes e ousadas, que escandalizavam as beatas quando adentravam no comércio em charretes de aluguel...

Nas missas domingueiras, todos os pais honrados de famílias respeitadas penitenciavam-se, aos pés da Cruz, das levianas aventuras da semana no outro lado da cidade.

Certa manhã, um corpo foi achado. Era de um senhor conhecido que vivia de pequenos expedientes, a morte, então, já me parecia familiar...

* publicado em livro na Antologia Contos de Grandes Autores Brasileiros, editora CBJE, Rio de Janeiro- RJ, junho de 2015.