Minha Mãe e Sua Loucura Mansa
 
            Não gosto de hospitais. O cheiro de formol ou de álcool misturado a medicamentos, provoca-me náuseas. Acrescenta-se o cheiro de comida sempre servida antes da hora. No entanto, minha repulsa não é somente por hospitais, abrange também os odontólogos e seus motores com aquele ruído típico que atormenta os ouvidos. A irritação produzida pelo som não me sai da cabeça por horas.
            Sou daqueles que prefere as terapias alternativas. Raízes e ervas podem curar quase tudo, e o que não curam busco em fontes como a acupuntura ou a homeopatia. Existe sempre um alívio conveniente para a dor. No caso de um acidente que me dilacere a pele, ou os ossos, não terei alternativa a não ser o tratamento convencional, mas são fatalidades muito raras que a lei das probabilidades me ajuda a afastar.
            Devo ter algum trauma que veio à tona com o meu nascimento. Teria caído do berçário e batido com a cabeça? Difícil saber visto minha mãe encontrar-se hospitalizada em uma clínica de repouso com o nome de um santo, como se a referência fosse por si só capaz de curar as enfermidades.
            Sempre é uma tortura visitá-la. Primeiro devido ao meu trauma. Segundo por não ser nada agradável ter a mãe internada em um hospital psiquiátrico. Sempre desconfiei que ela acabaria assim. Não que fosse violenta, muito pelo contrário. Minha mãe era uma santa em pessoa. Causava a impressão de possuir um daqueles halos luminosos que cercam a cabeça dos anjos. Católica de carteirinha, não perdia uma missa e ainda ajudava nos trabalhos da Igreja. Confessava-se todos os dias. Não sei porque tanta confissão em uma pessoa que não devia carregar pecado algum. Talvez rezasse por mim ou tentasse redimir o mundo de sua leva de danações sem termo.
            O fato é que um dia acabou sendo internada como louca tendo o meu aval sem qualquer medida de arrependimento. Sua loucura branda não comprometia, mas deixava dúvidas e questionamentos a quem a cercasse. Dizia ser cercada por criaturas celestiais que somente ela poderia ver. Com isso passou a viver em um estado de graça vazia, na qual fixava por horas a fio sua atenção no nada, ou em uma parede vazia.
            - Que foi mãezinha?
            - Olha, filho, como são belos os anjos do Nosso Senhor – e apontava para a parede branca com um quadro antigo de uma paisagem do sertão.
            - Não vejo nada, minha mãe. – ela me encarava com aqueles dois olhos meigos, ternos, de um azul profundo e me acariciava o rosto.
            - Que pena, dizia derretendo uma lágrima por mim enquanto eu vertia outra por ela.
            Não tinha tempo para acompanhá-la em sua cândida senilidade. As atribulações da vida, os negócios, a correria da Avenida Paulista urgiam minha atenção imediata. Comecei a preocupar-me quando deixou de alimentar-se, de banhar-se e passou a andar pelo bairro convidando as pessoas ao arrependimento. Os vizinhos me ligavam envolvidos em pavor:
            - Sua mãe está no meio da Marginal Tietê tentando parar os carros!
            Deixei o escritório em corrida apavorada e vi minha mãe sendo a causa de um engarrafamento que sairia nos noticiários:
            - Louca pára o trânsito! – a sociedade a condenara. Vítima de minha própria pressa aceitou o vaticínio de interná-la; não havia alternativa. As visitas eram lentas e calmas. Ela me acariciava o rosto e mandava observar os anjos presos nas paredes.
            - Você tem se confessado? – respondia que sim. Se pagasse mil reais por cada mentira seria o maior devedor do mundo.
            Naquele fim de tarde entrei na Clínica e percebi que algo incomum acontecia. As pessoas corriam em polvorosa para os fundos. Meu coração não deixou de acelerar.
            - Algum dos loucos teria fugido ao controle? – assim que cheguei ao portão, após estacionar o carro, um dos enfermeiros me abordou:
            - Graças a Deus o senhor chegou. É a sua mãe!
            Eu já me encontrava aflito.
            - O que foi?
            - Venha comigo. – levou-me para o fundo da clínica. Minha mãe encontrava-se no alto do prédio de três andares, na beirada do parapeito e a ponto de saltar. Os médicos e enfermeiros tentavam acalmar os internos que gritavam, ou corriam e se debatiam pelo extenso gramado.
            - Vocês não podem fazer nada?
            - Ela travou a porta da cobertura com o cabo de uma vassoura. Estamos tentando arrombar. Os bombeiros já foram chamados. Nisso, alguns enfermeiros improvisaram uma lona resistente e seis homens ficaram embaixo, esperando pelo pior. Temendo assustá-la, não gritei. Em um determinado momento apontou para um ponto no vazio e deu um passo à frente. Enquanto caía no espaço, eu fiquei paralisado e senti que perdera todo o sangue do corpo. A providência da lona amorteceu a queda salvando-lhe a vida. Os enfermeiros aplaudiram e os doentes ficaram incontroláveis, dando muito trabalho até que tudo voltasse à paz habitual.
            Dias depois torno a visitá-la. Por prudência e pela sua própria segurança, sob o meu consentimento, foi atada à cama por um dos pés sendo possível que apenas se movimentasse pelo quarto.
            - Você viu filho? Olha como são bonitos. – e apontava para a parede nua.
            Eu, disfarçando uma lágrima, segurava sua mão e encarava um ponto vazio rezando por uma cura que sabia que não viria...